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Visão
Por volta dos meus 15 anos, a minha mãe deu-me um cinto de cabedal, preto, bastante largo e com uma grande fivela de metal amarelo. O cinto, belíssimo, fazia parte da farda do colégio de freiras lisboeta, onde ela tinha estudado até ao antigo 7.º ano dos liceus.
Nesse dia, rimo-nos as duas quando eu me estreliquei para conseguir prendê-lo no último furo e, mais ainda, quando ela contou que usava o cinto assim apertado para fazer com que a saia da farda subisse um pouco acima do joelho.
Lisboa do final dos anos 50 era uma cidade conservadora e atenta aos chamados bons costumes. As irmãs queriam ter adolescentes recatadas nas salas de aula, e uma das regras desse colégio era a proibição de as alunas adaptarem a farda, obrigatória, a seu bel-prazer.
Dali a menos de uma década, Rosarinho e a maioria das suas amigas iriam usar minissaias que pareciam cintos largos. O mundo, capital portuguesa incluída, tinha dado uma grande volta – mesmo que no tal colégio tudo pudesse continuar quase como dantes.
Foi desse episódio que me lembrei esta semana, ao receber um e-mail do diretor de turma da minha filha mais nova, que fará 15 anos em julho. No assunto lia-se “Mensagem da direção” e lá dentro pedia-se aos “caros pais” a “melhor atenção” para a seguinte mensagem da diretora da Escola Secundária Pedro Nunes (ESPN), em Lisboa:
“Caros Encarregados de Educação,
Agradecemos a vossa colaboração no cumprimento do regulamento interno da Escola por parte dos vossos educandos.
Os alunos devem estar na escola com vestuário adequado. Isso implica não trazer roupa de praia, nomeadamente calções de banho, chinelos, calções demasiado curtos e camisolas com excessivo decote.
Inclusivamente, em situação de exame, recomenda-se vestuário adequado sob impedimento de realização do mesmo.
Atenciosamente, Maria do Rosário Andorinha”
‘CALÇÕES ABAIXO DA CINTURA’
Ri-me para dentro e continuei a trabalhar, mas voltámos naturalmente ao assunto ao final da tarde, numa altura em que a polémica já estalara na internet. Notícias, publicações nas redes sociais, muita gente a lembrar que estamos na semana em que se celebram os 50 anos da liberdade conquistada com o 25 de Abril, e a diretora do antigo Liceu Pedro Nunes a desdobrar-se em explicações.
Ao Público, Rosário Andorinha disse que tinha havido chamadas de atenção por causa das roupas usadas pelos alunos. “Ultimamente tem sido excessivo”, adiantou: “Muitas raparigas, muitas alunas, chegam a vir praticamente só com uma espécie de top, só a tapar o peito e calções abaixo da cintura. E isto para estar numa sala de aula não é adequado.”
“Há tops que tapam apenas o peito e pouco mais. As outras pessoas também podem não se sentir cómodas, há outros alunos que se podem sentir incomodados.”
Ao mesmo jornal, Rosário Andorinha pediu “calminha” quando se evoca “a ideia do fascismo”, a propósito desta sua recomendação. E afirmou: “Estamos no 25 de Abril, toda a gente veste o que quer e bem lhe entender, às cores e às flores, mas há um mínimo previsto no regulamento interno.”
Acontece que o Regulamento Interno da ESPN, em vigor até 2025, apenas estabelece que os alunos devem “apresentar-se com vestuário que se revele adequado, em função da idade, à dignidade do espaço e à especificidade das atividades escolares”. Uma redação que, na sua essência, plasma o que ficou estabelecido no Estatuto do Aluno e Ética Escolar, aprovado pela Lei n.º 51/2012, de 5 de setembro – que nessa alínea termina fazendo referência ao “respeito pelas regras estabelecidas na escola”.
Quanto aos exames, não há qualquer referência a vestuário no Guia Geral para os exames nacionais do ensino secundário e acesso ao ensino superior, publicado em fevereiro deste ano.
Rosário Andorinha já veio entretanto a público dizer que nenhum aluno do antigo liceu Pedro Nunes será impedido de realizar exames por causa do vestuário. Mas não conseguiu esvaziar a polémica, que nos levou a querer saber com que linhas se cosem as direções das escolas, públicas e privadas, quando o assunto é o vestuário dos seus alunos.

NO CAMÕES ‘É PROIBIDO PROIBIR?’
De João Jaime Pires, diretor da Escola Secundária de Camões, em Lisboa, ouvi gargalhadas e uma primeira resposta óbvia: “Isso é perguntar à sua filha!” Atento à população escolar, pais incluídos, o professor sabe de cor que a minha filha mais velha frequenta o 11.º ano nesse antigo liceu onde é hoje grande a heterogeneidade dos alunos, nomeadamente quanto ao vestuário que escolhem usar nas aulas.
Nem de propósito, o diretor do Camões acabara de sair de uma palestra dada por Teresa Tito de Morais, no âmbito do programa para assinalar os 50 anos do 25 de Abril. Aos alunos, a fundadora e presidente do Conselho Português para os Refugiados falara sobre os seus tempos de exílio, passado na Suíça, entre 1965 e 1974. João Jaime Pires acabara, por isso, de ser recordado que a liberdade é um dos valores mais importantes e que as mulheres nem sempre tiveram acesso a ela.
“Neste momento, vivemos num mundo perigoso… O Camões só teve raparigas em 1972/73, quando o Veiga Simão [então ministro da Educação Nacional] obrigou o reitor Sérvulo Correia a aceitá-las, porque já não havia lugar no [antigo liceu] Maria Amália [Vaz de Carvalho] – e foram logo 500”, lembra.
“Elas tinham de vir de bata e ficavam na parte norte, escondidas, fora dos olhares dos rapazes. Era o tempo dos três dedos abaixo do joelho”, comenta, numa referência à peça de teatro de Tiago Rodrigues, sobre a censura no teatro, estreada em 2012. “E é evidente que, pouco depois, o 25 de Abril veio mudar tudo.”
