Tive o prazer de privar com ele num dos momentos mais difíceis, até agora, da viagem. Com o tempo, acredito que será uma boa história para contar mas na altura apenas quis que o momento voasse velozmente. A noite avizinhava-se e a mota havia parado, pela enésima vez, no meio do nada. Após termos sido rebocados durante três quilómetros até uma pequena aldeia de berma de estrada – Kulgaria – e de o mecânico nada ter sido capaz de fazer, pernoitámos ali mesmo – numa banca de madeira na rua.
À nossa volta rondavam mais de cinquenta indianos que, com o passar das horas, foram dispersando. Ele foi permanecendo ali, fascinado com a Kashi e, após alguma hesitação, venceu o embaraço e ganhou coragem para se aproximar. Quase a sussurrar, perguntou o meu nome e de onde era. Fiquei atónita – o seu inglês era quase perfeito. Tagarelámos durante mais algum tempo e quando se apercebeu que íamos dormir na rua, garantiu-nos que era seguro e que no dia seguinte, bem cedo, estaria lá de novo. Naquele momento, decidi que queria escrever um retrato indiano sobre ele. Desenganem-se porque não prendeu a minha atenção por simbolizar algo típico da Índia. Pelo contrário, é pequenino, gordinho, invulgar e encantador – por isso, quis fixá-lo para sempre na minha memória e dar-lhe vida.
Estamos sentados a conversar numas cadeiras de plástico dispostas à sombra. O discurso dele é baixo, quase sussurrado, como se não quisesse que mais ninguém ouvisse e tive, muitas vezes, de lhe pedir para repetir. Enquanto estamos juntos, o mecânico vai tentando arranjar a nossa mota. Devo dizer que todos os seus esforços foram infrutíferos porque, horas depois, quando deixámos a pequena aldeia, a mota voltou a dar de si sem termos sequer percorrido um quilómetro.
My name is Sudip Samanta, escreveu no meu caderno. Nasceu a 27 de Abril de 2001 e tem nove anos. Este “pequeno exemplar” da Índia cativou-me e preencheu todas aquelas horas de espera e desânimo.
É filho único e, enquanto o pai é dono e gere uma loja de saris na berma da estrada, a mãe fica por casa, como grande parte das mulheres deste país. Sabe falar inglês, hindi e bengali e, na escola, frequenta o quarto ano de escolaridade. Perguntei-lhe o que queria ser quando crescesse. Médico, retorquiu, quero ser médico na América. Falámos um pouco sobre o meu país e nisto suspendeu o que dizia e saiu a correr. Voltou pouco depois com o livro da escola. Não sei onde fica Portugal mas sei como é a bandeira, afirmou sorridente. Abriu o livro e fez questão de me mostrar. Procurei um mapa e apontei-lhe o meu país. Isto é mesmo um país, perguntou-me surpreendido. É tão pequenino, acrescentou ainda.
Continuava admirada com o conhecimento de inglês do Sudip. Devo dizer que, se não tivesse sido ele não sei como iríamos sequer comunicar com o mecânico. Ninguém naquela aldeia parecia saber uma única palavra de inglês e o Sudip foi incansável na tradução de tudo o que precisámos.
Apeteceu-me brincar com ele e perguntei-lhe se tinha namorada. Olhou-me envergonhado e disse que não. Proferiu ainda que também nunca iria casar e ter filhos. Ri-me e disse-lhe que com o tempo ia mudar de opinião. Não vou não, vocês dão muito trabalho, proferiu por fim.
Não tem internet em casa – o que não me surpreendeu – e não gosta muito de ver televisão. Ocupa a maior parte do tempo a ler e, quando lhe pedi para me nomear o livro favorito, respondeu prontamente: Black Beauty. Quis saber quem era o autor. Após cinco minutos a puxar pela cabeça e a irritar-se consigo próprio por não ser capaz de evocar o nome, deu-se por vencido e admitiu que não se lembrava. O nome do livro despertou-me interesse e, pelo que li, é de uma autora inglesa, Anna Sewell, que, na primeira pessoa, retrata as memórias autobiográficas narradas por um cavalo de nome Black Beauty.
A certa altura, diminuiu ainda mais o tom de voz, aproximou-se do meu ouvido e disse-me que o mecânico estava a dizer palavrões. Adiantou ainda que ele estava sempre a dizer palavrões. Tentei que ele me reproduzisse o que estava a ouvir. Endireitou as costas, sorriu envergonhado e explicou-me que a mãe lhe tinha ensinado que aquelas palavras não eram para se dizer. O meu coração quase parou. Apeteceu-me abraçá-lo. Fiquei espantada e emocionada com a educação e delicadeza daquele miúdo de uma pequena aldeia esquecida da Índia.
Começo a fechar o bloco e a levantar-me para irmos dar uma volta quando me ocorre que ainda não lhe fiz a minha pergunta predileta. És feliz, interroguei-o já a sorrir na expectativa da resposta de um miúdo de nove anos. “Happy? Happy? I don’t know that word”. Por esta eu não esperava. Ainda pensei que ele não tivesse percebido a palavra e escrevi-a no meu caderno. Abanou a cabeça, não conhecia mesmo. Tentei explicar-lhe a minha conceção de felicidade mas como se explica algo tão pessoal a uma criança de outra cultura e com um grau de entendimento distinto do nosso?
Este momento de questões com um propósito definido durou apenas dez minutos. No entanto, estivemos juntos mais de doze horas. Por muito que eu tente retratá-lo, nunca irei fazer jus ao tempo que ele passou comigo.
Sudip, se algum dia leres isto – apesar de pouco provável – quero que saibas que foi um privilégio conhecer-te. De certa forma, dás sentido ao que vim cá fazer. É como se fosses uma das explicações que constitui a desculpa por eu ter feito as malas e partido. Se alguma vez passarem nesta aldeia, façam questão de o conhecer.