Quarenta anos depois da sua fundação, a Associação Internacional de Lusitanistas (AIL) realiza na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, de 22 a 26 de julho, o seu XIV congresso trienal, onde vai reunir mais de duas centenas de participantes.

O JL realizou um inquérito a quatro antigos presidentes da instituição, e figuras bem conhecidas: Helder Macedo (seu presidente honorário), Carlos Reis, Elias J. Torres Feijó e Roberto Vecchi (que fará a conferência inaugural). Eis as respostas.

Helder Macedo – importância internacional

Que papel e importância tem a AIL para a língua e culturas portuguesas, nomeadamente para a sua presença no mundo?

A importância da AIL está de algum modo implícita no nome, que reflete o propósito para que foi criada. É internacional, ou seja, os seus membros são universitários de países que incluem, mas em muito excedem, aqueles que têm em comum a língua portuguesa.

E também na palavra lusitanistas (até agora não se encontrou melhor…) para designar as culturas pluricontinentais autónomas e diferenciadas abrangidas por essa língua comum. Aliás também incluindo a sua matriz galega, anterior à existência de Portugal como país autónomo.

O fundador da AIL foi um professor francês, a Associação teve como presidentes e como membros eleitos da sua direção, universitárias e universitários  brasileiros, europeus e africanos de várias nacionalidades. Ou seja, não tem donos nacionais.

É uma pluralidade de universitários de múltiplas nacionalidades em vários continentes, que têm em comum os diversificados estudos das plurais culturas relacionadas entre si por serem exercidas na mesma língua e suas variantes. Esse é o seu caráter único e, consequentemente, a sua importância internacional.

Por exemplo, quando fui eleito presidente, não foi por ser português (ou por ter nascido em África…), mas enquanto professor da Universidade de Londres. E quando, nesse tempo, criámos a revista Veredas, o próprio nome aponta para o Brasil, em referência implícita a Guimarães Rosa.

E se o maior congresso da AIL até agora realizado foi no Rio de Janeiro (coordenado conjuntamente com Cleonice Berardinelli, no fim do meu segundo mandato como presidente), outros houve não menos significativos em França, Alemanha, Portugal, Inglaterra, Estados Unidos da América, Galiza, Cabo Verde, Macau, Itália.

Que espera (e/ou “deseja”) deste próximo Congresso?

Temos tido, é claro, apoios institucionais que, direta ou indiretamente, contribuíram (e, espero, continuarão a contribuir) para a existência autónoma da AIL. Por exemplo, em Portugal, da Fundação Calouste Gulbenkian, do Instituto Camões, mais recentemente da Imprensa Nacional/Casa da Moeda.

Ou, no Brasil, onde a AIL tem a maioria dos associados, de instituições governamentais que subsidiam a investigação académica e portanto também, direta ou indiretamente, a ativa participação brasileira nos nossos trabalhos.

Além disso, é claro, temos podido contar com os indispensáveis apoios das universidades e, nalguns casos, das instituições locais onde os congressos se têm realizado. Mas, em abono de todos, sempre preservando a autonomia multinacional da AIL.

Seria interessante que o congresso a seguir ao que já está devidamente previsto ser de novo no Brasil, acontecesse em Goa, não seria?

helder macedo – presidente honorário ail

Tenho atualmente a posição privilegiada de ser presidente honorário da AIL (cargo que, além do mais, tive a honra de partilhar com a mestre brasileira Cleonice Berardinelli). Os meus e as minhas colegas das direções periodicamente eleitas podem consultar-me se ou quando achem que a minha experiência pode ser útil, mas o poder de decisão e de implementação é delas e deles.

Passámos uns tempos difíceis (a pandemia que obrigou ao adiamento do congresso de Roma, o desinvestimento cultural do governo Bolsonaro no Brasil … alguns problemas logísticos entretanto resolvidos). Creio, no entanto, que a AIL está em plena recuperação e salutar consolidação.

Acho que seria importante que a nova direção, a ser eleita no Porto, reforce a dimensão brasileira da Associação (porventura desenvolvendo relações académicas mais estreitas com outras instituições universitárias na América Latina?), que reforce a participação africana nos nossos trabalhos e, quem sabe, consiga persuadir a Índia a deixar-se de ressacas colonialistas.

