Quando um gajo dá por ela está numa esquadra da polícia. Numa terra de cujo nome não fazemos a mínima ideia, no meio da Croácia, é natural que pensar que algo vai errado. Certo? Errado. Bem, mais ou menos errado, parcialmente certo…
Foi o que me aconteceu no dia 14 de Fevereiro, numa dia frio, muito frio… tão frio que é este elemento climático parcialmente culpado das nossas andanças policiais.
Acordámos em Zagreb com Belgrado na cabeça. Ia ser tranquilo chegar lá, certo? Errado. Caminhámos um bom pedaço até à estação de autocarros e íamos apanhar um autocarrozito para fora da cidade, ficando ali mesmo à entrada da autoestrada. Cada um munido do seu papel a dizer “Belgrado” plantámo-nos na zona onde se tira o talão para seguir viagem. Assim os carros tinham mesmo de parar, viam o nosso fácis esbelto e com cara de quem toma banho e é bom rapaz, e davam-nos boleia tranquilamente. Curiosamente, quem sabe por isso mesmo (por terem oportunidade de ver a nossa tromba), as boleias escasseavam, e um gajo teve de baixar as expectativas e pedir para nos levarem até à próxima estação de serviço, em vez de direitinhos para Belgrado. E mesmo assim não foi fácil! Quer dizer… um gajo habitua-se mal num instante, uma das maldições da nossa condição tão humana. Por isso quando esperávamos mais de meia hora já era um “ai senhor”. Foi mais ou menos isso que esperámos, uma hora, no máximo, até que nos levaram à primeira estação de serviço. Que não era agradável nem a tiro. Estava um frio de rachar, ora chovia, ora não chovia, e os poucos carros que passavam não estavam muito p’raí virados.
Tentámos o nosso habitual truque daquilo que denominamos a boleia organizada, onde fica um nas bombas e outro na área de descanso, mas nada. Nada mesmo. E frio. Frio mesmo! E aí está a culpa do ” man“, o frio! É que aquilo estava a desmoralizar um gajo!
– Olha, ’tá ali uma vila, depois deste campo… e se fôssemos até lá ver como param as modas? – perguntou um de nós. O outro acedeu, para bem dos nossos pecados. Caminhámos entre a lama, vimos seis ou sete veados a correr todos divertidos, atravessámos um riacho com uma ponte improvisada e, de repente, estávamos numa vila composta por uma estrada e casas de tijolo ao redor. Inspeccionámos uns estábulos onde podíamos eventualmente passar a noite, à medida que progredíamos. A noite ia-se abatendo – culpa nossa, por não termos deixado Zagreb mais cedo. Caminhávamos para trás e para a frente e não havia nada senão essas casas e uma igreja. A dada altura, obedecendo a um estereótipo estúpido mas que se confirmou, decidi bater à porta da única casa moderna, com carros modernos, achando que devido a estas condições, falariam inglês. É estúpido, eu sei, mas um gajo nestas alturas tem de se safar dê por onde der. É certo que a senhora falava inglês, mas quando eu lhe pedi para passarmos lá a noite ela disse que não ia dar, porque estava sozinha. Ok, sem problema. A senhora era fixe e tudo, não fez aquela cara de tu-tás-é-maluco-moço, o que é sempre bom…
Assim, resolvemos ficar por um desses estábulos, ou casas abandonadas. Encontrámos uma que era mesmo perfeitinha. Estava já breu, o próximo hotel, se é que era verdade existir um, era a uns dez quilómetros. Tinha de ser.
