Deixámos Yangon muito cedo, com o raiar do sol a bater de chapa na pista do aeroporto e a planície verde que nos rodeava a transpirar aquela neblina matinal. Fomos surpreendidos pela Air Bangan quando a companhia nos deu para a mão os bilhetes de viagem: três papéis verdes, picotados e preenchidos pelos empregados ao balcão, mesmo ali à nossa frente. Não há data, nem horas registadas, apenas a indicação do número do voo, destino e uma etiqueta com o lugar de cada um, naquele avião a hélices minúsculo.
O confronto com o ar quente e húmido, à chegada a Mandalay, foi idêntico ao de Yangon. A única grande diferença era a altura do dia, que estava agora a começar. O trajeto entre o aeroporto e o coração da cidade levou cerca de 20 minutos a percorrer, tempo bastante para abrir os vidros, respirar a atmosfera abafada e contemplar a paisagem em volta, cortada apenas pela via rápida, praticamente sem trânsito. Asfalto e bermas com riscas brancas e vermelhas a perder de vista
Durante o percurso, o taxista Tan-Tan, de 24 anos, mostrou, entusiasmado, músicas e videoclipes nacionais e internacionais, sem nunca ter entrado em diálogo connosco. À medida que nos aproximávamos do centro nevrálgico de Mandalay, observávamos o trânsito crescente e a febre de motos na estrada. São o meio de transporte mais usado na cidade e levam famílias inteiras sobre rodas. Uma criança à frente, apoiada no guiador, o pai a comandar a direção e a mãe lá atrás com o bebé ao colo. Vimos esta imagem vezes sem conta, com ultrapassagens bruscas, buzinões e situações de quase-acidente à mistura, principalmente à entrada e saída das rotundas.
Mas Mandalay é muito mais do que isso. Mais organizada, limpa e desenvolvida do que Yangon, por exemplo. A malha urbana também foi planeada a régua e esquadro onde ruas e avenidas seguem paralelas umas às outras. Há muito menos vestígios coloniais nas fachadas e nota-se que a construção é mais recente. Na zona onde ficámos alojados, predominam prédios muito baixos, de 2 andares, quase todos com terraço na cobertura. Havia também muitos cabeleireiros, barbeiros, oficinas e mercados a céu aberto.
Nas vias ocupadas por trânsito sem fim, podem ver-se motos e inúmeras carrinhas pequenas, de caixa aberta, que transportam pessoas de um lado ao outro da cidade.
Depois de assentar arraiais na Royal Guesthouse, atravessámos a rua e alugámos motos por 9 mil kyats, para visitar a cidade. E lá seguimos à conquista de Mandalay. O trânsito intenso foi, sem dúvida, o obstáculo mais desafiante que tivemos de enfrentar, principalmente nos cruzamentos sem semáforos. Mas compensou. É a maneira mais cómoda, rápida e eficaz de conhecer todos os tesouros e recantos da cidade.
Começámos por visitar o Palácio Real, o último da monarquia birmanesa, mandado erguer pelo Rei Midon em meados do século XIX, antes da anexação britânica. Um autêntico oásis a que chamei “Cidade Proibida”, talvez por me fazer lembrar a de Pequim e porque, à semelhança da chinesa, tem um canal que serve de fosso a toda a volta. É um exemplo típico da arquitetura tradicional birmanesa, construído em madeira de teca, (cerca de metade do país é coberto de florestas e possui uma das maiores reservas de madeira de teca do mundo) e que se multiplica em inúmeros edifícios rasos, de onde sobressaem as terminações pontiagudas das coberturas e vestígios de dourado nos ornamentos das fachadas. A distribuição das construções foi escolhida com recurso a cálculos astronómicos e segundo a orientação mais auspiciosa.
Do conjunto original apenas resistiram a torre principal e a de vigia. Os interiores ficaram vazios, sem recheio. O local foi saqueado pelos britânicos e serviu de base militar para os japoneses. Foi, praticamente, tudo arrasado durante bombardeamentos dos aliados na Segunda Guerra Mundial. Nem mesmo a Biblioteca sobrou para contar a história. Nos dias de hoje, fica uma ideia vaga do que já foi. Mas soube a pouco. Depois de subirmos os degraus até ao cimo da torre de vigia, deixámos o olhar pairar sobre aquelas coberturas vermelhas e imensidão verde da floresta circundante.
Voltámos a parar, desta vez, para ver de perto o outrora dourado Mosteiro de Shwenandaw.
O monumento resistiu contra tudo e contra todos desde a construção, na segunda metade do século XIX. Sobreviveu a duas relocalizações, a saques e bombardeamentos. Pudemos ver a madeira de teca na sua essência, escurecida e esculpida ao pormenor. Foi o único edifício que sobrou do antigo Palácio Real de Mandalay. De lá, seguimos para o Pagode Kuthodaw e terminámos o dia a contemplar o pôr-do-sol em Mandalay Hill, depois de subir cerca de 250 metros em 45 minutos.
Da montanha verdejante, marcaram-nos os incontáveis degraus que tivemos de percorrer até ao cume e a vista panorâmica, que do topo, abraça a cidade e planície até ao horizonte. Vimos macacos, cães e gatos, contactámos com monges e turistas de toda a parte, mas o calor e humidade traíram-nos a resistência e vontade de ficar. Acabámos a descansar, deitados, sob as arcadas azuis e verdes com espelhinhos do pagode Sutaungpyai, erguido no cimo do monte.
Horas mais tarde regressámos à base, depois te termos sido brindados com o espetacular recolher do sol, que em todo o seu esplendor, tingiu céu e terra de laranja ardente.
O retorno à Royal Guesthouse fez-se em sobressalto. A moto do Francisco tinha os faróis aparentemente avariados e a viagem de 15 minutos foi extremamente perigosa. Guiámo-lo naquele inferno caótico de manobras atrevidas e buzinas ensurdecedoras.
Com banhos de água fria já tomados e a pele ainda por secar (nunca secava, na realidade) fizemo-nos novamente à estrada rumo aos Mustache Brothers, comediantes de Stand-Up que fizeram correr rios de tinta no país, durante a ditadura. Chegaram a ser presos e tornaram-se num dos símbolos da resistência ao regime militar, através do humor. O espetáculo custa 8 mil kyats por pessoa e acontece todas as noites, na garagem da casa da família. Um estrado serve de palco e umas cortinas de banheira cor-de-rosa de pano de fundo. O protagonista e anfitrião simpatizou connosco pela nossa descontração e por sermos portugueses ou bravos soldados, como nos apelidou.
Também participam no espetáculo um dos irmãos, a mulher, que foi capa da edição do Lonely Planet de 1997, a neta, cunhadas e um primo. Da sátira política, da monarquia à ditadura militar, dos subornos à polícia às manhas dos políticos, dos tiques às danças mais tradicionais, o génio de Lu Maw acabou por conquistar a pequena plateia.
O comediante deu-nos cigarros tradicionais, que fumámos durante o espetáculo e interagiu muitas vezes connosco. Era magro, com cabelo muito curto, grisalho e mal se lhe via a boca, quando falava. Apenas o longo bigode se mexia.