Seria interessante que o congresso a seguir ao que já está devidamente previsto ser de novo no Brasil, acontecesse em Goa, não seria?

Carlos Reis – agregar, respeitar o diferente

Que papel e importância tem a AIL para a língua e culturas portuguesas, nomeadamente para a sua presença no mundo?

A memória que guardo do tempo em que fui presidente da AIL é a de uma entidade com potencial para ser um elemento de agregação de importantes campos de estudo e de quem neles é protagonista, no mundo da língua portuguesa.

Um mundo que, contudo, não está isento de contradições nem de assimetrias, projetando-se ambas sobre o desenvolvimento e sobre a ação da AIL. Apenas um exemplo: desde o seu início, a partir da generosa iniciativa do prof. R. A. Lawton, a AIL traz consigo um termo e um conceito (lusitanista) cuja marcação, digamos, portuguesa, pode parecer limitativa. Algo de semelhante acontece, como é bem sabido, com o termo e com o conceito de lusofonia.

As limitações de que falo relacionam-se com a vastidão multicontinental e com a inerente diversidade que hoje reconhecemos no universo da língua portuguesa e nos estudos literários, linguísticos, sociais ou genericamente culturais que nele têm lugar.

A meu ver, a resolução de tensões implícitas (e, às vezes, mais do que isso) que o lusitanismo pode motivar obriga a ações concretas que, não dramatizando aquele termo e as suas conotações, sejam capazes de agregar o que é comum e de respeitar aquilo que é diferente e que, como tal, toma o seu rumo próprio.

Algumas daquelas ações têm a ver com a composição dos órgãos de direção da AIL, com a localização e, quando calha, com a deslocalização das atividades que a associação leva a cabo.

Se bem estou lembrado do tempo da minha presidência (foi há mais de 20 anos…), estas foram preocupações que então estiveram presentes nos órgãos de governo da AIL. E que, certamente, continuam a estar.

Que espera (e/ou “deseja”) deste próximo Congresso?

Por várias razões, não tenho acompanhado, nos últimos anos, as atividades nem os projetos da AIL. Sendo assim, apenas posso esperar e desejar que algumas das dificuldades que enunciei possam ser resolvidas no próximo congresso, sem lesão da missão que estatutariamente cabe à AIL.

Elias J. Torres Feijó – um lugar de entendimento

Que papel e importância tem a AIL para a língua e culturas portuguesas, nomeadamente para a sua presença no mundo?

Papel e importância relevantes. Congressos com a participação de pessoas de diversos países e universidades, com assuntos diversos dos âmbitos das ciências humanas e sociais.

Um histórico e uma cartografia, sempre imperfeita, claro, da realidade dos nossos estudos no mundo, um foro de conhecimento e análise dos interesses permanentes e dos emergentes dos estudos das comunidades de língua portuguesa.

Permita-me, como exemplo disso, lembrar com saudade as mais de 300 comunicações apresentadas no congresso de Santiago de Compostela, no ano 2005 (que coorganizei, juntamente com o prof. José Luís Rodríguez e a profª Carmen Villarino, durante a presidência da profª Regina Zilberman) como um momento académico e cultural vivido intensamente e um marco para a presença da Galiza no quadro da AIL.

Que espera (e/ou “deseja”) deste próximo Congresso?

A expressão mais evidente dessa relevância é a “plataforma9”, que criámos e impulsionámos juntamente com a Fundação Calouste Gulbenkian e que é o contributo pessoal e o legado coletivo de que me sinto mais satisfeito como ex-presidente da Associação, juntamente com o seu modelo organizacional, que hoje vigora.

Tenha-se presente que é uma plataforma única no mundo, e basta verificar que é usada maciçamente e de todos os cantos. Foi pensada como um espaço integrador, informativo e que corrigisse as desigualdades de acesso à informação e às oportunidades.

