A casa é branca, a sala é branca e tem três grandes janelas em que se recortam as palmeiras e o mar. Passam barcos, às vezes grandes barcos, que também entram na sala com o mar e a luz clara da manhã de sol de Outono. Como o vento e o fogo, a mãe e a água, a infância e os pássaros ou as amoras, os odores e os rumores e as romãs, o corpo, o desejo, o quotidiano, as criaturas e os bichos, o amor pelo limpo das coisas, a luz e o mar sempre viveram nos versos de Eugénio de Andrade, em «palavras redondas como frutos, que sabem a sol e a laranjas». Já as palmeiras, chegaram tarde à sua vida. «… Em Marraquexe vi uma / que Ulisses te ria comparado / a Nausicaa, mas só / no jardim do Passeio Alegre comecei a amá-las».
O Passeio Alegre é na Foz e a casa, respeitando a fachada existente, «foi criada, pelos arquitectos Carlos Loureiro e Pádua Ramos, tendo em conta que ia ser habitada por um poeta. Até o branco, que é o seu senhor absoluto, vem da minha poesia.» É Eugénio quem mo diz, sentado no seu maple habitual, da sala em que desde Fevereiro de 1994 passa o melhor dos seus dias. Durante 44 anos viveu num modesto 2.° andar da Rua de Duque de Palmela, 111, onde se chegava subindo 34 degraus estreitos e escuros. Vivia só e sem o espaço necessário para os seus livros, discos, quadros, objectos. Um dia, numa roda de amigos, nasceu a ideia: se o escritor fez tanto pelo Porto, porque não o Porto, através da Câmara, lhe arranjar, num sítio bonito, uma casa onde pudesse viver e ter todas as suas coisas? Assim surgiria a Fundação Eugénio de Andrade, que funciona na cave e rés-do-chão de um prédio ali situado, enquanto o poeta habita no 1.° andar e no 2.° moram Miguel e os pais. «A minha relação com o espaço — continua o poeta —, de entrada não foi fácil. Sentia-me estrangeiro, tinha a sensação de estar a passar férias numa casa de empréstimo, ou alugada por uns tempos.
Durante quase quatro meses não fiz outra coisa senão olhar o mar, ouvir música. A minha gata também estranhou imenso, mas adaptou-se mais rapidamente do que eu.» Eugénio, de qualquer modo, vive sempre,
fundamentalmente, no seu próprio mundo, no mundo da sua poesia, como opção absoluta. «Tudo que vivi foi sempre para chegar a um verso», disse-me uma vez. Agora, com 75 anos, continua a frequentar Os lugares do lume — título do seu belo último livro, acabado de sair com a chancela da Fundação que o tem
como patrono (78 págs., 1 600$00), volume 28 da Obra de Eugénio de Andrade. Lume que continua a arder nos seus versos de uma claridade, uma limpidez, uma depuração e um rigor únicos. Não obstante no último dos seus 36 poemas, A Teia, se insinuar a grande sombra: «As cigarras,/ a brusca rouquidão da cal,/ a surda
rebentação dos cardos,/ tudo o que faz o verão subir a prumo / chegou ao fim.// O frio, a sua teia branca,/ lembra-te, não tardará.»
‘SOU O IMPERADOR DA MINHA ALMA’
O poeta que está aqui à minha frente, na manhã claríssima de Outono, é aquele que escreveu: «Como se pode morrer ao peso de tanta luz?». Ou, por outras palavras, O amigo mais íntimo do sol, como se chama a sua Fotobiografia, que vai agora começar a aparecer nos escaparates, editada pela Campo das Letras e pela Fundação (222 págs., 12 600$00). Uma ideia antiga de José Cruz dos Santos, que a organizou, com os habituais cuidados gráficos de Armando Alves, com textos de Luís Miguel Nava e Angel Crespo. Textos, sobretudo, do próprio Eugénio de Andrade, versos e prosa dos seus livros, que têm a ver com a sua vida («a minha poesia confundiu-se sempre com a minha própria vida») e com muitas das 208 imagens que compõem este magnífico livro/álbum. Nenhum escritor português terá tido talvez, em vida, este tipo de consagração. Que acresce às homenagens várias – um as concretizadas, outras recusadas –, às edições sucessivas, aos múltiplos prémios, às crescentes traduções no estrangeiro. Provoco: sente-se institucionalizado? «Essa palavra não calha comigo — responde. Não tenho, nem quero ter, nenhuma relação com o Poder, qualquer poder. As coisas mundanas são-me cada vez mais insuportáveis. Não suporto ir a sítios onde se tem de falar por falar, fazer tricot de palavras. Continuo a fugir ao contacto com as coisas públicas, a entrevistas.
