Da pequena janela do avião, a ilha surge como um deserto no meio do oceano. Plana e de vegetação rasteira, rodeada por um anel de areia dourada, saltam à vista as cores ocres da terra e da rocha. Vista lá do alto, a Boa Vista é uma visão quase surreal, totalmente contrária à imagem que se tem de um destino paradisíaco. Mas esse é também o seu maior encanto, o modo como esse despojamento lhe serve de camuflagem, obrigando o visitante ao prazer da descoberta e da surpresa.
Das 10 ilhas que compõem o arquipélago de Cabo Verde, a Boa Vista é a terceira maior, uma das menos populosas, mas também a mais próxima da costa africana, a apenas 455 quilómetros de distância. A influência do continente sente-se no clima seco e no vento quente que sopra desde o deserto do Saara. A chuva é um bem raro. Em 2008 caiu abundantemente durante quatro dias seguidos, mas já há mais de quatro anos que tal não acontecia. A paisagem é árida, mas nem por isso menos rica na sua diversidade: dunas, oásis de palmeiras, florestas de tamareiras, leitos de rios secos e extensas praias de mar cálido, com quilómetros e quilómetros de areal virgem.
A ilha tem apenas uma estrada alcatroada, que liga o aeroporto à capital Sal Rei, a vila piscatória onde vive a maior parte dos habitantes da Boa Vista.
O resto são vias em empedrado, do tempo da colonização portuguesa, e caminhos em terra batida. O isolamento ajuda a explicar o elevado estado de preservação da ilha, que entretanto poderá estar ameaçado com a construção de alguns megaprojectos turísticos, impulsionados pela abertura do novo aeroporto internacional do Rabil, no final do ano passado. Aparentemente indiferente às promessas da invasão turística, pelas ruas de Sal Rei, a vida quotidiana continua a correr como sempre. Numa esplanada junto ao porto de pesca, um pescador entrega ao proprietário dois enormes atuns, acabados de pescar, que o filho deste limpa logo ali, com um enorme facalhão. Em frente à baía do porto, avista-se o ilhéu de Sal-Rei, onde os portugueses construíram o Forte Duque de Bragança, hoje em ruínas, para proteger a vila dos ataques dos piratas. Um grupo de jovens, entretido à volta de umas cervejas, mete conversa com os forasteiros.
“Portugueses? Ah, então não são estrangeiros”, atira um deles, com um enorme sorriso. Apresentam-se como surfistas e oferecem-se como guias para nos levar aos “melhores spots da ilha”. A simpatia é genuína e a conversa continua, tendo como tema a votação de Cristiano Ronaldo como melhor jogador do mundo o futebol português é aliás tema recorrente por estas bandas.
Devido aos maus acessos, o melhor modo de percorrer a ilha é em veículos todo-o-terreno. Em Sal Rei alugam-se jipes e motos 4. Outra solução é alugar um táxi (que aqui são pick-ups) por um dia inteiro e partir à descoberta, tendo como guia o próprio motorista, algo que estes fazem com bastante agrado. Foi a nossa escolha e é já com João ao volante, o motorista de 25 anos que nos próximos dias se transformará num amigo inseparável, que deixamos Sal Rei. Seguimos pela Via Pitoresca, outrora a principal via para o interior da ilha, que atravessa a Floresta Clotilde, uma zona de tamareiras e acácias, plantadas para proteger as antigas salinas das areias do vizinho deserto de Viana, um antigo vale fértil tapado por dunas de areia branca trazidas pelo vento que sopra do Saara. A meio do caminho saímos do trilho, para avançar, aos solavancos, por um morro de rocha solta, em direcção à praia de Viana, na parte norte da ilha.
O mar já se vê ao longe. A praia, enorme e completamente deserta, está protegida por imponentes dunas. Junto à rebentação, o esqueleto do Cabo de Santa Maria, um barco espanhol aqui encalhado desde 1968, dá um aspecto de ficção científica ao local e lembra como estes mares podem ser traiçoeiros em redor da ilha existem mais de 100 navios naufragados.
