Já decorreram quase nove anos desde que Pedro Passos Coelho abandonou o Palácio de São Bento, mas os amigos mais próximos do antigo chefe de governo (entre 2011 e 2015), nas mensagens por telemóvel que trocam regularmente com ele, continuam a chamá-lo “PM”. O trocadilho com os nomes próprios de Pedro Manuel [Mamede Passos Coelho] e a sigla habitualmente usada para designar “primeiro-ministro” não surge do acaso. Ainda hoje, Passos Coelho mantém a convicção de que “foi roubado”, admite à VISÃO uma pessoa que com ele conviveu, depois de a vitória eleitoral da coligação PSD/CDS-PP, nas legislativas de outubro de 2015, ter sido contornada pela inédita solução governativa que uniu as esquerdas (com PS, Bloco de Esquerda e PCP). “Passos Coelho teve muita dificuldade em aceitar e adaptar-se ao que aconteceu nesse período. Recordo-me de que, ainda durante algum tempo, utilizou o símbolo nacional na lapela, como se fosse o governante legítimo. Ficou sempre convencido de que a solução encontrada não respeitava o espírito da Constituição Portuguesa, que não cumpria as regras. Considera, aliás, que a oposição tinha o dever de lhe dar a oportunidade e as condições para governar, sendo ele o líder do partido mais votado. Para ele, a Geringonça é algo contranatura. Claro que isso criou ressentimentos com o PS, mas também com o próprio sistema”, explica a mesma fonte.

Naquele momento, Passos Coelho “sentiu-se traído”. “Estamos a falar de alguém com um forte sentido de Estado, com uma consciência de dever em relação à causa pública. Foi sempre esse o princípio que o moveu a trabalhar ao serviço do País, a assumir posições e decisões que lhe causaram dissabores e impopularidade. A partir daqui, passou a ver a política com outros olhos. Isso também explica as suas posições mais recentes”, completa.
O ex-governante reapareceu, em fevereiro deste ano, no comício da Aliança Democrática (AD) em Faro, para apoiar Luís Montenegro e Miguel Pinto Luz (que concorria por aquele círculo), mas foi o seu discurso, associando a imigração à criminalidade, que provocou ondas de choque. “Precisamos de ter um país aberto à imigração. Mas cuidado, porque temos de ter também um país seguro”, disse. A polémica em torno do “novo” Pedro Passos Coelho redobrou quando este surgiu ao lado dos autores do livro Identidade e Família – Entre a consistência da tradição e as exigências da modernidade (ed. Oficina do livro), um manifesto conservador em defesa da “família tradicional”, com textos de António Bagão Félix, Paulo Otero, Pedro Afonso e Victor Gil, entre outros.
Passos Coelho parece querer indicar o caminho a Luís Montenegro: uma “geringonça” à direita com o Chega
Autor do livro Os Políticos e a Crise – De Salazar a Passos Coelho (ed. Almedina), o politólogo José Filipe Pinto tem seguido atentamente o percurso do antigo primeiro-ministro, reconhecendo essa “mudança” a partir de 2015. “Com a Geringonça, Passos Coelho compreendeu que a política portuguesa estava dividida em dois blocos e que não bastava vencer as eleições para governar. Para ele, isso foi chocante. Ao mesmo tempo, permitiu-lhe compreender que, havendo uma estratégia à esquerda, também tinha de existir outra à direita. As suas declarações recentes apontam precisamente para uma passagem da moderação ao excesso, o que não acontece porque ele abdica dos seus princípios, mas apenas porque considera que esta deriva conservadora é necessária para poderem ser criadas pontes entre os partidos da direita. Naturalmente, isso inclui contar com o Chega. Foi isso que mudou nele”, conclui.
O período do “desencanto”
Ao mesmo tempo que deixava o governo, Pedro Passos Coelho enfrentava um drama pessoal, que o marcaria profundamente nos anos seguintes. Laura Ferreira, a sua segunda mulher – e mãe de Júlia, a sua filha mais nova (o ex-primeiro-ministro tem ainda mais duas filhas, Joana e Catarina, do seu anterior relacionamento com a ex-Doce Fátima Padilha) –, seria diagnosticada com uma grave doença oncológica. Passados dois anos, o então presidente do PSD decidiu que era chegado o momento de parar.
À VISÃO, um amigo próximo recorda aquela época de “desencanto com a política”. “Com o novo ambiente criado pela Geringonça, com este problema familiar, ele sentiu não ter condições para liderar a oposição. Houve um desencanto com o próprio sistema, levando a que se afastasse voluntariamente da política ativa”, conta. “Sentia que era hora de fazer outras coisas.”
