A tímida e superficial incursão ao Saara tinha-nos enchido as medidas. Foram sobretudo as histórias contadas, a marca mais carregada que levámos daquelas dunas infinitas. O silêncio foi protagonista da ação, perturbadora e tranquilizante, e o luar deu tom ao cenário, feito de areia e mais nada, a perder de vista. O fim da etapa no deserto foi também a última cena de Ismael, neste filme-aventura sobre 4 rodas.
Sacudidos os pés e fechadas as portas, chegava finalmente o arranque para Ait-Ben-Haddou. O tiro de partida foi dado já ao final da manhã. O destino que se seguia era um dos pontos que mais interesse me despertava, em particular. Muito mais do que ao António e ao João, que relativizaram a tónica do sítio, muito procurado por turistas de toda a parte. Fascinei-me pelas imagens, pelas histórias e pela mística da cidade castanha e lamacenta, fortaleza no meio do nada. Foi cenário de filmes (Lawrence da Arábia, entre outros) e carrega consigo aquele quê de imutabilidade à passagem das épocas, das vontades e dos costumes.
O trajeto começou por sofrer um desvio, logo à partida de Hassilabied. A estrada mais direta para Ouarzazate estava em péssimas condições e por isso fomos obrigados a tomar o mesmo caminho que nos tinha feito chegar até ali, ou seja, tivemos de voltar para trás. Fizemos uma paragem em Erfoud para nos despedirmos de Ismael, que se preparava para regressar a Imilchil. Sentámo-nos na esplanada de um café de beira de estrada e brindámos à despedida do nosso amigo com as últimas Coca-Colas do deserto.
Tomámos a N10 e partimos famintos, rumo a Ouarzazate. O tempo trocou-nos as voltas e as nuvens apareceram para dar tréguas à torreira solar. O trajeto foi feito com fintas e ultrapassagens perigosas, numa estrada cheia de retas, mas muito estreita para os camiões e grandes veículos que a percorrem diariamente. Pelo caminho, cruzámo-nos vezes sem conta com carrinhas periclitantes, pejadas de fardos de palha, que circulavam em equilíbrio, num limbo de vento, buracos e muitas inclinações. Ultrapassá-las foi para nós uma autêntica aventura. A última fase da viagem foi feita ao som de Regula, Valete e outros tantos vultos do hip-hop nacional.
Ait-Ben-Haddou impressiona pela existência, aparência e porte cinematográfico. Incorpora um dos povoados fortificados mais bem preservados de Marrocos e um dos conjuntos arquitetónicos do país, com mais interesse para descobrir. Está classificada como Património Mundial da UNESCO, desde 1987 e tem apaixonado vários realizadores e outros cineastas.
O casario barrento cobre por completo a colina, abraçada pela fortaleza, a toda a volta. As muralhas defensivas, que protegiam a cidade de ataques inimigos, foram espartilhando as casas, amontoadas no interior. Durante muitos séculos Ait-Ben-Haddou foi ponto de paragem dos circuitos de caravanas que rasgavam o país de lés-a-lés. O coração do povoado desdobra-se num complicado esquema labiríntico, animado apenas por comerciantes de artesanato local.
Ait-Ben-Haddou é afinal uma cidade-fantasma, mas se formos de olhos bem abertos, podemos observar pormenores que podem passar despercebidos à primeira vista, tais como as janelas de várias formas e feitios, os torreões acastelados e os detalhes decorativos, que adornam as construções e que cativam pela singularidade.
As expectativas eram altas e talvez por isso tenhamos sentido uma certa desilusão. O edificado bem preservado não consegue contrariar o vazio de pessoas e movimento. Ainda assim, fizemos questão de subir ao topo do monte para ver, de face ao vento, as vistas em redor e o crepúsculo no horizonte, a decorrer. Pouco mais houve para ver e descobrir. Começava a escurecer e era preciso regressar à base para comer e descansar.
Ait-Ben-Haddou fica isolada e ninguém vive dentro de portas. A população local vive do lado de cá do rio. É aqui que estão fixados os hotéis, restaurantes e acessos ao resto do país. Entre as duas margens foi construída uma ponte que permite a passagem pedonal, mas muitas vezes o rio evapora e a travessia é feita a pé, sobre seixos e lama seca. Foi esse o nosso caso. Não vale a pena pernoitar no local, pois os preços praticados nos hotéis e restaurantes são demasiado altos e estavam quase todos vazios. Ait-Ben-Haddou merece uma visita curta, matinal e não mais do que isso. A cidade vale pelo postal.