Ela inseriu-se no objetivo dos meus dois mandatos (2008-2014) de estender a AIL a novas realidades, o que se espelhou nos congressos de Cabo Verde e Macau como princípio de alargamento às esferas africana e asiática, decididos nas assembleias trienais prévias, como também abrir a AIL a novas temáticas e focagens.

E a novas fórmulas e participações, como os Colóquios de Budapeste. Sem esquecermos a importante revista Veredas como farol permanente de ideias.

Um histórico e uma cartografia da realidade dos nossos estudos no mundo, um foro de conhecimento e análise dos estudos das comunidades de língua portuguesa

Elias J. Torres Feijó

Podemos perspetivar a AIL, através dos seus encontros e publicações, como esse grande lugar de entendimento que deve ser permanentemente alimentado. Pelo que pude ver, as 200 comunicações que nutrem o 14º congresso da AIL na universidade irmã do Porto apresentam um leque bem interessante, naquela cartografia de que falava.

A AIL é feita de e por pessoas. Ao lado do fundamental encontro e intercâmbio académicos, que são a sua razão de ser, os congressos da AIL devem ter uma índole celebratória.

Espero que seja uma ágora de inovação e memória, nestes 40 anos de vida, e um momento para recobrar impulso inovador e inclusivo. Servir a AIL é honra e responsabilidade que transcendem individualidades para converter-se num bem comum que reclama altas ambições.

Desde Compostela, desejo um ambiente comemorativo e reflexivo e o maior dos êxitos a todas as pessoas participantes, às comissões organizadora e científica e à direção da AIL.

Roberto Vecchi – valorização das diversidades

Que papel e importância tem a AIL para a língua e culturas portuguesas, nomeadamente para a sua presença no mundo?

A AIL é, na minha perspetiva, uma plataforma única no universo global da língua portuguesa. Nas áreas dos estudos de língua portuguesa, nos diferentes contextos universitários e de investigação, vive-se de norma a fragmentação e o isolamento.

É o efeito de uma dispersão vasta que se tenta compor através de redes. Penso, por exemplo, nas redes e nas iniciativas do Camões que, através das cátedras e dos centro, cria circuitos para veicular temas, projetos, iniciativas.

A AIL, que completa os 40 anos de vida desde a sua fundação em França, também se organizou oportunamente para compor o mosaico bastante diversificado de âmbitos e especialidades que de outro modo teriam dificuldades em se cruzar.

Durante a minha presidência, de 2014 a 2021, junto com o secretário-geral Vincenzo Russo, tentamos promover este aspeto fundamental da abertura e de relação, num quadro de valorização de todas as diversidades, das tantas partes sem um todo.

Um projeto em que nos empenhamos e que o atual presidente, Carlos Ascenso André, muito batalhou para manter e consolidar, é a Plataforma9 que expressa concretamente a exigência de espaços de convergência e de partilha entre os diferentes atores desta comunidade necessariamente frágil e disseminada.

Um projeto que a Fundação Calouste Gulbenkian antes e a Imprensa Nacional-Casa da Moeda agora resolveram apoiar para proporcionar o acesso a todos o amplo leque de propostas de inovação e reflexão, nos mundos de língua portuguesa: realmente um espaço global.

A ideia que amadureci, em particular nos Congressos em Mindelo e em Macau, é de uma considerável força de descentralização das e dos lusitanistas: apesar da aparência eurocêntrica – a partir do seu nome histórico – na verdade a AIL é uma comunidade ramificada mais pelo seu fora do que pelo seu dentro.

E no quadro desta linha de abertura para a diversidade e ao mesmo tempo da capacidade de uma inclusão incondicionada encontra a sua paradoxal força, a sua maravilhosa e permanente incompletude.           

Que espera (e/ou “deseja”) deste próximo Congresso?

Tenho uma espera e uma esperança. O 14º Congresso, do Porto, é o primeiro presencial, depois da pandemia que nos obrigou a realizar o 13º Congresso, de Roma, com um atraso de um ano e on-line.

Esta retomada presencial é fundamental porque a nossa comunidade tem que ter ocasiões de encontro, de debate, de convívio. É um exercício devido mas não óbvio, com todas as limitações de uma longa espera e que em breve se realizará concretamente.

