Acordei eram umas nove da manhã e depois de ajeitar a bandeira de Marrocos na haste de fibra de vidro onde trazia a também a bandeira de Portugal e de um duche rápido, desci à recepção do hotel onde paguei os 100 euros por cinco horas de sono e fui até à garagem para preparar o alforge, que segurei ao suporte da garagem, com a bicicleta quase a cair sobre o segurança que não parava de olhar para os meus gestos de amarração.
– Shockram – disse para o guarda, o que quer dizer obrigado em árabe, mas o homem não saía da minha frente.
– Monsieur… argent pour le guardian – e fez o gesto de dinheiro roçando ao de leve o indicado com o polegar.
– Pas de argent, pas de biciclete – ameaçou, pelo que tive de puxar da carteira e pagar 20 dirahms para poder sair dali.
Nunca me tinha agradado a hipocrisia destes lugares chamados de chiques, onde a simpatia se compra a troco de gorjetas mais ou menos avultadas mas não era caso único em Marrocos. Agora esbarrem-me a saída por falta de um suposto imposto gorjeteiro é que nunca me tinha acontecido antes, tanto mais que quando deixei a bicicleta também deixei uma gorjeta ao segurança. Bem… tinha mais com que me preocupar e decidi ir ter com Alberto e Mustafá com quem tinha combinado me encontrar no coração de velha medina.
Mal me viu chegar, Alberto abriu os braços e gritou ao longe:
– José… hombre.
Sentei-me e lá contei em “portunhol”, a minha aventura da noite anterior e percebi na cara de Alberto uma desilusão imensa.
– La policia no es la solution – rematou, entre gestos que cruzava com um árabe para mim imperceptível, traduzindo assim, para quem connosco estava, as peripécias da noite anterior.
Estava na hora de seguir viagem e despedi-me de Alberto e de Mustafá. Era já quase meio-dia e ainda queria ir almoçar a Assilah. Alberto abraçou-me e disse-me, em espanhol, uma coisa que guardarei para sempre:
– Para conhecer um amigo é preciso uma hora, um dia para o admirar e uma vida inteira para o esquecer. Vai José. Que Deus te acompanhe.
E fui, tomando a direcção da Nacional que indicava Rabat, a capital daquele país que apesar de ser conhecido por ser o mais europeu dos países africanos, ainda assim deixava margens para o deslumbramento que queria levar dali. E fui. Mas há sempre um choque cultural, inevitável, e ao pedalar em direcção a Assilah olhava para os bairros pobres por onde passava, à medida que ía saindo da malha urbana de Tânger. O lixo estava por toda a parte e o cheiro, intensificado pelo calor, fazia-me estranheza. A dada altura, a cerca de 20 quilómetros de Assilah e com as praias por cenário de fundo, a par do lixo que era despejado à beira da estrada sem mais nem menos, fiquei horrorizado com o adiantado estado de decomposição de um cavalo que estava na berma da estrada, rodeado de dois cães que se alimentavam dos seus restos. O cheiro era irrespirável e tive de fazer um esforço para não vomitar o pequeno-almoço. Pedalei mais forte, perante o ladrar de ameaça de um dos cães, mas também porque aquela era uma cena surreal para mim. Bom… cheguei finalmente a Assilah. A marginal à praia, decorada com palmeiras e bandeiras de vários países, estava cortada ao tr
trânsito automóvel e o segurança lá me abriu passagem, ao mesmo tempo que, olhando para a bandeira que trazia, acabou por dizer as palavras mágicas de que estava há espera à muito tempo:
– Portugal… ohhh Cristiano Ronaldo – e acrescentou – je ne aime pas Cristiano Ronaldo. Sorri e em português respondi:
– Deves ser guarda-redes para não gostar do Cristiano Ronaldo.
Duzentos metros depois estava às portas da fortaleza portuguesa que havia sido construída no século XVI e onde tudo acontecia em Assilah. No interior as casas eram de um branco cal e mais parecia estarmos numa qualquer aldeia alentejana. Sem dúvida que parecia um bocadinho de Portugal e foi às portas desse legado histórico dos portugueses que almocei uma farta bandeja de peixe frito, acompanhada de dois litros de sumo de maça.
Após o almoço nem dei tempo para fazer a digestão e continuei estrada fora olhando os inúmeros vendedores ambulantes que montavam as suas tendas, improvisadas com paus e cobertura de colmo. Vendiam sobretudo melões, melancias e cebolas, na esperança de que algum transeunte captasse a sua atenção, até pela forma cuidada como dispunham os produtos. Entrei na província de Kenitra e ainda lá estava o edifício da fronteira, que tinha sido deixada como marco da história recente de Marrocos e que marcava a separação entre o domínio francês, a sul e o espanhol, a norte, de que apenas resta hoje a cidade de Ceuta, de que os espanhóis não abdicam por nada. Se o fizessem, podia ser um efeito dominó para outras regiões que reclamam a independência de Espanha e por isso Ceuta, apesar de estar em África, era uma questão política muito sensível.
