Os dois carateres chineses que denominam Xian significam literalmente “paz ocidental”. E se nos lembrarmos que este era o ponto mais oriental da Rota da Seda, que durante mais de mil anos uniu comerciantes do Ocidente e do Oriente, aceitamos a justa denominação.
Xian é considerada o berço da civilização chinesa: é uma das mais antigas capitais históricas da China com mais de 3 mil anos de existência. Ombreou com Roma, Atenas e Cairo como uma das cidades mais influentes do mundo. No século VII era a cidade mais populosa do mundo (1 milhão de habitantes), a que tinha o mais eficiente sistema urbano (resultante da arte feng-shui) e a primeira cidade chinesa a professar o Islão. Durante os séculos de trocas comerciais, mas acima de tudo de trocas de ideias, entre Ocidente e Oriente, a insigne Rota da Seda transformou Xian num foco de culturas híbridas. Prova viva disso é a copiosa comunidade islâmica chinesa que lhe conferiu uma identidade distinta.
Este era um rosto vivo do Oriente que ansiávamos conhecer.
Mesmo por trás da Torre dos Tambores, entramos no colorido e enérgico Bairro Muçulmano (Muslim Quarter). Uma zona vibrante. Uma explosão de produtos, cores, variedade, sons… Ruas cheias de comida. Somos absorvidos pela atmosfera aromatizada, uma intensa mistura de cheiros que se propagam das dezenas de cozinhas e bancas de comida. Começamos a salivar inevitavelmente. Estávamos no sítio certo para explorar a diversidade e criatividade culinária que caracterizam Xian, uma simbiose entre a cozinha tradicional da província de Shaanxi e a influência muçulmana.
Era preciso um catálogo, provavelmente tão longo como a monumental muralha que cerca a cidade, para saber todos os pratos e petiscos que aqui se cozinham com mestria. A maioria tem centenas de anos e uma história por detrás. As variações são às dezenas. Fomos à procura do tradicional e popular “yangrou pao mo”, um caldo de carne aromático sobre pão não-levedado e pedaços de carne que se tornou no nosso manjar de eleição. Tudo no prato é uma experiência cultural única. A empregada coloca na mesa uma chapa numerada, uma tigela, dois pãezinhos mo, um pratinho com dentes de alho, outro com picante em pasta. É um casal sentado na nossa mesa, num tasco apinhado de locais, que nos ensina a preparar a tigela: o pão deve ser partido aos pedaços, não muito pequenos nem muito grandes; a tigela é recolhida e volta para a cozinha onde um ágil cozinheiro mistura os restantes ingredientes cujos sabores compõem esta delícia. O cheiro é tentador, o sabor é único.
Sentimo-nos bem nesta azáfama que nos trouxe memórias das medinas de Marrocos e dos “hans” da Turquia curda. Os lenços cobrindo as cabeças delas, os solidéus islâmicos as deles, são uma declaração clara de orgulho étnico: eu sou Hui. À hora marcada, chega-nos aos ouvidos a já tão familiar chamada para a oração. A Grande Mesquita estava ali perto, só tínhamos que deslindar a ruela certa do labirinto que nos conduziria a um dos mais emblemáticos monumentos de Xian.
À primeira vista, nada difere dum templo budista. São os detalhes que a denunciam: os arabescos na decoração, a ausência de representações humanas, o quarto crescente no centro do telhado. O minarete foi substituído por um pagode, não tão impressionante como a Pagode do Ganso Selvagem, obviamente.
Mas aquilo que tornou Xian verdadeiramente famosa a nível mundial foi a descoberta do seu Exército de Terracota. Em 1974, dois agricultores que construíam um poço depararam-se com aquela que seria uma das descobertas arqueológicas mais importantes do século XX. Foram precisos 2000 anos para se desvendar o segredo dos Guerreiros de Xian, hoje um ícone da glória histórica da China. Oito mil guerreiros e cavalos irrepetíveis nas feições, penteados, indumentária e cores, colocados em formação militar, de acordo com sua patente e posto, eternamente prontos a proteger o mausoléu do imperador Qin Shihuang. Uma manifestação megalómana de poder na presença massiva e monumental dos seus soldados. Uma gigantesca obra humana, dum realismo impressionante, duma unicidade perturbadora. Um autêntico enigma ainda incompleto.
Há um dizer, mais próximo do slogan turístico, que afirma “se não foste a Xian, não estiveste na China”. Discutível, certamente. Mas visitar Xian, percorrer as suas ruas literalmente pejadas de gente que, serão adentro, passeia nas largas avenidas, revelou a complexidade e pluralidade dos seus rostos. E isto era só uma amostra do que se avizinhava.
Alexandre e Anabela (VagaMundos)
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