Regressamos a Sal Rei ao fim da tarde. Na praia de Cruz, no norte da vila, um grupo de jovens ensaia uns passos de capoeira. A influência brasileira na cultura da ilha é muito antiga, começou com os marinheiros que aqui aportavam e foi reforçada nos últimos anos, através de uma pequena comunidade brasileira entretanto estabelecida na ilha, onde também vivem alguns portugueses, espanhóis, ingleses e muitos italianos. O português Pedro, 42 anos, chegou pela primeira vez à ilha em 1990. “Vim em lua-de-mel e lembro-me que quando cheguei pela primeira vez pensei logo: quero passar mais tempo aqui”, afirma. Regressou por diversas vezes nos anos seguintes, para surfar. Em 2004, mudou-se em definitivo para a ilha, onde abriu o sofisticado restaurante Água d’Alte. “Foram muitas as razões que me levaram a esta decisão, está relativamente perto de Portugal, tem um bom clima, gente hospitaleira, bom peixe e marisco, mas, o que realmente me convenceu, foi a possibilidade de criar as minhas duas filhas com tempo”, justifica.
Ao lusco-fusco, o casario de arquitectura europeia ganha um novo brilho, recuperando por momentos o charme do rico passado comercial da ilha, quando exportava sal, tintas, algodão, gado, cal e cerâmica para todo o mundo. Pelo ar já se ouvem as famosas tocatinas, que todos os dias reúnem músicos e público, em improvisadas e animadas sessões de morna, um estilo musical que os habitantes locais juram a pés juntos ter nascido na Boa Vista, na época da escravatura do algodão uma pretensão também reclamada pela ilha de São Vicente.
No dia seguinte, aceitamos o convite de Andreia Valdigem, uma ex-jornalista portuguesa de 30 anos, radicada na ilha há cerca de um ano, como guia turística, que propõe uma incursão pela zona leste, uma das mais bem preservadas da ilha. Atravessamos o interior, passando primeiro pela localidade de Rabil, conhecida pela sua tradição oleira, e depois pelo meio do Oásis de Santo Tirso, uma zona agrícola situada junto à maior bacia hidrográfica da ilha. A influência do continente africano sente-se também na vegetação, como é exemplo a exótica árvore bao-bab, originária do Senegal e aqui conhecida como calabacera, cujos enormes frutos são usados para fazer um saboroso sumo. Pelo caminho vêem-se burros e cabras, abrigados do sol à sombra de pequenas árvores. Cerca de uma hora depois, de novo com o mar à vista, chega-se à aldeia abandonada de Curral Velho. Apesar da ilha ter pouco mais de 30 quilómetros (de comprimento e largura), os maus acessos tornam as viagens demoradas, mas também ajudam a explicar a preservação da paisagem.
Deserta desde os anos 70, devido à emigração para a Europa e Estados Unidos, a povoação está tão bem conservada que permite facilmente imaginar como era a vida destas comunidades autónomas, dedicadas à pesca e criação de gado. A praia fica a algumas centenas de metros e para lá chegar é preciso atravessar uma imensa salina, separada do mar por um cordão de dunas e palmeiras. A crosta de sal estala aos nossos passos, acelerados pela ansiedade de chegar à beira-mar, onde somos surpreendidos por um cenário de quilómetros de areal sem vivalma à vista.
Na aldeia, debaixo de um telheiro, já Luísa Ramos, 60 anos, prepara o almoço, organizado de véspera por Andreia. Bife de atum na brasa, “temperado com azeite, vinagre, alho, sal, limão e pouca manteiga”, explica a cozinheira, também conhecida na ilha como uma exímia cantadeira de mornas. Uma qualidade que demonstra em seguida, cantando enquanto vira e revira o atum na grelha. “Tenho 4 filhos e 5 netos. Trabalhei toda a vida fora, em Itália e Portugal, mas há uma altura em que temos de voltar à nossa terra”, desabafa Luísa, hoje proprietária de um restaurante em Sal Rei.