Numa das paredes da sala 16 do antigo liceu, que está ainda a ser reabilitado, no âmbito da Parque Escolar, hoje lê-se a frase: “26.04.1974 os nossos colegas estavam diferentes, os nossos professores pareciam outros professores”, de José Alfaro, um dos antigos alunos citados no livro Liceu de Camões – 100 anos, 100 Testemunhos (Quimera, 2009).
Essa recordação faz parte de um projeto da artista plástica Fernanda Fragateiro, que espalhou frases relacionadas com o 25 de Abril pelas salas. Numa outra, os estudantes de 2024 ficam a saber que, dois dias após a revolução dos cravos, “em vez de dar a aula de francês, Mário Dionísio conversou com os alunos”.
O Camões tem um passado ligado ao anti-fascismo que, cinquenta anos após a queda da Ditadura, a direção não quer deixar esquecer. Também por isso, o que agora aconteceu no Pedro Nunes é motivo para refletir, acredita João Jaime Pires.
“Estamos num momento de alguma perplexidade que deve suscitar reflexão”, frisa. “Não quero acreditar que seja preciso regulamentar o que os alunos levam vestido para a escola, muito menos se uma camisola deve ser mais ou menos decotada. É preciso algum bom senso. Vale a pena refletir, se não caminhamos para aquilo que não queremos – que são outra vez os bons costumes.”

O diretor da Escola Secundária de Camões acredita, isso sim, que as escolas “têm a obrigação de conversar com os alunos e com os professores”, para não se chegar “ao extremismo de proibir”. Na sua opinião, na parede de uma das salas de aula podia estar um dos slogans do Maio de 68: “É proibido proibir”.
“Quando aparece um regulamento, é porque perdemos. Não conseguimos dialogar e resolver o problema. É um sinal”, nota. “É isso que penso ao saber das recomendações da direção do Pedro Nunes, ainda por cima muito viradas para as raparigas e com uma grande subjetividade. Onde são as fronteiras?”
Importante, diz, é clarificar o que está em causa, “para não ser pior a emenda que o soneto”, como dizia Sá de Miranda. “E pode-se conversar com os jovens, para que não tenham uma atitude contrária à ética. Entendemo-nos a conversar, é como no caso dos telemóveis”, compara. “Não são aqui proibidos na escola, porque podem ser um instrumento de trabalho, mas cabe também aos alunos serem responsáveis e saberem quando devem ou não usá-los.”
Para João Jaime Pires, basta ir à porta do Pedro Nunes para ver como os estudantes estão todos bem-vestidos. “Se calhar, notamos outras coisas, como não haver pessoas de diferentes etnias”, ironiza. “É importante refletir em tudo o que acontece, mas neste caso o primeiro a desmarcar-se foi o próprio Ministério da Educação [desconhecia a situação].”
‘É UMA NÃO-QUESTÃO NA ANTÓNIO ARROIO’
Para a adjunta do diretor da Escola Artística António Arroio, que teve a sua génese num edifício situado na Rua Almirante Barroso (junto ao então liceu Camões), a potencial ameaça de impedir a realização de um exame, por causa do vestuário, não deixa margem para dúvidas. “Ela excede as competências da escola”, sublinha Benedita Salema.
“Num exame nacional, as escolas não podem criar regras próprias – e, ainda por cima, restritivas. Aí, há um excesso”, explica.
No regulamento interno da António Arroio, à exceção da lei que se aplica a todas as escolas, “não existem recomendações relativamente ao vestuário, nem ao penteado ou à maquilhagem”, enumera. “E nunca houve, entre os professores ou os encarregados de educação, ninguém a considerar que era um problema que devia ser pensado.”
A António Arroio “sempre foi uma escola criativa”, lembra. “Às vezes, as pessoas são criativas na sua forma de se mostrarem ao mundo, e é isso que devemos fomentar. Faz parte da imagem da nossa escola os alunos serem criativos com eles próprios.”
“A maneira como os alunos se vestem é uma não-questão nesta escola. Quem diz alunos, diz professores e diz funcionários. E, se não forem criativos, também não tem mal nenhum.”

‘LIBERDADE RESPONSÁVEL’ NO VALSASSINA
À exceção do equipamento de Educação Física, os alunos do Colégio Valsassina, em Lisboa, cuja origem remonta a 1898, não têm nenhuma regra de vestuário. “Apenas devem apresentar-se com uma imagem cuidada – é isso que está escrito no regulamento interno”, diz o diretor pedagógico, João Gomes.
“Sentimos que deve haver espaço para uma liberdade no seu crescimento. Podem, por isso, vestir-se como entenderem. Se alguma vez houver uma situação que possa justificar uma conversa, conversa-se, mas não temos o hábito de definir regras a priori.”
A postura, no Valsassina é, pois, de liberdade “e no respeito pelo acompanhamento personalizado”, nota o mesmo responsável.
Fazendo um paralelismo com o uso dos telemóveis, João Gomes explica que se entendeu não os proibir no colégio. “Seria mais fácil deixá-los à porta a escola, mas procuramos ter uma postura pedagógica e, até à data, os indicadores têm-nos dado um certo conforto.”
Nesse mesmo sentido, o vestuário é visto como uma postura de “liberdade responsável”, partindo do princípio de que os alunos desenvolvem mecanismos de auto-regulação. “Há liberdade, repito, e há respeito. E, até à data, não sentimos necessidade de fazer uma comunicação mais assertiva.”
Aposto que Rómulo de Carvalho (1906-1997), que estudou e deu aulas no então Liceu Pedro Nunes, iria torcer o nariz ao e-mail da direção de Rosário Andorinha. Porque não é assim que o mundo pula e avança.