Enquanto jovem estudante, Passos Coelho falhara a entrada no curso de Medicina por apenas algumas décimas. Impossibilitado de seguir as pisadas do pai – o pneumologista António Passos Coelho, antigo diretor do Hospital de Silva Porto (atual Cuíto), em Angola –, ingressou em Matemática Aplicada, mas apenas em 2003, já com 39 anos, concluiria a licenciatura, em Economia, pela Universidade Lusíada. A vida profissional estivera sempre umbilicalmente ligada ao partido, no qual entrou através da JSD, estrutura que chegou a liderar entre 1990 e 1995. “Ele queria mostrar que podia ter vida para além da política e do partido, que podia ter outra carreira.” Presidida pelo ex-deputado do PSD Manuel Meirinho, a direção do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP) fez-lhe um convite, tornando-se Passos Coelho professor convidado de Economia e Administração Pública, a lecionar para alunos de mestrados e doutoramentos.

Muito influenciado por Luís Fontoura – antigo governante e dirigente do PSD, ex-presidente do Conselho de Escola do ISCSP (falecido em 2014) –, Passos Coelho passava a partilhar os mesmos corredores com nomes como os de António Sousa Lara, Jaime Nogueira Pinto ou António Marques Bessa (falecido em 2022), este último apoiante da teoria política Nova Direita, promovida pelo filósofo francês Alain de Benoist (ver caixa na pág. 66), que o antigo primeiro-ministro agora parece também abraçar.
“Ele não mudou!”, dizem os amigos
Durante a era António Costa, Passos Coelho perdeu os cabelos finos, penteados com risco ao lado, que lhe desenhavam o rosto e realçavam os olhos azuis. O falecimento de Laura Ferreira, em 2020, foi um duro golpe. Nestes últimos anos, o ex-primeiro-ministro teve “muitas pressões para regressar à vida política ativa, muitos apelos de quem lhe dizia que o partido e o País precisavam de si, da sua capacidade de liderança e executiva”, lembra outra pessoa que lhe é próxima. Em todas essas ocasiões, Passos Coelho respondeu sempre que o seu tempo “tinha passado”, embora acrescentasse que, em política, “nada é definitivo”. “Quando falámos a última vez, recordou-me que tinha uma filha ainda adolescente, que vivia sozinho com ela. Quem vai para a política não pode ter horários para os filhos. Não colocava de parte a hipótese de, um dia, regressar caso a situação se alterasse, mas não fazia planos”, confidencia.
Na ressaca das últimas intervenções públicas de Passos Coelho, muitos apontaram para uma mudança “radical” do antigo primeiro-ministro. Os amigos de longa data rejeitam essas avaliações, que descrevem como “alarvidades”.

“Conheço o Pedro desde tenra idade, quando, miúdos, brincávamos, sendo vizinhos, na então cidade de Silva Porto”, diz à VISÃO Miguel Matias, reconhecendo ter nele um dos seus “melhores e sempre presentes amigos”. “Conheço muito bem o seu pensamento, o seu caráter e, acima de tudo, a sua verticalidade. O Pedro é, genuinamente, uma boa pessoa. Por isso, conhecendo-o, não vejo nem imagino que ele tenha mudado.” O advogado lamenta as críticas que lhe são dirigidas, recordando que a última frase do amigo, na sessão de apresentação do livro Identidade e Família, foi: “Eu sou do PSD!” E sublinha: “Ninguém ouviu, ninguém ligou, ninguém amplificou. Pois, está claro, não interessa! Mas quem o conhece desde sempre sabe uma coisa: O Pedro não muda. O Pedro não resvala. O Pedro é, e será sempre, o que conhecemos: um homem íntegro, enraizado e com um pensamento humanista e moderado.” Miguel Matias reconhece no amigo de infância – com quem nunca fala de política – o caráter “herdado do pai”, uma certa “austeridade transmontana”, de “dizer sempre o que se pensa, mesmo que isso possa ser incómodo”. “Era o que faltava, isso [Passos Coelho dar opiniões] não poder acontecer! A voracidade destruidora de caráter, algo tão característico deste País pequeno, faz-nos passar de bestiais a bestas em segundos. Mas não é assim! O humanismo não passa para o sectarismo ou para o extremismo porque queremos”, conclui.
À VISÃO, João Gonçalves também rejeita que Pedro Passos Coelho se tenha tornado um conservador. “Conservador? Isso, só eu”, graceja. O antigo adjunto do ministro Miguel Relvas (entre 2011 e 2015) admite que chegou a ser “muito crítico” de Passos Coelho – seriam notícia as suas farpas, dirigidas ao então presidente do PSD, publicadas no blogue Portugal dos Pequeninos –, mas, depois de o conhecer pessoalmente, diz ter passado a sentir por ele “muito respeito”, mantendo ambos, até hoje, uma relação de “grande proximidade e consideração”. “Passos Coelho é a pessoa mais tolerante que conheço. A sua vida fala por si. Tudo o que se tem dito sobre este assunto é simplesmente ridículo. Não faz sentido nenhum. Falamos de uma pessoa estruturalmente liberal, adepta daquilo a que chamamos ‘sociedade aberta’. Não é um conservador, de maneira nenhuma”, garante. Agora que volta a colaborar com o atual Governo, João Gonçalves diz que os “ataques” a Passos Coelho só se explicam com “uma conceção recente e restritiva da liberdade de expressão, que considera que a ‘boa liberdade de expressão’ é apenas aquela que vai ao encontro da nossa opinião. À esquerda, há um peso muito grande daquilo que é considerado correto ou não dizer-se e fazer-se publicamente. Qualquer desvio é imediatamente classificado como uma heresia, uma coisa reacionária. Nos 50 anos do 25 de Abril, isto não faz sentido nenhum. Passos Coelho diz o que pensa. As liberdades públicas não têm dono. E Passos Coelho é um grande amigo das liberdades públicas”, afirma.