Sinto-me mal diante de câmaras e microfones, tenho horror ao exibicionismo. Além da reserva natural, presentemente tenho pouca curiosidade pelo ser humano. Desde a minha aposentação, já lá vão 12 anos, mal saio de casa. Acabei mesmo com as viagens, que tanto prazer me davam. Passo o tempo a ler, a ouvir música, às vezes a escrever. Ou seja, agora faço exactamente o que gosto, porque, como diz Melville, ‘sou o
imperador da minha alma’.» Excepções que Eugénio abre com mais prazer a esta relativa clausura são as idas às escolas, para falar aos jovens e ler a sua poesia.
DOS PASSAROS DO PASSEIO ALEGRE…
Mas como é hoje o dia-a-dia de Eugénio, em meu juízo um dos maiores líricos contemporâneos e da poesia portuguesa de sempre? Quase sempre igual: «Tenho — sublinha — um sentido muito forte do ritmo, ordem no movimento, como dizia Platão.» Levanta-se às oito horas, dá de comer à gata, sua constante companhia e preocupação, faz um chá para si, passa os olhos pelo Público, às nove começa a trabalhar. A meia hora, sozinho, um almoço muito frugal.
(Um dia, Camilo José Cela disse-lhe: «Não sei como és um grande poeta e não comes, não bebes, não fumas, não sei se não fazes outras coisas…») A seguir, sai a pé para tomar café na confeitaria da Cantareira ou no pavilhão do jardim. Conta-me que gostaria de ficar por lá um bocado, a ler o livro que leva consigo, mas não suporta o cheiro a tabaco. «Vou pelo lado do mar e regresso pelo jardim. No Verão está cheio de pássaros, e cantam, cantam — é um desvario.» Regressado a casa deita-se durante uma hora, ou um pouco mais, ouvindo «baixinho» o programa da Antena2, após o noticiário. Depois, despacha algum correio e lê. Janta cerca das oito, «com a minha gente, no andar de cima», vê o Telejornal e algum documentário. «Como não me interesso por telenovelas, nem por futebol, nem por concursos, desligo a televisão e volto à música.
E, às 11, procuro dormir.» Antigamente, acordava muito, às vezes sobressaltado por um verso, outras porque sim, e às 4 da madrugada começava a ler. Agora, após uma recente operação às cataratas, que deixou
vestígios, não pode fazê-lo. E quem é a «sua gente» – ou, como costuma dizer. «a família que eu escolhi»? Gil
(nome. verdadeiro: Gervásio Moura) trabalhava no atelier de José Rodrigues quando Eugénio o conheceu, nos anos 50 ou 60, actualmente é perito de uma companhia de seguros. Casado, entretanto, com Ana. Maria, desse casamento nasceu Miguel, de que Eugénio é padrinho e que trata como filho (ele chama-lhe Papi). Para ele escreveu os poemas de Aquela nuvem e outras, Miguel entrou na sua vida e na sua poesia, trouxe-lhe
de novo a infância. Em Branco no Branco (1984) há um poema em que se dá o encontro da «criança» com a figura tutelar da mãe do poeta, em O outro nome da terra (1988) dedica-lhe a primeira parte. Hoje Miguel
tem 18 anos, estuda Psicologia, e, com 1,80m de altura, joga basquetebol. Eugénio é de uma inabilidade e impaciência totais para as pequenas tarefas diárias, sobretudo burocráticas, embora seja capaz de fazer uns bons ovos mexidos. Quando morava na Duque de Palmela, o avô de Miguel e o merceeiro dos baixos tratavam-lhe dessas coisas. Agora, além de Gil e Ana Maria, é Dano Gonçalves, fotógrafo de vocação
e bancário de profissão – com quem Eugénio fez Porto, os sulcos do olhar –, que o apoia. Todos os sábados de manhã Dario o vai buscar, dão uma volta, se preciso fazem compras, almoçam juntos.