Entrámos lá no pardieiro, era fixe. Mas fixe, fixe, era uma fogueira! Para isso é preciso lenha. E para isso é preciso procurá-la. Foi quando nos aventurávamos por um campito onde não se via nada que ouvimos um cota, algures, aos gritos. Ele até podia estar a dizer “Viva o Benfica”, que o que eu ouvi foi “ponham-se a andar daí meus bois, “#$%&, #$%&% da #%&!!”. Yes, sir! Meia volta, volver, pegar nas malas e andar. Mas andámos pouco. É que não havia mesmo nada…
Por isso mesmo, voltámos à casita, o João deixou lá a mala, e fomos à loja comprar qualquer cena. Ou íamos. Não chegámos a ir porque apareceu a polícia. O cota chamou-os, de certeza. Eles inglês não falavam, nós croata tampouco, e por isso andámos ali a dançar p’rai meia hora para eles perceberem que éramos portugueses (sendo que tinham já os nossos passaportes na mão), que andávamos à boleia e… outras cenitas que um gajo não facilitou. Encostámo-nos à falta de comunicação para não dizer já tudo. Só que tivemos de dizer que tínhamos estado naquele casebre porque eles disseram “siga para a esquadra!” e a mochila do João estava na casa. “É que ele tem problemas nas costas e teve de a deixar num sítio seguro e não sei quê”.
Quando chegámos tivemos de esperar p’rai meia hora para que chegasse um intérprete. Via-se que o gajo se sentia bem em ser o erudito ali. Era tipo um robô. O polícia perguntava, e o gajo traduzia. Eu sei, é isso que um tradutor faz… nem sei se ele era polícia, ou amigo do primo do outro.
Explicámos a nossa estória, não mentimos em nada. Só omitimos a razão pela qual a mochila do João estava na casa – porque lhe doíam as costas, não porque lá íamos dormir! E tivemos de deixar impressões digitais, da palma das mãos, fotografias e essas palhaçadas todas. Foi desnecessário, digam o que disserem, mas enfim…
No final deixaram-nos na estação de comboio, eram onze da noite. Comboio à uma e meia. Não comprámos o bilhete para Belgrado. É que eu sabia que aquilo ia fechar, e assim, se entrasse sem bilhete podia sempre dizer “ah eu entrei agora mesmo, pá, ali naquela estação!”.
A dada altura apareceu um chico. Era mesmo chico. Algo nele mo dizia e como que se confirmou. Daquele pessoal com cara de, bem, Chico, que se planta, de pé, mesmo à tua frente, como se tu cheirasses bem. O gajo perguntou-me, em francês, a que hora era o comboio para Ljubljana. Eu levantei-me, e apontei, tocando mesmo, no horário, um cartaz p’rai do tamanho de duas pessoas, e disse que era às não sei quantas horas. O “man” nem faz o esforço de olhar p’ró cartaz e pergunta-me a que horas era para Zagreb. Isto ainda durou um bocado, até que eu decidi dizer “vê tu méne, ’tá mesmo aqui” e me sentei.
O gajo ia perguntando de onde éramos, que documentos tínhamos, para onde íamos, o que íamos fazer, se tínhamos alguns amigos em Novska (a terra onde estávamos). Pá não que eu seja paranóico, mas eu mandei ali um couro a dizer que trabalhava para o exército em Portugal, ia a uma conferência em Belgrado e o meu outro amigo, o Ricardo que é polícia em Portugal, vinha ter connosco dali a nada. Cenas. Depois o gajo começou a perguntar por droga. Disse que não mandava drogas, porque estava no exército e assim, e o gajo a dizer para eu ligar ao Ricardo, o polícia, para ele trazer. “Mas ele é polícia”. Estava com um ambiente meio tenso, e tive mesmo de lhe dizer, firmemente “Méne, eu não lhe vou ligar, pára de perguntar”. Enfim. No final correu tudo bem, e o parente, depois de ter pedido dinheiro e outras cenas que não vale a pena contar, lá debandou.
Seguimos para Belgrado, onde apanhámos um polícia fronteiriço atrasado mental (“Passport!!”, gritava, enquanto o João lhe tentava dizer que tinha encontrado uma carteira, e enquanto o seu colega, nas suas costas, fazia aquele sinal com o dedo indicador de demência) e um pica dos finos, que aceitou os nossos dólares direitinhos para o seu bolso…