Privou com Bruce Chatwin e foi companheiro de jornada de Ryszard Kapuscinski, dois dos principais escritores de sempre; descobriu a paixão das viagens devido aos livros do compatriota Francisco Coloane; deu a conhecer Angola, Amazónia, a Highway 66, a selva equatoriana e tantos outros locais…
Embora só agora chegue às livrarias, Últimas Notícias do Sul foi uma aventura vivida em 1996, quando Sepúlveda e Mordzinski realizaram esta viagem “para o Sul do Mundo”. O processo de escrita apenas se iniciou em 2011. “Nunca mais falámos do livro, porque o meu sócio acha que os livros são uns bichos muito estranhos, imprevisíveis, e que há histórias que preferem ser contadas ao calor de um vinho, gostam de se acomodar de mil maneiras na boca de quem as narra, até que chega o momento em que elas e só elas decidem ser palavras no papel”, justifica o escritor.
Ou seja, Últimas Notícias do Sul (editado entre nós pela Porto Editora) acaba por ser um retrato do que foi a Patagónia, uma região que já não existe como lemos no livro devido “às mudanças violentas da economia e à voracidade dos triunfadores”, que transformaram esta obra “num livro de notícias póstumas, no romance de uma região desaparecida. Nada do que vimos existe tal como o conhecemos. De certo modo fomos os afortunados que presenciaram o fim de uma época no Sul do Mundo.”
O autor confessa que foi “bastante difícil” colocar o ponto final no livro porque sabia que nunca mais poderia voltar ao território que sempre o esperava, como aconteceu nos 15 anos de intervalo entre a viagem física e o ato da escrita. “Para mim é um livro especial a que regressava cada vez que me sentia bem”, admite em tom de nostalgia.
Sepúlveda diz que, em Últimas Notícias do Sul, o leitor encontrará dois amigos, “um escritor e um fotógrafo”, a percorrer uma longa viagem pela Patagónia e a Terra do Fogo. “Compartirão as vidas de gente sensível, humilde, mas orgulhosa e nobre, que compartilharam connosco o seu pão, o seu vinho, que contaram com alegria sobre o seu trabalho e compartilharam sua insatisfação para com os miseráveis que se apropriaram do mundo”. Mais do que um livro de viagem, Últimas Notícias do Sul demonstra, antes de tudo, a relação dos habitantes desses lugares com a sua terra.
Cidadão do mundo, Sepúlveda carrega consigo um baú cheio de recordações das suas viagens. O chileno acredita que um viajante é o contrário de um patriota. “Para um patriota o melhor é a sua terra e para um viajante o melhor está do outro lado das montanhas ou do mar.” Por isso, as principais viagens que podemos fazer são aquelas que não têm metas.
“O que importa não é o destino que alguém se propôs fazer, mas a viagem em si mesmo, o movimento (…) As viagens têm sido sempre a minha universidade.”
Nesse baú de memórias estão vários homens e mulheres, entre eles Bruce Chatwin e Ryszard Kapuscinski. Do primeiro conta que se embriagaram no Café Zurich, em Barcelona. “Falámos de Butch Cassidy e Sundance Kid, mas nunca mais nos vimos. Era parco em palavras, sem dúvida um enorme escritor, que admiro, embora não compartilhe a sua maneira de viajar. Era muito inglês: viajava para comprovar uma história e se a hipótese não coincidia com a realidade, pois, pobre realidade. Esteve na Patagónia, escreveu um belo livro, mas não viu as pessoas, não viu as formidáveis personagens que estão à vista. Quando Chatwin passou por Punta Arenas os muros tinham escritos como ‘Abaixo a Ditadura!’. E ele não os viu, não quis complicar a sua vida. E isso é muito inglês”; do segundo, guarda apenas memórias gratificantes. “Kapuscinski era um enorme observador da realidade e com a sua mirada literária a humanizava. Ele é para mim, e para muitos, o principal escritor de jornalismo literário. Fundou um género: o livro de reportagem honesto. Tive uma grande amizade com ele e aprendi muito com as nossas conversas.”
Sepúlveda diz que gostaria de passar novamente por todos os lugares por onde passou, “mas como uma sombra”. Precisamente como aconteceu recentemente em Berlim, “onde senti que tinha uma história por contar”, e nas Ilhas Chiloé, “de onde saí com inúmeras histórias por contar”.