Começo já com a (minha) resposta à pergunta do título: sim, ainda podemos dizer que sim.
Estamos a menos de dois meses de eleições em todo o território nacional e fomos votar há menos de dois meses. Sabemos todos que a democracia não se resume – não se pode resumir – a esses dias em que, com dois pequenos riscos de esferográfica, damos o nosso contributo para o futuro em que mais acreditamos. Mas também sabemos que sem esses dias não há verdadeira democracia.
Um Governo apoiado numa maioria absoluta parlamentar chegou surpreendentemente ao fim. O Presidente da República optou por dissolver o parlamento na sequência da demissão de um primeiro-ministro que, de repente, se viu como suspeito. O caso judicial que tudo provocou parece, hoje, pouco significativo ou mesmo difícil de entender.
Apresentam-se candidatos às Eleições Europeias de 9 de junho. Pelo menos dois cabeças de lista nasceram mais de 20 anos depois do 25 de Abril ( Sebastião Bugalho, candidato pela AD, em novembro de 1995 e Francisco Paupério cumpre hoje mesmo, 24 de abril, 28 anos). Marta Temido nasceu no ano da Revolução dos Cravos, a 2 de março de 1974. Todos se apresentam com a necessidade urgente de combater potenciais desvantagens.
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Quando me deitei na noite de quarta-feira, 24 de abril de 1974, tinha acabado de passar os olhos pelo noticiário relacionado com as eleições presidenciais francesas marcadas para 5 de maio, disputadas sobretudo entre o socialista François Mitterrand, o gaullista Jacques Chaban-Delmas e o liberal Valéry Giscard d’Estaing – que, na segunda volta, viria a triunfar à tangente sobre o candidato da esquerda, no que seria o fim do gaullismo puro e duro, pouco depois da morte de Georges Pompidou. Tencionava ir, no dia seguinte, a uma tabacaria do Rossio comprar a última edição disponível do diário Le Monde e os números mais recentes dos semanários Le Nouvel Observateur e L’Express, grandes janelas rasgadas sobre o mundo, numa época em que ainda não era muito corrente ler, ou falar, em inglês.
Era redator do vespertino A Capital e, na primeira página da edição desse dia 24, tinha vindo anunciado que o jornal estaria presente no despique eleitoral gaulês “através do enviado especial Almeida Martins”. Ir a Paris era sempre uma excitação. Mas não cheguei sequer a ir ao Rossio no dia 25 e, mesmo que tivesse ido, não teria sido, decerto, para comprar Imprensa francesa, nem tão-pouco partiria para França nos dias imediatos. A verdade é que poucos portugueses se terão interessado, nos tempos mais chegados, pelo que se passava naquele país de além-Pirenéus.

A explicação é óbvia. Por volta das cinco da madrugada de dia 25, fui acordado pelo toque estridente do telefone, naquele tempo em que as campainhadas agressivas dos aparelhos pesadões faziam vibrar as paredes das casas. Quem estava do outro lado do fio era um dos subchefes da redação d’A Capital, Manuel Batoréo, a avisar que havia movimentos de tropas nas ruas de Lisboa. De uma esquina do Bairro Azul, vira militares a tentar escalar o muro do quartel-general. Quase todos os meus camaradas souberam também pelo Batoréo, a meio da noite, que, 40 dias depois da tentativa de golpe falhada do 16 de Março, uma ação militar voltava a tentar derrubar a ditadura, esse regime político interminável e caduco, instaurado no já remotíssimo ano de 1926, a que, à boca pequena, chamávamos fascista. Arranjei-me rapidamente e segui de táxi (já tinha carta, mas não carro e raramente conduzia) para a redação d’A Capital, então instalada no prédio da Rua Joaquim António de Aguiar, perto do cruzamento com a Rua Artilharia 1, onde antes fora a sede da Philips Portuguesa.
Nas ruas, ainda desertas, pairava o escuro silêncio característico das madrugadas na cidade. A única – mas grande – anomalia eram as marchas militares e, sobretudo, as músicas proibidas de José Afonso que passavam no rádio do carro. O coração batia-me com mais força do que o habitual, sentia-o a escoicinhar no peito e ouvia as suas pancadas surdas no interior da cabeça. A ditadura iria mesmo cair ou as forças do regime conseguiriam, desgraçadamente, travar o movimento? E – pergunta das perguntas – que movimento seria aquele? Do golpe de extrema-direita de Kaúlza de Arriaga, de que por vezes se falava baixinho e com temor, não parecia trata-se, pois nesse caso a rádio não passaria José Afonso. Era, pois, um movimento “de esquerda”: mas que esquerda? E o general António de Spínola, autor do bestseller intitulado Portugal e o Futuro, que toda a gente comprara em fevereiro e que quase ninguém lera, estaria implicado? De tão entregue a pensamentos exaltados, nem me lembro do que o motorista do táxi dizia, enquanto rodávamos pelas avenidas semidesertas.
A decisão de ignorar a Censura
Na redação d’A Capital, onde estavam já muitos camaradas, reinava uma excitação inicial e pura, porque íamos fazer o jornal das nossas vidas. Havia o Cáceres Monteiro, o Daniel Ricardo, o Pedro Vieira, o Appio Sottomayor, o António Carvalho, a Helena Marques, a Maria João Avillez, a Manuela Alves, a Joana Godinho, o Eduardo Lobo, o Pedro Oliveira, o António Santos, o Mário Alexandre, a Edite Esteves, o Hélder Pinho, o Luís de Barros, o Jaime Saint-Maurice, a Natal Vaz, a Maria Teresa Horta, o José Goulão, o Encarnação Viegas, o Joaquim Lobo, o António Xavier, o Inácio Ludgero, o Alberto Peixoto, o Joaquim Bizarro – e tantos, tantos outros que já confundo nos recantos da memória se estavam ali presentes nessa antemanhã esquisita ou se, pura e simplesmente, trabalhavam então noutros jornais, pois o ofício do jornalismo foi sempre feito de saídas e de entradas, de mudanças, de rotações e de regressos.
