Lá no alto de Espanha, a dois passos de França, existem 21 mil quilómetros quadrados para desbravar agora que o fantasma do terrorismo separatista se esfumou. O clima da primavera e do verão serão os mais convidativos para se conseguir, sem frio (o calor nunca chega a ser incomodativo), apreciar as praias, a história, a tradição, a arquitetura e a gastronomia de exceção. E tentar perceber uma língua de origem desconhecida e carregada de xis e kapas.
Aqui come-se sempre bem
Ainda estávamos a inspecionar o iPad com as explicações de todos os pratos, quando nos caiu na mesa um batom de sardinha picantona, logo seguido de um shot fumegante de foie com kalimoxto (vinho tinto com coca-cola, a bebida mais consumida pelos jovens nas ruas do País Basco). Essas e outras iguarias do restaurante Etxanobe, uma estrela Michelin, em Bilbau, foram-nos entregues por uma empregada vestida a rigor, em tons de castanho. E o chef Fernando Canales, 52 anos, deu um ar da sua graça, quando veio à sala mostrar uma enorme pescada ou falar, com entusiasmo, do alho fermentado, da nuvem de batata que sabe mesmo a puré ou da carne de borrego que esteve “toda a noite a cozinhar a 90 graus”. Esta é apenas uma das 30 estrelas distribuídas pelo País Basco (Euskadi, na língua local), um conjunto de três províncias (Biscaia, Alava e Donostia) que formam um território autónomo de Espanha. Funciona como um pequeno país, com forte identidade cultural e uma geografia inusitada que se desenvolve por entre grandes montanhas e vales. Num ápice, podemos deixar de estar junto ao mar cantábrico, frio e agitado, para subirmos as mais verdes e tranquilas colinas.
E nem só de estrelas se faz a gastronomia basca. Os pintxos (assim mesmo com x) são quase uma instituição nacional. No centro de San Sebastian, por exemplo, quase todas as ruas pedonais, pejadas de edifícios neoclássicos, viram romarias na hora do picoteo. Onde quer que se vá, há gente a beber um copo, acompanhado de uma tapa de excelência (a mais típica é a Gilda, uma espetada de azeitona, anchova e guindilla, uma espécie de pimento), quase sempre de pé e com ruidosas conversas à mistura. Na Casa Urola apenas uma entre mil, nas mãos do chef Pablo Loureiro Rodil, podemos experimentar algumas interpretações mais vanguardistas das tapas bascas, como alcachofra com cardo (um legume regional) ou foi gras a la plancha, ao ponto.
Em Victoria, a capital do governo basco, Edurne Albaina, 41 anos, dona da escola de cozinha Sualai, partilhou algumas receitas de pintxos bem característicos, num workshop descontraído que terminou à mesa com um copo de vinho por companhia.
Fizemos espetadas de camarão com vinagreta, bombons de morcela e maçã, tartelete de tortilha, pimentos e cebola caramelizada, e uma sobremesa de marmelada com queijo Idiazabal e nozes (havemos de repeti-la, em várias versões, ao longo da viagem).
Este queijo, típico da região, faz-se com leite de ovelha autóctone. Outros produtos de elevada qualidade permitem aos bascos brilharem na cozinha.
Impossível não falar das ervilhas lágrima, conhecidas como caviar da horta por custarem 400 euros o quilo. Jaime Burgaña, 50 anos, o dono da exploração agrícola Aroa, nos arredores da pitoresca povoação de pescadores que dá pelo nome de Getaria, gosta de dizer, a quem o visita, que trabalha com 40 estrelas Michelin os seus clientes assíduos são os mais importantes chefs do País Basco. Isso há de ser comprovado pelas fotografias expostas na sala onde provámos as tais ervilhas que a família semeia desde a Belle Époque.
A sua especialidade são os mesclum de folhas para saladas. “Têm um desenho muito bonito, não acham?”, indaga, pousando na mão alguns exemplares de acelga vermelha, como se fossem pequenos animais de estimação.
Nos antípodas destas iguarias exclusivas, há duas receitas que atualmente só se encontram nas barraquinhas das festas populares.