No entanto, há um lugar que o chileno não gosta de recordar, um local que preferia nunca ter pisado: Amarillo, nos Estados Unidos, na mítica Highway 66.
“Eu e um amigo comprámos um carro em quinta mão em Chicago para depois o vendermos em San Francisco. Passamos por Amarillo – os gringos chamam ‘amarilou’ – e, enquanto trocavam o óleo, entrámos num café. Estava cheio de sujeitos com caras rudes, todos patriotas, pobres diabos que nunca tinham saído dali e que praticavam com entusiasmo o desporto de odiar tudo o que fosse diferente. Não tínhamos terminado o café quando chegou o xerife e, sem meias palavras, nos expulsou, ameaçando que, se nós voltássemos a esse povo de m…, seríamos presos por vagabundagem. Nunca voltarei a esse ninho de yankees ordinários, patriotas e ignorantes.” Uma das recordações mais marcantes da sua vida foi passada no Hotel Estación, em Salta, no Norte da Argentina.
“Ele apenas vive na minha memória e tudo aconteceu no início do meu exílio. Na recepção, uma amável patroa, amorosa e solidária, convidou-me a chorar por tudo o que me entristecia. E chorei com ela, sempre na companhia dela e de uns mates. Quando abandonei o hotel, estava inteiro, forte, com vontade de prosseguir a batalha e… ganhá-la.”
Esta é apenas uma recordação que um dia ganhará vida literária. Como aconteceu agora com Últimas Notícias do Sul, a história de Hotel Estación, que hoje não existe (“Nem sei se o próprio edifício está de pé”, salienta), também aguarda a sua vez para se transformar em “palavras no papel”.
A recordação das recordações
Há recordações que, por mais anos e lugares que tenhamos visto, ficam para sempre em nós. Sepúlveda também tem uma.
“Em 1990 terminou a ditadura e regressei ao Chile. Fui ver o meu compadre, um pescador que vivia junto ao mar na região de Araucanía. Entre os chilenos ‘ser compadre’ é um assunto muito sério. Quando o visitava, antes do golpe militar fascista de Pinochet de 1973, o meu compadre, homem de poucas palavras, sempre me saudava de forma estranha, não me abraçava como a sua mulher, simplesmente perguntava: ‘O que queres comer?’. Eu respondia: ‘Tu sabes!’ Então ele mergulhava até o fundo do mar com o pesado escafandro de bronze e regressava com linguado de vários quilos, que comíamos grelhado.
Em 1990 não nos víamos há 14 anos. Nunca me escreveu uma carta e sabia dele e do meu afilhado pelas cartas da minha comadre. Não era fácil chegar a Huachipán, o pequeno povoado de 20 casas de pescadores junto ao oceano Pacífico, mas cheguei. A minha comadre abraçou-me e perguntei pelo marido. ‘Está no mar’, disse. Fui até o porto esperá-lo e às 14h00 vi que se aproximava um barco com dois pescadores. Reconheci-o, embora os dois tivéssemos mudado. Quando saltou para a terra olhou para os meus olhos e disse: ‘O que queres comer?’. Como sempre, respondi: ‘Tu sabes!’ E saltei com ele para o barco. Sem palavras colocou o fato de mergulho, o escafandro, baixou até o fundo do mar enquanto o ajudante lhe dava ar com uma bomba manual. Regressou com um linguado enorme. Como sempre, comemo-lo grelhado.
A minha comadre perguntava pela minha mulher, pelos meus filhos e o meu compadre em silêncio absoluto. Até que, num determinado momento, encheu o meu copo de vinho, fê-lo brindar com o dele e disse: ‘Bem-vindo ao teu país, compadre!'”
Livros para ler o mundo, segundo Luís Sepúlveda
Moçambique
‘Terra Sonâmbula’, de Mia Couto “Aqui está o verdadeiro Moçambique”
Brasil
‘Viva o Povo BrasiLeiro’, de João Ubaldo Ribeiro “Este é o grande Brasil desconhecido”
Suécia
Todas as novelas de Henning Mankell “Ninguém tem contado melhor a história da Suécia contemporânea”
México
‘A região Mais Transparente’, de Carlos Fuentes “É puro México contando-se a si mesmo”
Estados Unidos
‘Sangue Vadio’, de James Ellroy “Permite conhecer e saber porque são assim os norte-americanos”
Patagónia
‘Fim de romance na Patagónia’, de Mempo Giardinelli “É o melhor que se tem escrito e com amor”