Nascera entretanto o “dia inicial inteiro e limpo” de que falaria Sophia e entrava pelas janelas uma luz baça, emanada do céu cor de cinza, a ameaçar água. Falava toda a gente ao mesmo tempo. Sentia a pequena náusea do nervosismo e o vago signo abdominal do confronto em perspetiva, mas, sobretudo, uma alegria tão intensa que parecia que o peito me ia estalar. Rodolfo Iriarte, o chefe da redação, de eterno cigarro aceso e ajeitando os óculos de lentes grossas, telefonava para as casas do diretor, o católico e monárquico Henrique Martins de Carvalho (que anos antes tinha sido ministro da Saúde e Assistência de Salazar), e do subdiretor, o sociólogo José Júlio Gonçalves, uma dupla instalada uns dois meses antes à cabeça do jornal controlado pela banca para tentar deitar água na fervura dos arroubos reviralhistas de grande parte dos redatores – nem todos, entenda-se. Daí a pouco chegou Martins de Carvalho e entrámos de rompão pelo seu gabinete que dava para as traseiras. Ele estava sentado numa cadeira de braços em frente da secretária de madeira polida, o cabelo descomposto e os olhos muito abertos, com os sapatos de cabedal castanho enfiados nos pés nus, como se, no desvario da notícia da Revolução, se tivesse esquecido de calçar as meias.

O Rodolfo Iriarte e os subchefes Daniel Ricardo e Cáceres Monteiro (todos jovens, mas este último tão jovem como eu, com 25 anos) tomaram desde logo conta da situação, aliás, creio, com o apoio tácito de José Júlio Gonçalves, entretanto também chegado. Contra as ordens superiormente emanadas por um regime agonizante (o Palácio Foz ainda emanava diretivas), era preciso fazer sair o jornal e, portanto, definir a orientação noticiosa: a escolha estava entre dar o golpe militar por triunfante e anunciá-lo como uma vitória das forças antifascistas ou, pelo contrário, optar pela reticente dúvida quanto ao desfecho das operações? Henrique Martins de Carvalho, temeroso de tudo quanto o rodeava e cumprindo à risca o papel que desempenhava na peça, argumentava que era necessário enviar, como todos os dias, as provas dos textos à Censura (ou Exame Prévio, como aquela instituição passara a chamar-se oficialmente no consulado de Marcelo Caetano). Não foi essa a decisão tomada e passámos o dia a escrever em liberdade, num simples diálogo a duas vozes entre a redação e a gráfica, sem as idas e vindas dos contínuos, de provas de texto na mão, entre a nossa sede e o reduto dos censores.
Alguns camaradas partiram, em serviço, para o Terreiro do Paço, outros seguiram mais tarde para o Largo do Carmo, eu fiquei na redação a editar textos e a respirar em grandes sorvos de alegria e estranheza o ar viciado de excitação e de fumo de tabaco. Preparámos para publicação os comunicados do MFA, fizemos reportagens sobre o que se passava nas ruas de Lisboa, noticiámos o cerco do quartel central da GNR e a rendição de Marcelo Caetano a Spínola, descrevemos os movimentos de tropas noutros pontos do País, editámos os telegramas das agências noticiosas estrangeiras com as reações internacionais ao que se passava em Portugal. O general Spínola era, por esse mundo fora, considerado o protagonista da Revolução. Uma segunda edição do jornal atualizou o noticiário e uma terceira acrescentou ainda novidades.
Podem agora os que leem estas linhas e não viveram esse dia não compreender na plenitude o sentimento de alegria intensa que me tomava, bem como à generalidade dos meus camaradas, mas tudo era novo e diferente, aberto e puro, virgem e esplendoroso. As preocupações pessoais e coletivas tidas até à véspera, que fazem parte da vida e parece que a conformam, haviam sido varridas por um alegre vendaval de novidade para o fundo do poço do esquecimento.
Mudar o mundo
Foi então, entre as quatro paredes pintadas de creme daquela grande sala rematada pelo “aquário” da chefia de redação, que uni as duas pontas, até aí soltas, da minha situação face à realidade: a de jornalista e a de utópico “reformador” do mundo.
Trabalhava na Imprensa há mais de meia dúzia de anos (entrara para a revista Flama no final de 1967), mas tivera por matriz as lutas estudantis e algum trabalho político de extrema-esquerda clandestino, acumulando o ofício com a condição de estudante universitário em regime de voluntariado. A grande causa da minha geração – ou, antes, do grupo social privilegiado mas indignado a que pertencia – era algo confusa, embora cheia de certezas. Funcionávamos em horda, como os animais selvagens ou as tribos primitivas, reagíamos aos ataques aglomerados num só corpo e saudávamos, sem outra reflexão que a do automatismo, o que era para ser saudado mas que raramente era assimilado. Havia algo de irracional em tudo aquilo, mesmo se a força da ideia vaga prevalecia sobre tudo. Penso – agora que penso – que tínhamos vergonha dos pensamentos e sentimentos individuais, que considerávamos ser “burgueses” e que simplesmente os recalcávamos quando não os utilizávamos para tentar escrever poemas ou contos existencialistas e ingenuamente enigmáticos inspirados em Sartre, Camus ou mesmo Vergílio Ferreira. O neorrealismo, de que eu preferia largamente a corrente italiana de Pratolini e Pavese, existia como uma parede sólida caiada de branco, mas só a custo eu, que burguês me confessava, conseguia espreitar para o outro lado, onde se apinhava uma multidão sofredora que bradava numa estranha linguagem alheia. Este dilema não seria, afinal, muito diferente daquele com que se confronta o católico fervoroso, dividido entre a pureza imaculada da fé e os demónios negros da instituição eclesiástica.