Política à parte, a província de Kenitra é conhecida pelas suas terras férteis e de fácil acesso, como pude comprovar pelas extensas planícies que atravessa a um ritmo cada vez mais forte. Para ser sincero julgava que iria ser mais difícil, mas como o meu amigo Jorge me tinha dito em Portugal, depois de passar o mais difícil, iria me sentir mais forte e era um facto. E a principal estrada nacional de Marrocos até estava em boas condições e o topografia não apresentava desafios de maior, apesar da ameaça, ao longe, das montanhas. O maior desafio era mesmo o trânsito e os marroquinos não estão, seguramente, entre os mais prudentes condutores do mundo. A par da condução há que acrescentar o facto do parque automóvel estar muito degradado e os acidentes eram inevitáveis, como pude constatar várias vezes, depois de ter saído de Assilah. Já estava a pedalar há 8 horas e o sol há muito que tinha dado lugar à noite e, prevenido com luzes de emergência, pedalei o mais que pude. Decidi parar em Souk Larbaa e procurar um local para dormir, de preferência sem baratas. Algo me dizia para me dirigir aquele homem, que não devia ter mais de trinta anos e que se passeava pelas ruas de forma descontraída.
– Vous parlez français? – perguntei, ao que Mourad, com um sorriso, responde:
– Français, español, árabe, aleman.
Perguntei-lhe onde poderia encontrar um sítio onde dormir e Mourad responde em espanhol perfeito que passo a traduzir:
– Há aqui um hotel, mas podes ficar em minha casa – o convite era no mínimo inesperado e Morad percebendo a minha desconfiança, acrescenta:
– Não te preocupes… em Marrocos é algo normal. Eu sou Morad. Muito prazer.
Não sei porquê decidi aceitar o convite. Morad explicou-me então que a família tinha saído para Casablanca nesse mesmo dia e que até calhava bem, porque assim tinha companhia com quem conversar, especialmente o espanhol, pois há já alguns anos que não voltava a Espanha, onde tinha tirado um mestrado em agricultura, na região de Almeria. Morad mostrou-me as fotos dos amigos que deixou na pizzaria onde trabalhou para pagar o curso e sentia-se uma nostalgia naquele homem que com trinta anos se tinha casado há apenas seis meses, mostrando-me, orgulhoso, as fotos do seu casamento, todo ele com pompa e circunstância, à boa maneira árabe.
Morad trabalhava para uma firma espanhola, como supervisor numa quinta ali próximo, tendo a seu cargo cerca de 120 pessoas, na sua maioria mulheres, com quem articulava o trabalho duro que começava cedo, por volta das seis e meia da manhã.
– Aqui é complicado motivar as pessoas pois ganham muito pouco, cerca de cinco euros por dia, enquanto que em Espanha ganham dez vezes mais – explicou Morad, um caso de excepção num país onde a mão de obra não é qualificada, fruto da enorme taxa de analfabetização da população.
Perante tanta hospitalidade a única coisa que poderia fazer era mesmo oferecer o jantar a Morad, ao que este aceitou, convidando também Youness, um amigo e colega de trabalho que se juntou a nós num restaurante ali perto, onde jantámos galinha assada com batatas fritas. Tudo, para os três, ficou em cerca de oitenta dirahms (cerca de oito euros) – por isso – barato, mas Morat logo me avisou que nos centros turísticos os preços facilmente disparam. Saímos os três do restaurante e caminhamos um pouco, aproveitando eu para experimentar o sabor dos zebures, um fruto muito rico em vitaminas, doce e suculento que nasce em cactos de uma determinada espécie, que tinha tido oportunidade de ver um pouco por toda a parte e mesmo no sul de Espanha.
Tinha feita cerca de 165 quilómetros, o que não estava mal, se tivermos em conta que apenas pedalei de tarde e parte da noite e ainda parei em Assilah. Cansado demais para fazer o que quer que fosse, deixei-me adormecer no colchão improvisado que Morad tão generosamente me tinha arranjado na sua casa. O meu amigo iria se levantar bem cedo, cerca de cinco e meia da manhã, o que era óptimo, pois isso dar-me-ia tempo para tentar a ligação a Casablanca. Estava agora a 200 quilómetros do meu destino final.