Um político com futuro?
Dentro do atual PSD, as opiniões dividem-se. À VISÃO, um membro do partido fala de “um aparente ajuste de contas” de Passos Coelho com o passado, destacando a entrevista, dada ao podcast de Maria João Avillez, no Observador, em que o ex-primeiro-ministro atirou a Luís Montenegro, Paulo Portas e Cavaco Silva. “Neste momento, Passos Coelho parece querer apontar o caminho a Luís Montenegro. Está, acima de tudo, interessado na estabilidade do País, mas consciente de que, para isso, são precisos, hoje, novos modelos, outra forma de se estar na política. Julgo que quer mostrar ao atual PSD que uma governação de sucesso só se faz através de acordos com o Chega. Dentro do partido, isto não é unânime, naturalmente”, diz a mesma fonte.
O politólogo José Filipe Pinto acompanha esta visão. “Passos Coelho acredita que o PSD, ao procurar muito o centro, como fez Rui Rio, está a delapidar todo um eleitorado de direita, que assim só se revê no Chega. O apelo à unidade, neste caso, passa por dar músculo à direita. Passos Coelho não tem dúvidas de que é o homem capaz de unir todos os partidos da direita e, depois da experiência da Geringonça, sente-se confortável em incluir o Chega, desde que este projeto seja liderado pelos sociais-democratas. Para Passos Coelho, não há riscos, porque considera o partido de André Ventura ‘controlável’, tendo em conta a dimensão dos dois partidos”, realça. No PSD, há quem continue a fechar esta porta, temendo pela própria democracia.
Certezas, em política, há poucas – neste momento, apenas a de que haverá presidenciais em 2026 e que, a partir de outubro, Luís Montenegro enfrenta um duro teste na aprovação do Orçamento do Estado para 2025. Passos Coelho parece disponível para continuar a intervir e até para regressar. Resta saber para fazer o quê. jsantos@visao.pt
O líder conservador desejado por Paulo Otero
O antigo primeiro-ministro parece acompanhar a estratégia da Nova Direita, popular no ISCSP. Paulo Otero vê Passos Coelho como “representante dos princípios conservadores”
O professor catedrático Paulo Otero admite que esteve “apenas três vezes” com Passos Coelho, não lhe conhece as “convicções”, mas não hesitou em incluir o nome do antigo primeiro-ministro no topo da lista de personalidades a convidar para escrever um capítulo do livro Identidade e Família. Figura de prestígio da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Paulo Otero confirma que Passos Coelho não figura como autor apenas porque “não conseguiu terminar o texto a tempo”. Contudo, isso não o retirou da equação, passando a ser a figura desejada para apresentar o manifesto que reúne os princípios defendidos pelo Movimento Ação Ética (MAE), que conta ainda com figuras como António Bagão Félix, Pedro Afonso e Victor Gil.
Com uma produção nula de escritos (de todos os géneros) – “é um político sem obra”, descreveu, à VISÃO, um outro professor catedrático –, o antigo primeiro-ministro tem no capital político acumulado no PSD e no governo a sua melhor arma para se afirmar como elemento aglutinador da direita.
“Acredito que Pedro Passos Coelho não está reformado, nem nada que se pareça. Acho, aliás, que vai estar a fazer política nos próximos anos”, aponta Paulo Otero. E poderá representar o MAE? O catedrático não tem dúvidas: “Acho que sim. É alguém que pode contribuir para que haja uma convergência entre os princípios e valores do grupo e a política.”
No início de 2018, Passos Coelho ingressou como professor associado convidado no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP), instituição com um histórico de grandes nomes da direita intelectual portuguesa. O anúncio da sua contratação provocou protestos, chegando a circular um abaixo-assinado, promovido por alunos que punham em causa a “meritocracia” do novo professor. Numa escola que convive com doutrinas como a da Nova Direita, fundada pelo filósofo francês Alain de Benoist, seis anos volvidos, Passos Coelho parece agora mais alinhado com o estatuto de político capaz de cumprir o desiderato de liderar as direitas, incluindo movimentos ultraconservadores, nacionalistas e identitários.