Em poucas palavras: sabíamos o que não queríamos, ainda que nem sempre tivéssemos uma certeza inabalável acerca do que pretendíamos ou do destino aonde nos conduziriam as nossas – estranho escrever agora a palavra – ilusões. O que, porém, antes de tudo rejeitávamos era a tristeza de um viver cinzento feito de medo e de palavras sussurradas, com o ouvido de um informador da PIDE/DGS em cada café, em cada sala de aula, em cada esquina, em cada local de trabalho sob a forma eventual de um camarada.

Esta era uma das pontas. A outra era a profissão de jornalista, onde tentei aplicar à realidade nua e crua algumas certezas vagas, transpondo-as para o papel de jornal num tempo em que os jornais ainda eram lidos por essa entidade vaga chamada “o grande público”. Com uma televisão a preto-e-branco (mais cinzento do que preto ou branco) limitada a um só canal, minuciosamente controlado pela ditadura e com horário de emissão reduzido a meia dúzia de horas noturnas, sem que alguma coisa semelhante à internet aflorasse sequer aos cérebros de imaginativos escritores de ficção científica, como Simak ou Asimov, era ainda e só o papel impresso que estabelecia a ponte entre os Mercúrios possíveis e uma população ávida de que lhe contassem coisas.
Embora não fossem mais do que uma reduzida fração da população do País – que em grande parte era analfabeta –, os leitores de jornais, essa espécie hoje quase extinta porque reduzida a um núcleo de sobreviventes, constituíam um vasto público atento e quase viciado no papel impresso. Os diários, com uma tiragem acumulada de cerca de cem mil exemplares, traziam “tudo”: as farmácias de serviço, a meteorologia, as marés, os preços dos géneros no mercado, os casos de polícia, os comunicados oficiais, os pequenos anúncios de casas para vender ou arrendar e de carros em segunda mão (a prostituição estava fora de causa, mas havia “cavalheiros sérios” à procura de senhoras respeitáveis para efeitos de casamento). Não havia, de manhã, repartição pública que não tivesse os matutinos derramados sobre as mesas; os meus avós liam O Século de fio a pavio e concediam especial atenção à secção Necrologia, à pesca melancólica de algum conhecido que tivesse partido para a grande viagem; à tarde, os funcionários engravatados saíam dos empregos, compravam os vespertinos aos ardinas, que os extraíam das grandes bolsas que usavam a tiracolo, e iam sentar-se nos cafés a folheá-los, de chapéu na cabeça, pois só se tirava o chapéu em casa e os cafés eram praças públicas, eventualmente entre dois dedos de conversa com frequentadores habitués, o empregado informador da PIDE de ouvido atento, o engraxador aos pés ou espalhando serradura no chão, para depois varrer e levar na pá escarros e pontas de cigarro. “Escreva de maneira que se entenda!”, gritava às vezes do seu cubículo o meu primeiro diretor n’A Capital, Norberto Lopes, “porque isto é para ser lido pela sopeira e pelo polícia”. Não havia ainda o politicamente correto e expressões como esta eram usadas com total à-vontade.
Entrei assim no estranho mundo dos fazedores desses veículos, tão incisivamente iniciáticos como frustradoramente censurados, que eram os jornais – porque as notícias transmitidas pelos pequenos deuses de asas nos pés em que nos arvorávamos eram apenas as notícias possíveis, já que, entre o papel dos “linguados” em que escrevíamos à mão e o papel impresso que borrava as mãos, se estendia-se a folha de papel vegetal da Censura, que tudo mutilava ou desfocava. Os jornalistas tinham-se habituado, no entanto, a esse jogo do gato e do rato que travavam com os coronéis da Rua da Misericórdia (os censores eram militares reformados) e, nas entrelinhas, iam passando a mensagem da resistência.

Já conhecia há muito, de experiência própria, a Censura e o meio jornalístico, pois antes de ter passado pela Flama publicara, a partir de 1962, os primeiros textos, ainda com pretensões literárias, no Diário de Lisboa Juvenil, coordenado por Mário Castrim. Fiz, assim, parte daquela geração de baby boomers (na altura não conhecia esta expressão) que, sabedora dos métodos repressivos do regime, tentou por todos os meios – e correndo todos os riscos – contrariá-los. Embora, desde que a Censura fora instituída em Portugal, em 1926, sempre tivesse havido tentativas de a contornar, por meados do século a Imprensa estava de uma forma geral em consonância com as políticas oficiais. Julgo que os métodos de seleção dos jornalistas se pautavam pelo pragmático critério de evitar problemas, tanto quanto possível, embora a classe nunca tivesse deixado de ser conotada com as correntes vagamente designadas por “livre pensamento” e por comportamentos sociais classificados de boémios. Ser jornalista era também perigoso, porque se vivia sempre no fio da navalha da hora do fecho da edição, das antológicas discussões telefónicas entre os chefes de redação e os censores, dos jantares fora de horas e normalmente em plena madrugada, dos jarros de vinho da casa em excesso, dos cigarros acesos uns nos outros, criando um ambiente irrespirável no local de trabalho.
No final dos anos 60, a entrada dos estudantes universitários para a classe veio mudar o panorama. Mais “conscientes” (usava-se muito esta palavra em oposição a “alienados”, que eram a massa informe), os recém-chegados praticavam, na medida do possível, menos excessos, até porque se afirmavam em contradição com todas as práticas tradicionais. No consulado de Marcelo Caetano, foi permitida a eleição dos corpos gerentes das associações de classe, e foi assim que o Sindicato dos Jornalistas saiu da alçada do sistema corporativo da ditadura, primeiro sob a direção de Silva Costa e, depois, de Luís de Barros.
Estão assim atadas as duas pontas do cordel – a da utopia e a da realidade – que foi essa minha primavera da vida.