Na escola 220º, no centro de Victoria, Elena Zudaire, 38 anos, leciona pequenos cursos para “reconciliar as pessoas com as tradições”, ensinando a confecionar talos, umas tortilhas de milho que servem para envolver txistorra (um enchido) ou o queijo Idiazabal, e pastel basco, uma tarte doce deliciosa.
Quando a bebida é uma instituição
Se a qualidade da gastronomia serve para definir um território e o seu povo, o vinho não pode ser desprezado. E o País Basco obedece à regra, quer na barra dos bares de pintxos, onde a bebida se serve ao copo, quer nos restaurantes mais requintados, o vinho nunca deixou de nos acompanhar nesta viagem. Na região Rioja Alavesa isso é elevado ao expoente máximo. Há cerca de 400 adegas familiares. Se vale a pena visitar uma de arquitetura arrojada, como a Baigorri (€12, por dois vinhos e dois pintxos), que produz 450 mil garrafas, será mais surpreendente descer a um calado (cave) da aldeia pitoresca de Laguardia, com apenas três ruas principais e pouco mais de 1400 habitantes. Dentro das muralhas não há carros, por isso a sensação de entrar num filme de época não nos abandonará durante a curta estadia, nem na hospedaria de Los Parajes, onde dormimos, pois as suas paredes têm para cima de 500 anos.
“Esta aldeia está organizada em função do vinho e quase todas as casas têm caves, porque elas foram abertas para conservar alimentos ou como escapatórias na Idade Média”, explicou Carlos San Pedro, 51 anos, no cimo de um escadote a que subiu para recolher a bebida no depósito com uma pipeta, nas catacumbas da sua bodega.
O vinho tinto ainda não foi à garrafa e por isso sentimo-lo áspero, mal o provámos. Daqui a dez meses estará suavizado, garantiu o especialista. Mais perto do mar, a pouco quilómetros de San Sebastian, o Txacoli, uma espécie de vinho verde que se bebe no ano da colheita, faz as honras. Cabe à enóloga Itziar Eizagirre, 38 anos, mostrar, a partir da varanda da adega Talai Berri, os três hectares de vinha de onde sai a matéria-prima para encher 100 mil garrafas. Na mesa, há chouriço das redondezas, queijo Idiazabal fumado (que outro poderia ser?) e bonito del norte, uma das conservas que mais se vende no País Basco, a par da anchova. (€10 a visita)
A sidra, obtida do sumo da maçã, é outra das bebidas que os bascos adoram e cuja produção mantém cariz familiar. Em Hernani, nos arredores de San Sebastian, quase todas as casas são sidrerias. Contamos a história da Zelaia, mas é como um eco das suas vizinhas. Os bisavós de Maiahen Gaincerain, 34 anos, compraram uma pequena quinta, onde tinham macieiras para consumo da família. “Nos anos 1950, começaram a produzir sidra para vender, em quatro tonéis de madeira”, lembrou. Em janeiro, convidavam os amigos para provarem a colheita e eles providenciavam a comida, que era pousada numa mesa e partilhada por todos. No tempo dos pais, esses amigos passaram a levar carne para assar nas brasas.
Nos últimos vinte anos transformaram-se em restaurante. Um restaurante sui generis, diga-se. Só abre de janeiro a abril (o período em que a sidra está nos tonéis, antes de ser engarrafada), não há pratos, nem cadeiras, nem muita escolha come-se omeleta de bacalhau, bacalhau frito, uma enorme costeleta e queijo e marmelada à sobremesa (€32 por pessoa). A sidra, à descrição, vai buscar-se diretamente à barrica, quando se retira um pauzinho que tapa um estreito buraco por onde sai em esguicho, e é apanhada com o copo, depois de se esperar a vez numa fila ordeira. Rapidamente o chão fica molhado e pegajoso, mas o ambiente fica tão descontraído e animado, num vai-e-vem constante à adega, que ninguém parece importar-se com os salpicos na roupa ou a sujidade. Menos mal que o teor alcoólico é baixo.
