A baía de Ha Long tem uma reputação tão unânime entre viajantes como uma das sete ou oito ou dez maravilhas naturais do mundo que eu nem sequer tinha expectativas quando a visitei; tinha certezas. Apenas uma coisa me preocupava o clima. De todos os meses do ano em que não se deve ir a Ha Long, eu tinha escolhido o pior: Julho. Era a segunda vez que tentava, e era de novo em Julho.
A primeira, no ano anterior, tinha sido cancelada pela exata razão que faz de Julho o pior dos meses para visitar Ha Long: a passagem regular de tufões pelo golfo de Tonquim.
Desta vez, as coisas pareciam mais promissoras. Não havia nenhum aviso de mau tempo e, melhor ainda, estava mesmo mau tempo no dia anterior. Ou seja, a atmosfera descarregava os seus humores cinzentos antes de mim para permitir céu limpo e águas claras durante a minha visita.
Mas é melhor que explique já o que faz de Ha Long uma das maravilhas naturais deste planeta azul. Antes de tudo, a sua irrepetibilidade.
Há vários desfiladeiros como o Grand Canyon, três ou quatro imensas cataratas que dividem opiniões sobre qual delas é a mais impressionante, os desertos são todos iguais, as montanhas também, apenas a hora do dia em que são apreciadas as modificam. E os vulcões são tanto mais admirados quanto mais corresponderem a um ideal de perfeição, o que os banaliza e lhes dogmatiza a beleza. Claro que há mais lugares irrepetíveis, assim de repente penso nas esculturas cinéfilas do Monument Valley ou no aviso de hecatombe que é o glaciar Perito Moreno, mas que, precisamente, é um glaciar. E glaciares, também há muitos.
Essa é outra das características da baía de Ha Long. Aquilo é o quê? Como se define? Em que categoria se inclui? Não tem um grupo, é um fuori classe, como dizem os italianos dos atletas que não têm rivais. Ha Long está sem termos de comparação: não é apenas irrepetível, é também incomparável. Por fim, sendo uma beleza totalmente natural, ou seja, da responsabilidade da Natureza, tem qualquer coisa de equilibradamente humano, uma espécie de sentido da proporção, um bom senso estético que de tão perfeito quase não nos faz reparar que nós, seres humanos, não tivemos nada a ver com a sua idealização e concretização.
Ha Long faz-me pensar seriamente se jamais a nossa espécie poderia ter sido feliz em qualquer outro planeta.
“Tim não é um nome americano“, explicame o Tim, respondendo à minha pergunta.
Seria uma ironia histórica este jovem guia de americanos e outros ocidentais ter recebido um nome tão antipatriótico mas tão conveniente para a sua nova profissão. Desta vez o seu cliente é português, dos que gostam de trekking. Estou a arfar, a transpirar, a tropeçar e a tremer como o cavalo de um Sioux com a tropa toda do general Custer nos calcanhares. Subimos praticamente a pique por uma trilha de pedras soltas, um tapete de folhas húmidas e escorregadias, raízes enlaçadas como armadilhas para ursos e buracos encobertos no chão. Devem estar 40 graus e a humidade nos cem por cento. É uma da tarde.
“Tim” significa “coração” em vietnamita. “Todos os nomes têm um significado concreto, até mesmo o do nosso país”, explica o meu guia. Vietname significa algo como “Terra dos chineses do sul que não obedecem ao imperador da China”, e foi adotado já no século XIX quando as fronteiras atuais do país ficaram definidas. Ha Long por sua vez significa “dragão que mergulha”. O Tim fala de tudo isto, eu limito-me a comentar em monossílabos, sem fôlego, “a sério?” ou “uhmm” ou “interessante”. O programa dos 3 dias de navegação por Ha Long incluía um trekking de dez quilómetros para ver a baía do cimo da colina Navy Peak. O que não me foi explicado é que dos 10 km a caminhar, nove e meio eram em plano e a subida aos 268 metros da colina era em corta-mato quase vertical.
Quando chegamos ao cume esqueço todas as lamentelas. Aqui está a baía de Ha Long vista do alto centenas de ilhas pequenas, altas e elegantes que despontam de um mar azul-turquês concentradas no espaço de pouco mais de uma barragem do Alqueva. Labirintos de canais de mar, lagoas fechadas no centro de algumas colinas e outras que comunicam através de grutas por dentro das falésias, veleiros na preguiça, botes na pesca, traineiras e cargueiros ao longe, o Pacifico ainda mais longe. E imagino um dragão que mergulhou mas que tem ainda partes da cauda à superfície. Começamos a descer.
Aqui seguem dois homens tão diferentes quanto a espécie humana o permite. Um europeu, o outro asiático, um a envelhecer, o outro a fortalecer, um ofegante e calado para poupar energia, outro que fala pelos cotovelos. O europeu preocupado com excesso de peso e falta de exercício, o asiático feliz por estar a engordar com o dinheiro do seu primeiro emprego, depois de anos de penúria familiar para ele ter acesso à licenciatura em guia turístico.
O europeu com um sentimento de culpa judaico-cristão por estar tão fora de forma, consequência não tanto de copos e noitadas mas sim de uma vida agitada e desregrada a percorrer países. O asiático alegre por não ter sentimentos de culpa. É budista, diz, a culpa não faz parte do seu universo mental. E acrescenta: “Entre nós, o cristianismo é associado ao Mal. Todas as invasões que tivemos nos últimos séculos, toda a violência que sofremos, foi trazida por povos cristãos.” Descemos a corta-mato, tropeçando, suando, tremendo, praguejando. Regressamos de uma vista única sobre uma das maravilhas da Natureza, um lugar irrepetível num mundo que engloba tantas paisagens, tantas culturas e religiões, e sobretudo tantas pessoas diferentes mas todas elas com a característica comum de viverem no melhor dos planetas possíveis para se ser feliz.