O “processo revolucionário em curso”
A partir desse estranho e quase irreal 25 de Abril de 1974, tudo mudou. Viveríamos 19 meses num turbilhão, com agitação permanente nos órgãos de informação, nos sucessivos governos que se entredevoravam, nas ruas povoadas de palavras de ordem gritadas e de carros blindados chaimite, nos transportes cheios de odores e de fumo, nos escritórios e nas repartições públicas, onde metade do pessoal era “saneada” (a palavra usada para “afastado por suspeitas de simpatia com o anterior regime”), nas fábricas (sim, ainda existiam grandes fábricas na cintura industrial de Lisboa e dir-se-ia que todos os operários eram marxistas-leninistas), nos quartéis (sim, ainda havia tropa em grande quantidade e com extrema visibilidade) – divididos quanto ao projeto de futuro, equilibrados no fio da navalha e, sobretudo a partir de março de 1975, com a ameaça efetiva da guerra civil a pairar-nos, aguçada, sobre a nuca.
Quando apareceu o semanário O Jornal, em maio de 1975, de cujo grupo fundador fiz parte, passei a escrever ali sobretudo sobre atualidade internacional. Acompanhei de perto a transição política espanhola, cobri a morte de Franco e mergulhei nas causas e consequências desse fenómeno central da vida coletiva do país vizinho no século XX e que foi a guerra civil. Sabia bem o que era um confronto fratricida e temia-se o pior em Portugal.

Mas o “processo revolucionário em curso”, como se dizia a torto e a direito ao longo dos meses de abril de 1974 a novembro de 1975 (só mais tarde seria adotada a sigla PREC, inicialmente com conotação irónica), foi o período mais excitante da minha vida – das nossas vidas. No dizer acertado de Sophia, “emergimos da noite e do silêncio/ e livres habitámos a substância do tempo”. Ali e então, tudo parecia possível, até mesmo o impossível. Só com a entrada do ano de 1976 se foi, com todas as cautelas, institucionalizando a prática democrática e diminuíram os receios de que tudo pudesse andar para trás, ou seja, de que os saudosistas do passado conseguissem obter a sua implacável desforra.
Agora, passado meio século, o mundo é outro, e até mesmo os saudosistas do passado não o são na verdadeira aceção do conceito, pois ignoram, na maior parte dos casos, em que consistiu concretamente esse passado. O tropel dos tempos é, porém, incessante, e novas modalidades de reação à democracia alinham-se nas redes sociais e nas bancadas parlamentares. Diz-se que a História se repete, o que em linhas gerais até pode ser aceitável como guião, mas cada capítulo tem um estilo próprio, cada avatar as suas regras definidas.
Voltando a 25 de abril de 1974. Só ao fim da tarde desse dia, ou já noite adentro, o Rodolfo Iriarte me comunicou, com a maior das naturalidades, que – evidentemente – eu não seria enviado especial d’A Capital às eleições francesas. Pudera. Nem eu o desejava, apesar do fascínio de Paris. Havia muito que fazer, que pensar e que sentir dentro de portas. Reinventar a vida, por exemplo.
Palavras-chave:
Um dos meus inúmeros defeitos é não celebrar datas relevantes. A única desculpa que tenho para essa falha é pensar que tenho boa memória. Mas é exatamente para nos lembrar da importância dos acontecimentos que a comemoração das datas é essencial para as nossas vidas e para a da comunidade. Nós somos o que for a nossa memória.
Andamos muito desmemoriados, tão desmemoriados que demasiada gente se esqueceu do que conquistámos e construímos nestes 50 anos. É impossível lembrar tudo o que foi feito, mas não será pouco recordar que nunca cinco décadas deram tanto a tantos na História do mais velho país da Europa e que são conquistas dos dias que aquele dia abriu os direitos que temos, a prosperidade com que vivemos, a liberdade que sentimos e a democracia plena que instituímos.
Não é em vão que invoco a memória nem é difícil perceber porque o faço. Não me recordo de sentir uma ameaça tão grande ao que conquistámos.
Não é preciso andar muito atento para se ouvir e ler gente a pôr em causa os filhos diletos da Revolução: a liberdade e a democracia. Nunca foi tão urgente celebrar o 25 de Abril, porque nunca os seus valores estiveram tão ameaçados.
Vende-nos conceitos de liberdade como se ela fosse a permissão para negar direitos a outros, como se os princípios morais de cada um se pudessem impor a outros. Liberdade para um grupo poder ditar o que é a família e como ela deve funcionar; liberdade para se obrigar a amar pessoas em razão da orientação sexual e não em função dos nossos íntimos sentimentos; liberdade para se fazer leis com conteúdos racistas e xenófobos; liberdade para definir de que cor ou de que origem podem ser os portugueses; liberdade para que os trabalhadores possam ser utilizados como mero fator de produção; liberdade para que a comunidade não possa ajudar quem não teve sorte na vida, seja pelo nascimento, seja por outra razão qualquer; liberdade para se difamar, injuriar, ofender sem que se possa ser responsabilizado por isso.
Há gente, muita gente, que nos assegura ser democrata, mas que defende a justiça de pelourinho, a investigação, a acusação e o julgamento feitos nas páginas de jornais; que nos garante que princípios fundadores e básicos de uma democracia, como a presunção de inocência ou a não inversão do ónus da prova, são apenas artifícios para a defesa do que ela define como “os poderosos”; que grita corrupto e ladrão a qualquer um que tenha tido a ousadia de querer servir a causa pública; que nos assegura que estes últimos 50 anos foram tempo perdido e que quer outra República.
Importa fazer um ponto. Nós demos e damos o direito a essas pessoas de defenderem tudo isso. Por uma simples razão: porque somos democratas e acreditamos na liberdade.
A liberdade e a democracia são uma construção nunca terminada e que vive em constante perigo. Exatamente porque quem luta por elas tem de aceitar e respeitar quem as quer destruir. E isso faz com que a democracia seja moralmente muito superior a todos os outros regimes políticos.
