Se o ar de Vientiane, capital do Laos, tivesse pulmões, não lhe dava muito tempo de vida. Longe da azáfama e caos característicos das capitais asiáticas, Vientiane não deixa de contrastar com a pacatez do resto do país.
A principal atracão turística da cidade não são os templos ou os pagodes, são as embaixadas. Vientiane funciona como cidade de escala para quem está no Laos de passagem, rumo aos países vizinhos. Foi aqui que tratei do visto para o Vietname e é aqui que os turistas tratam, também, do visto para o Camboja ou ate para o Myanmar, que não faz fronteira com o Laos.
Escrever que sou jornalista nos formulários de entrada nestes países, está fora de questão. O jornalista, principalmente no Vietname e Myanmar (neste país a entrada é mesmo negada aos jornalistas) é tão bem aceite como os políticos são no nosso país (embora o jornalista também não seja muito bem encarado por terras de D. Sebastião, “o desejado” ou “o encoberto”, que ainda está por sair das nuvens – pena que o nosso céu seja tão descoberto). Nestes países, sou estudante.
Andar a pé por Vientiane não dá o prazer que tenho tido nas minhas caminhadas por outras cidades e andar sem mapa, aviso já, pode dar mau resultado. Numa simples caminhada da embaixada do Vietname para o meu hotel, perdi-me de tal maneira que, viria a saber mais tarde, já tinha saído do mapa. Valeu-me um senhor que me levou de mota ao destino – e não me canso de elogiar a simpatia das gentes do Laos.
Pedir referências aqui é escusado e o resultado acaba por ser uns sons que dariam um daqueles CDs para adormecer ao som da natureza. Não se trocam palavras, trocam-se onomatopeias, pelo menos é como me soam as respostas que vou ouvindo. Isto, acrescido aos braços que apontam nas mais diversas direções. Desconfio que uns perceberam que lhes estava a perguntar para que lado ficava o Camboja, outros o Vietname e outros, pela extensão das suas respostas, terão percebido que eu queria saber qual o caminho para a felicidade. Entre perguntar direções e assistir a um combate de Kung-Fu vai uma curta diferença, que creio só existir nos trajes.
Atravessar ruas também é um desafio. Presumo que exista um seguro para travessia de ruas, por estes lados. Se, como escrevi numa crónica passada, é comum escrever-se que os rios “serpenteiam”, também nós temos que serpentear por entre carros, motas e bicicletas, correndo o risco de ficar tão espalmados como o animal que deu origem ao verbo supracitado.
Por volta das 22h deixa de haver movimento na cidade. Certa noite, estava à conversa com uma rapariga escocesa e com um senhor natural da Papua Nova Guiné (perdoar-me-ão por não saber designar a sua nacionalidade), que merecerá – o senhor, claro está – um destaque merecido mais à frente. A conversa era regada, como tantas outras, pela cerveja local, a Beerlao, quando fiquei a conhecer a vida paralela – e perpendicular, porque não – da noite em Vientiane.
Passaram dois miúdos, que diria que tinham 10 anos, mas que afinal um tinha 15 e o outro 11, que apontaram para a escocesa, sorriram e disseram “mummy!”. Ora a “Mummy”, além de estar bêbada, vive na Tailândia e vem ao Laos regularmente. Conheceu estes miúdos, irmãos, abandonados pela mãe que se prostitui, há três anos. No ano seguinte reencontrou-os, armados com navalhas. Tinham-se juntado a um gangue, não por opção, mas por imposição das “lady boys”, nome dado aos transexuais, que lideram redes de prostituição e gangues de crianças de rua – e se os do Jorge Amado eram os capitães da areia, estes serão os capitães do templo – cuja tarefa, valha-lhes isso, não é criminosa, é pedir dinheiro aos turistas, que vai, na integra, para as “lady boys”. A recompensa é não serem agredidos.
Fumam, riem, brincam com a “Mummy”. Ninguém adivinharia a vida que levam nem que dormem num templo em reconstrução. Parece que estes ainda não perderam a inocência, mas que apenas a podem desfrutar quando se sentem seguros.
“Por cada miúdo que pede na rua, há uma “lady boy” na esquina a controlá-lo”, explica a Mummy, que passa a ser o seu nome nesta crónica, até porque não decorei o verdadeiro. A dicção amolecida pela cerveja e as cabeçadas da rapariga na atmosfera – ou será uma forma de matar mosquitos? – não ajudam. É a minha defesa para não ter decorado o seu nome.
A verdade é que, assim que os miúdos voltaram para a sua vida real, as “lady bois” começaram a passar com regularidade de mota, provavelmente à procura dos dois irmãos, para lhes extorquirem o dinheiro que o Joe lhes deu. E calha bem falar agora do Joe, porque faço a ponte – vamos chamar-lhe “Ponte da Promessa” – para falar deste senhor, o tal natural da Papua Nova Guiné.
Quando soube que eu era português os seus olhos abriram – e aqui tiremos-lhe o chapéu porque, já se sabe, outro dos efeitos do álcool é o aumento do peso das pálpebras, que têm um metabolismo muito sensível ao efeito da cevada e de outros cereais fermentados. O sonho máximo do Joe, o desfecho ideal para a sua vida – as palavras, ainda que adaptadas, são dele – é visitar Lisboa e Fátima. A sua filha mais velha chama-se Jacinta. Se tivesse outra filha seria Lúcia e, se o primogénito fosse rapaz, chamar-se-ia Francisco. Assim teríamos os três pastorinhos ressuscitados e deslocados para o outro lado do Mundo, para esta pequena ilha que faz fronteira com a Indonésia.
Joe não sai de casa sem o terço. Acredita que transporta consigo a “Mãe”. E não estou a trazer de volta à conversa a escocesa, que entretanto se tinha escondido na casa-de-banho com medo que o Joe tivesse segundas intenções consigo, outro sintoma que o álcool dá a algumas pessoas, a paranoia, já que o Joe me pareceu das pessoas mais puras que já conheci. Joe transporta consigo a “Mae”, dizia eu antes de entrar em contradição, já que acabei mesmo por trazer a escocesa à conversa, que ele acredita protegê-lo quando precisa. Para quem já trabalhou em minas, esta crença não deixa de ter o seu significado.
Mostrei-me fascinado e orgulhoso – e estava, de facto – com este sonho do Joe. “E como é a vida na Papua Nova Guine?”, Perguntei. “Dura. Os políticos deram cabo do país”. “Quando fores a Portugal partilha esse desabafo com os portugueses, que vais ter conversa suficiente para ires de Lisboa a Fátima sem notares o tempo passar”, garanti-lhe.
“Chove lá fora, no vasto mundo, com tão denso rumor é impossível que, a esta mesma hora, não esteja a chover sobre a terra inteira”, escreve Saramago em O ano da morte de Ricardo Reis. Aqui chove com um denso rumor, também, e debaixo da chuva, ás 24h em Vientiane, passam-se coisas que também se passam na terra inteira: crianças abandonadas e, como uma desgraça nunca vem só – a desgraça tem essa particularidade de nunca estar abandonada, embora não costume andar com as melhores companhias, diriam os seus pais, não fosse a desgraça órfã – há quem se aproveite destes miúdos Neste relato ficámos a saber das “lady bois” mas, por estas bandas, há também um forte turismo sexual, com os turistas a vir à procura de companhia feminina e, alguns, de crianças. A esta segunda modalidade ainda não assisti. Ainda bem.
Costuma dizer-se que o Mundo é pequeno. Apetece-me dizer, face a tudo o que de mal se vai passando pela terra inteira, que o mundo pode ser pequeno, mas cabemos cá todos.