Ver, e querer voltar
A costa basca tem 250 quilómetros de pequenas praias, algumas delas na base de enormes escarpas que caem na água quase na vertical. Há inúmeras terriolas à beira-mar, ainda hoje a viver essencialmente da pesca do atum e da anchova espécies que, muitas vezes, acabam em conserva. Bermeo situa-se em Biscaia e uma das suas portas de pedra está apontada à Ermida de San Juan de Gaztelugatxe, uma ilha especial lá longe, ligada a terra por 200 degraus. A partir de um dos miradouros da costa é possível admirar esta original construção, em tempos um castelo para defesa, hoje dedicada aos devotos de São João. No porto antigo de Bermeo, existe um enorme barco usado para a caça da baleia no século XVII pode ser explorado, a troco de cinco euros. Na água, veem-se outras embarcações mais pequenas, de madeira colorida, que ainda agora são utilizadas pelos homens do mar. Mas nem só de azul se pinta o País Basco. Victoria, onde fica o parlamento basco, por exemplo, foi considerada Capital Verde em 2012. Não admira: há 50 metros quadrados de espaços verdes por cada habitante e a cidade tem apenas 245 mil pessoas. Pelas suas ruas, há muito para explorar, mas nada ficará gravado na memória como a visita à catedral velha, de estilo gótico, que se encontra “aberta para obras”, desde 2000. Quer isso dizer que, apesar de por ali andarem várias equipas de arqueólogos, é possível conhecê-la, de capacete na cabeça (€10,5). Descemos para o subsolo, passámos pelo trifório estreito e subimos à torre sineira, a 27 metros do solo, de onde pudemos apreciar parte da província alavesa e o alargamento da cidade moderna, a partir de três ruas principais, e a muralha do século XV.
Só que nada se compara à monumental San Sebastian (que será Capital Europeia da Cultura no próximo ano). Não há dúvidas de que é a mais francesa das três capitais e os edifícios decalcados de Paris estão lá para prová-lo situa-se a apenas 18 quilómetros da fronteira. Nos finais do século XIX, foi um lugar frequentado pela aristocracia, que não se coibiu de construir. Existem vários exemplares de 1912, como o famoso Hotel Maria Cristina (onde costumam dormir as estrelas durante o festival de cinema) ou o teatro Vitória Eugénia. E depois, há as praias (e a baía da Concha), tão bem enquadradas na cidade, de areia firme, ideias para passeios à beira-mar. Grande parte dos 185 mil habitantes pratica desportos de mar e de montanha. Não estranhámos, por isso, os surfistas, de fato vestido e já descalços, a caminharem de prancha na mão, no sentido das praias.
Há 20 anos, Bilbau servia apenas de ponto de passagem. Era uma cidade cinzenta, assente na atividade metalúrgica, sem qualquer atração turística digna de um desvio.
Quando em 1993 começou a construção do museu Guggenheim (demorou quatro anos) deu-se a grande viragem. Hoje, ele é o símbolo da nova Bilbau e o impulsionador do florescer de outros edifícios de arquitetura vanguardista. Aliás, à distância de poucos metros, podemos encontrar obras de Frank Gehry, Norman Foster, Zaha Hadid, Philippe Starck e até de Siza Vieira. Atualmente, o museu tem cerca de um milhão de visitantes ao ano e posiciona-se como um dos mais rentáveis de Espanha.
Dentro do enorme edifício, construído unicamente com pedra, titânio e vidro, onde todas as paredes são ovaladas, ninguém fica indiferente (a entrada varia entre €8 e €13).
As exposições até podem mudar (até 11 de junho está uma grande mostra de Nikki the Saint Phalle), mas a dimensão do que nos envolve deixa marcas. Em redor do museu, paralelo ao rio Nervion, também nasceu um passeio por onde vale a pena vaguear até ao casco viejo e descobrir as sete ruas da cidade antiga, o local com mais movida.
É nelas que se pode ir às compras ou de bar em bar, para dois dedos de conversa, entre um copo de vinho e um pintxo. Ou não fosse o País Basco um destino ideal para comer, beber e admirar.
COMO IR
A TAP tem seis voos semanais para Bilbau, que tardam apenas 90 minutos. Depois, o mais cómodo será alugar um carro para percorrer todo o território