Sim, há quem fale de tempo perdido, mesmo entre os que sabem o que era Portugal há 50 anos e o que é hoje. Mas esses preocupam-me pouco. Melhor, preocupam-me na medida em que estão a conseguir, com visível sucesso, convencer quem ignora o progresso espantoso que veio com a Revolução. Porém, sempre houve e sempre haverá quem deteste a democracia, quem odeie os direitos que ela pressupõe, quem não conviva bem com a liberdade dos outros.
Neste aspeto, tal como em muitos outros, estamos a falhar como comunidade. É visível sobretudo às gerações mais novas que não estamos a conseguir transmitir o que é o verdadeiro conteúdo da democracia e da liberdade, mas também o que se alcançou até agora em direitos e em desenvolvimento económico, social e cultural.
Talvez pior seja a incapacidade que estamos a mostrar em evitar que a nossa comunidade se polarize, e isso sente-se, de novo, entre os mais jovens. Uma democracia polarizada, onde cada um está metido numa trincheira e vê quem pensa de forma diferente de nós como um inimigo, é uma, à qual só falta decretar a morte. A democracia é o regime em que uma solução negociada, uma em que prescindimos de alguns dos nossos pontos de vista para acolher os do outro, é sempre melhor do que o nosso diktat. É um regime que não vive sem diferenças de opinião entre pessoas que querem o mesmo, embora por meios diferentes, e que, claro, partilham valores fundamentais.
Tem sido um mar de rosas? Estamos onde gostaríamos de estar? Não, claro que não. Continuamos a ser uma comunidade onde a desigualdade é ainda um problema muito grave, onde ainda deixamos demasiados de nós para trás, que teima em não criar condições suficientes para que todos possam ter uma vida digna, que não oferecemos as oportunidades suficientes para que tantos não tenham outra hipótese que não seja emigrar, em que o acesso à saúde, à educação e à habitação condigna ainda não é para todos.
Sim, estamos infinitamente melhor, seja em termos absolutos, seja comparando com os países que lideram os índices de prosperidade e bem-estar. Ou seja: nunca estivemos tão próximos deles, mas não o bastante.
Nunca estaremos o bastante, até porque a democracia e a liberdade nos ensinaram a ser insatisfeitos e a não ter medo de o dizermos e de lutarmos por uma vida sempre melhor.
Claro que há muito por fazer. 50 anos parece ser muito tempo, mas é um segundo na vida de uma comunidade. É este o caminho, é este que temos de percorrer, sabendo que haverá avanços e recuos, que enfrentaremos muitas dificuldades, que um país geograficamente periférico e historicamente pobre terá de fazer sempre mais do que aqueles que temos como exemplo de riqueza e de prosperidade.
Um amigo perguntou-me com quem ia eu descer a Avenida no dia 25. Não percebi a pergunta. Com quem havia de ser? Com os meus. Com os que não esqueceram os valores que venceram naquele dia, com quem discuto qual a maneira de melhor os cumprir, mas que não os põe em causa, com os que não esquecem que a luta pelos princípios sagrados da democracia e da liberdade é permanente e que, no dia em que esmorecerem e deixarem de os defender, serão derrotados, com quem canta de lágrimas nos olhos e alegria na voz a Grândola, Vila Morena.
25 de Abril sempre.
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Falta pouco mais de um mês para as eleições europeias, que se realizam nos 27 Estados-membros entre 6 e 9 de junho. Em Portugal, o escrutínio vai ocorrer no último dia deste período, a 9, num fim de semana prolongado, o que não augura nada de bom no que toca à participação eleitoral. O governo anterior ainda tentou, em vão, que as eleições fossem marcadas para o final de maio, argumentando que a data era muito inoportuna por causa dos feriados.
Não são apenas os cidadãos a ter a perceção de que a sua vida não é afetada pelas decisões tomadas no Parlamento Europeu e, por isso, tendem a abster-se mais nestas eleições. A verdade é que até os próprios partidos políticos as desvalorizam (à hora de fecho destas páginas, o PSD, que vai voltar a concorrer coligado, e o PS ainda não tinham revelado os cabeças de lista). Por tudo isto, a abstenção nas eleições europeias costuma ser elevada, e nada nos diz que em 2024 será muito diferente. Nas últimas, em 2019, a taxa atingiu os 69,3%, o seu pico (superior à média na União Europeia, 49,4%).Tendo em conta as condições de governabilidade, também haverá, claro, leituras nacionais a fazer dos resultados das próximas europeias. A procissão ainda vai no adro e, com o ciclo político-mediático em aceleração constante, daqui até junho, tudo pode acontecer. Para já, segundo uma sondagem da Aximage, para o Jornal de Notícias, Diário de Notícias e TSF, divulgada no fim de semana passado, o PS soma 31,3% das intenções de voto, mais 6,5 pontos percentuais do que a Aliança Democrática (24,8%). O Chega ocupa o terceiro lugar, com 18,4%, à frente do Bloco de Esquerda (5,9%), Iniciativa Liberal (5,8%), CDU (4,1%), Livre (3,6%) e PAN (1,8%). A guerra da Ucrânia e, sobretudo, a necessidade de um apoio militar relevante conferem uma importância ainda maior às eleições de 2024, que acontecem num momento político particular. A Europa extremou-se, e exemplo disso são as várias coligações de governo que integram partidos políticos de direita radical. Se, há 20 anos, 80% dos governos dos Estados-membros eram dirigidos por um partido social-democrata ou democrata-cristão, hoje apenas 20% são liderados pelo chamado mainstream. Logo no princípio do ano, o European Council on Foreign Relations publicou uma projeção que aponta que as forças de direita radical e de extrema-direita deverão conquistar entre 183 e 197 dos 720 lugares a eurodeputado. Na altura, um dos autores do estudo, Kevin Cunningham, chamou a atenção para as consequências de essas forças virem a representar 25% do hemiciclo: “A composição do Parlamento Europeu vai deslocar-se acentuadamente para a direita, nas eleições de junho deste ano, o que poderá ter implicações significativas para a capacidade de a Comissão Europeia e de o Conselho da União Europeia levarem por diante os seus compromissos em matérias de política externa e ambiental, incluindo a próxima fase do Pacto Ecológico Europeu.”