Entre mornas e histórias antigas, o almoço prolonga-se tarde dentro.
O sol já vai alto quando partimos do Curral Velho, novamente rumo a norte. Percorrendo a linha da costa, chegamos até à praia de Ervatão, um dos principais pontos de confluência das Careta Careta, uma espécie de tartaruga marinha que, de Maio a Setembro, acorre às areias da Boa Vista para depositar os seus ovos, num espectáculo único da natureza muito celebrado pelos habitantes locais. Para o local, hoje zona protegida, está projectada a construção de um futuro centro de investigação sobre tartarugas, financiado por Espanha.
O regresso a Sal Rei faz-se agora pelo interior, pela estrada que passa pelas tradicionais aldeias do nordeste, Cabeça de Tarafes, Fundo Figueiras e João Galego, a terra natal de João, o motorista, que aproveita para ir “visitar a mãe”. À porta de uma taberna, dois anciões que jogam o tradicional jogo do Uri, cumprimentam efusivamente os forasteiros. Lá dentro, Jair e Valdir, dois jovens de 19 anos, dançam ao som de ritmos hip-hop. Um deles faz hoje anos e convidam-nos para um brinde de grogue.
Já em Sal Rei, a tarde termina à volta de umas bafas (pequeno petisco) de lapa e búzio, que servem de aperitivo para o jantar no restaurante da Santinha, uma das instituições da vila, onde se podem apreciar especialidades como as cracas (um crustáceo envolto numa espécie de rocha e com um sabor parecido ao percebe), a lagosta suada ou a posta de atum grelhada.
É um local frequentado tanto por visitantes como por habitantes locais, tem apenas 4 mesas e as paredes forradas com escritos e fotos dos muitos marinheiros e pescadores que por ali passaram ao longo dos anos. “São jornalistas? Óptimo, mas as perguntas ficam para depois, agora sentem-se porque vocês vêm cá é para comer”, ordena Santinha sem admitir mais discussão.
Conforme combinado com João, o dia seguinte começa bem cedo. Após uma paragem na Povoação Velha, a primeira localidade fundada pelos portugueses e antiga capital da ilha, avançamos por uma estrada de terra fina, levantando atrás de nós uma nuvem de pó castanho. O destino é a costa sul, onde ficam situadas as melhores praias da Boavista: Santa Mónica e Varandinha. A primeira, com um areal de 18 quilómetros de extensão, é uma das maiores (e mais belas) de todo o arquipélago de Cabo Verde. Anteriormente conhecida como Porto Português, por ter sido aqui o primeiro lugar de desembarque dos portugueses na ilha, a praia de Santa Mónica é outro importante ponto de desova das tartarugas, também considerada zona protegida, mas o equilíbrio ambiental pode estar em risco, com a construção (já em curso) de um mega-empreendimento turístico na sua extremidade leste, hoje transformada num imenso estaleiro. Avançando para oeste o cenário é bem melhor, com quilómetros e quilómetros de areal intocado, até se chegar à não menos impressionante praia da Varandinha, famosa pela imponente gruta da Bracona e pelas boas condições para a prática de desportos náuticos, como surf ou windsurf.
A jornada prossegue, mais uma vez, sempre junto à costa, agora pelo deserto do Morro de Areia, no lado oeste da ilha, onde os sedimentos vindos do Saara formaram uma ampla zona de dunas, que se prolonga até à beira-mar, junto à Baía de Chava. A paz do cenário é interrompida pelo voo rasante de um avião, idêntico ao que no dia seguinte nos trará de volta ao mundo real. Uma momentânea nostalgia invade-nos o espírito. João olha para nós e sorri: “É, agora já sabem o que é a morabeza”.