Nesta foto há duas coisas a reparar: primeiro é o facto do meu motorista, o Kailash, ter parado a viatura praticamente no meio da estrada. Eu pedi-lhe para parar de forma a tirar a foto à placa com os destinos e os quilómetros. Ele já estava a ficar habituado, quando se aproximava uma chamava-me à atenção, para ver se eu queria fotografá-la também. Mas não pensem que foi só desta vez que ele parou o carro no meio da estrada. Era ele e eram todos. Encostar à berma é um conceito que não existe na Índia. Os outros que se desviem e é se querem. Tanta berma que ele tinha, mas fez o camião, e outros que tais, irem para a faixa contrária para se desviarem de si. E o mesmo nos acontecia a nós. Nós que nos desviássemos dos outros.
O Kailash perguntou-me uma vez se eu sabia quais eram os três requisitos necessários para se conduzir na Índia. E depois elucidou-me sobre eles. Primeiro, ter bons travões (uma grande verdade… fizemos brutais travagens devido a gente que se metia na estrada sem sequer olhar – parece que estão a atravessar os campos, comentou uma vez comigo, depois de um susto enorme que apanhámos com uma mulher que se meteu serenamente numa estrada principal a atravessar, nem se dignou a olhar para o lado, e nós íamos-lhe caindo em cima). Segundo: ter uma buzina! Ah pois, isso pude eu verificar perfeitamente quando finalmente tive uma campainha na bicicleta, apenas no sul da Índia. Aqui no norte não cumpri os requisitos, portanto.
E em terceiro lugar, mas não menos importante:
Ser doido.
Ora bem, essa é maior verdade de todas. É preciso ser doido para conduzir neste país.
Rimo-nos à gargalhada com estes requisitos e sobretudo com o último. Fique claro porém que o Kailash leva muito a sério a sua profissão e nunca receei absolutamente nada pela sua condução. Quem ia serena e tranquila, durante as viagens, era eu. Algumas vezes a ouvir música no ipod. (Quando parávamos, às vezes de corrida – como foi agora o caso – tinha de desenlear-me de uma porção de cordas e fios: o cinto de segurança (é obrigatório na Índia, mas só usa quem quer…), a fivela da máquina fotográfica, que colocava sempre por cima daquele, pronta a disparar pela janela, e depois os phones. Era um emaranhado terrível, sobretudo para quem tem pressa). O Kailash tinha aquilo que pode chamar-se uma condução europeia, civilizada. Não buzinava, acelerava quando podia, e andava em velocidade média ou baixa a maior parte das vezes, sobretudo por eu querer parar constantemente e ver tudo com atenção, mesmo da janela. Aqui não há pressas de chegar a lado nenhum, atenção. A nossa viagem é isto mesmo: andar a pé, andar de bicicleta, e andar de carro.
Tivemos porém um pequeno incidente. Já passámos por ele: na foto 3361 da crónica 56 pode ver-se o espelho partido. Foi um autocarro que passou tão rente a nós, a tamanha velocidade, que levou o espelho atrás. Na realidade eu nem sei como não aconteceu mais vezes. As estradas eram muito estreitas, e os autocarros a acelerar tão rente a nós eram medonhos.
O segundo elemento a reparar nesta foto é o “Blow Horn” (“apite a buzina”) pintado na traseira do camião. Não há camião que se preze que não tenha um bonito e trabalhado “blow horn” pintado nas traseiras. Se para nós, europeus, buzinar é sinal de aborrecimento, e normalmente nada bem aceite, na Índia é um orgulho e uma festa, buzinar. É aliás como ficou descrito na crónica 26: buzino, logo existo. Se estiverem dez carros a passar na estrada, são pelo menos dez buzinas que se ouvem. Alegres e infernais.
Muita curiosidade me despertavam estas meias-passadeiras, até que finalmente consegui apanhar esta boa foto. Perguntei ao Kailash se era suposto as pessoas atravessarem só meia estrada. Se só estavam protegidas meia estrada. A outra metade é bom que corram, porque já se acabou a proteção, não?… Ou é suposto ir a caminhar pelo meio da estrada até chegar à outra metade que se vê lá ao fundo?… Da condução indiana já espero tudo…
Pois isto não é nenhuma passadeira, claro. Na Índia tem outro significado. Que sarilho… Eu na bicicleta tenho de saber estas coisas. (Não basta ter de andar em contramão…). É sinal para abrandar, pois aproxima-se um cruzamento.
Hoje não saímos daqui, com tantas fotos para comentar com detalhe. Já há muito que ando para comentar isto, mas aguardava precisamente pela chegada desta foto. Alguns de vocês já repararam na presença permanente de um chuveiro ao lado das sanitas, nas fotos que tenho vindo a enviar dos hotéis. Pois aqui vê-se claramente esse chuveiro. Lá não usam papel higiénico para se limparem depois de fazerem as necessidades. Lavam-se. O papel que ali veem (tal como nas outras casas-de-banho) é uma cortesia para os estrangeiros. Diga-se de passagem que não constituiu novidade para mim: na Tunísia e no Egito, onde estive antes, o sistema é o mesmo. E diga-se de passagem, também, que é muito mais higiénico!
O mais engraçado são as casas-de-banho públicas. Também com um chuveiro, claro. Levam aquilo mesmo a sério: toca a lavar o rabo numa casa-de-banho pública.