O grupo Identidade e Democracia – que junta partidos como a União Nacional de Marine Le Pen, a Liga de Matteo Salvini e a Alternativa para a Alemanha, e ao qual o Chega também pertence – poderá, assim, tornar-se a terceira força política, atrás dos Socialistas e Democratas (S&D, centro-esquerda) e do Partido Popular Europeu (PPE, centro-direita). Nem sempre a abstenção indicia um afastamento dos cidadãos em relação ao centro de poder – em bom rigor, escolher não votar pode apenas demonstrar uma relativa satisfação com o estado das coisas… Mas a ciência política também nos diz que, quando as eleições são decisivas, os eleitores mobilizam-se e a abstenção tem tendência a baixar (uma curiosidade histórica: em 1987, na estreia de Portugal nas europeias, dois anos depois da adesão, a taxa de abstenção foi 27,4%). Veremos se isso, no caso português, se vai sobrepor – ou não – ao apelo do sol e da praia.
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Quer as mulheres na cozinha, caso se portem bem, ou na cadeia se por acaso não seguirem a sua cartilha ideológica e insistirem na IVG. Mas quer mais. Como compara os homossexuais a animais, provavelmente pensará num dos seus delírios vê-los numa jaula em qualquer zoo ou então vê-los exterminados, como fez o seu padrinho e inspirador Adolf Hitler.
Se pudesse, P. Brotero acabaria com a democracia e regressaria feliz aos tempos de velha senhora, quando o país era aquele paraíso rural de analfabetismo, pobreza e fome. Regressaria de bom grado ao tempo em que não havia estado social nem pensões de sobrevivência, e só os filhos das “boas famílias” estudavam na universidade, mas havia respeitinho. É verdade que também não havia serviço nacional de saúde e as pessoas morriam muito mais cedo, incluindo crianças, mas ao menos os velhos não constituíam um peso para a família, segundo o pensamento broteriano.
Nesses saudosos tempos não se viam piercings nem tatuagens, os homens andavam sempre de cabelo curto, fato e gravata e as mulheres de saia abaixo do joelho. Tinham uma Nossa Senhora e um retrato de Salazar a embelezar a sala ou, os mais pobres, nas paredes escuras e húmidas da barraca onde se abrigavam.
P. Brotero tem ódio ao 25 de Abril de 1974 – gostava de lhe fazer o enterro – porque tem ódio ao direito à diferença e à igualdade de oportunidades, essa perigosa ideia de comunistas e outros inimigos de Deus, da pátria e da família. Por ele, acabava com os sindicatos e sacrificaria sem problema a liberdade de associação, de expressão, de imprensa e de consciência. E claro, Portugal voltaria a ser um país católico como deve ser.
P. Brotero recorda com saudade os tempos em que um encarregado de educação de fé não católica tinha que apresentar um pedido por escrito em papel azul de vinte e cinco linhas ao director da escola do filho, para que este fosse dispensado da disciplina de Religião e Moral. Católica, claro.
Há quem pense que P. Brotero tem ódio também às mulheres mas não é verdade. Ele apenas as quer proteger dentro de casa, até porque sabe que “há coisas que só elas podem fazer”, o que não deixa de ser verdade, embora eu suspeite que as coisas a que P. Brotero se refere são diferentes daquelas em que eu estou a pensar.
Por isso entende que era preferível que elas não desempenhassem qualquer profissão, muito menos a trabalhar com homens ou, que loucura!, a liderá-los. Ainda recorda com saudade o tempo em que as enfermeiras e as professoras não podiam casar sem autorização oficial. Isso, sim, é que era um país arrumado.
P. Brotero alinha com os sectores mais ultramontanos a recusar que as mulheres assumam cargos de liderança na religião, como se não tivessem sido cooperadoras de Jesus e dos apóstolos, não fossem baptizadas tal e qual como os homens e S. Paulo não tivesse escrito: “não há macho nem fêmea; porque todos vós sois um em Cristo Jesus” (Gálatas 3:28).
Também pensa que as mulheres “donas-de-casa” não precisam de ter uma conta no banco e se calhar nem têm discernimento para votar, quanto mais para passar a fronteira sem a assinaturazinha do marido.
P. Brotero tem um problema conceptual. Ele acha que identidade não é algo que também se pode construir, mas remete-a para uma dimensão quase transcendental e mítica. Se é mulher, a sua identidade passa necessariamente por ser católica praticante, recatada, competente com rendas e bordados, dona-de-casa, com muitos filhos e poucos estudos. Nada de anticoncepcionais nem outras modernices.
P. Brotero e os amigos ganharam novo fôlego depois de oito anos de governo dos “esquerdalhos”, e quando a direita radical cresce e o país tem uma maioria de deputados da direita. Finalmente. Agora sim. Já se pode sonhar em voltar a proibir a IVG, as aulas de cidadania, educação ambiental e direitos humanos. Sobretudo já se pode pensar em voltar a enfiar as mulheres dentro de casa, que é o lugar delas.
Ele sabe que não vai ser fácil em democracia, mas confia que, havendo um estatuto fiscal de dona-de-casa elas vão-se atropelar a correr para dentro de portas e deixarem aos homens o espaço público. No fundo, no fundo, os talibãs afegãos é que têm razão. Shiu!… mas isto não se pode dizer.
Infelizmente P. Brotero não é uma personagem de ficção de mau gosto. É mesmo verdade.
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