A esperança é que abertura da AIL continue e se fortaleça. A Associação encontra a sua força na sua extensão e dispersão e na capacidade de conseguir conjugar mundos tão divergentes.

Depois do isolamento, a esperança é recuperar elos perdidos e dar à AIL um futuro que se conecta com a sua longa tradição: encontrar o equilíbrio entre uma continuidade e uma renovação constante. O motor invisível do sucesso da proposta da AIL e da sua longa história.

Mais vale ser artificialmente inteligente, ou estruturalmente estúpido? O Fest de Espinho é uma convulsão de mundos com a ambição legítima de perscrutar o futuro. Tal faz-se através de uma seleção de filmes que valem mais por aquilo que poderão vir a ser, mas sobretudo por uma programação paralela de palestras e oficinas com profissionais do cinema dos mais diversos metiers. Por exemplo, este ano passou pelo festival David Thackeray, cuja profissão é ser coordenador de intimidades. Basicamente trata de criar as condições no set para que todos se sintam confortáveis quando são filmadas cenas de nudez e sexo.

O Fest tem ainda outra característica meritória: consegue cativar uma audiência com uma média de idades mais baixa do que a maioria dos festivais de música de verão. São sobretudo estrangeiros. Tal deve-se a um trabalho de divulgação juntos a escolas de cinema fora de Portugal, vendendo o festival como um pacote: a frequência de um espaço de formação com nomes importantes, e o desfrute do calor sempre outonal das praias de Espinho.

O festival preocupa-se com uma diversidade de perspetivas, mostrando diferentes forma de fazer e olhar para o cinema, indo além dos atores e realizadores que são, inevitavelmente, as figuras mais mediáticas. Não obstante, Kenneth Lonnergan, o realizador e argumentista de Manchester by the Sea, foi uma das grandes estrelas do festival. Na sua masterclass, em vez de dissecar a sua própria obra, comentou cenas de clássicos do cinema, de Chaplin a John Ford, com interesse, mas sem particular profundidade. A mensagem talvez seja: o futuro começa lá atrás.

Através dos oradores do festival, percebe-se que o cinema se encontra perante várias encruzilhadas, como revelou, por exemplo, Mark Coulier, um virtuoso mestre de caracterização, que falou do conflito entre o seu departamento e o de pós-produção digital.

O cinema é, desde a sua origem, uma arte tecnológica, pelo que o acolhimento dos avanços técnicos é inevitável. Sendo assim, como poderá o cinema rejeitar a Inteligência Artificial? Sami Arpa, um especialista em AI no cinema, encheu o ecrã de gráficos e exemplos, mostrando quanto a IA pode fazer. A palestra foi quase toda dedicada a uma perspetiva comercial, mostrando como a IA apura as fórmulas usadas há muito por Hollywood e pela Netflix . Quando foi confrontado com uma pergunta sobre o que poderá a IA fazer pela arte, pelo cinema de autor, Sami defendeu que a AI devia ser olhada como mais uma ferramenta de trabalho e de análise.

Gostaria de saber o que Sami diria a Nadine Labaki. A atriz e realizadora libanesa explicou, na sua sessão, que se envolveu tanto no processo criativo do último filme que quando acabou precisou de ajuda psiquiátrica. Usando um método naturalista, com não atores, filmou mais de 600 horas e demorou anos na montagem, à procura do filme (em película seria impossível). Talvez a IA extraísse uma dúzia de filmes daquela interminável rodagem. Mas será que conseguia encontrar Cafarnaum?

Palavras-chave:

Pedi para colocar o meu café no meu termos e o empregado ao balcão disse-me, meio em suspiro, que não estão autorizados a tocar em material que não seja da casa, que pede muita desculpa, quando é interrompido pela voz rouca do senhor António  que grita lá da cozinha  – diz à miúda para se sentar cinco minutos a beber aqui o café. Tenho uns assuntos para tratar com ela!

Era esta a sua maneira de me fazer abrandar. Achava que eu levava uma vida demasiado agitada e que não percebia “nada disto”, que não era assim que se vivia, não era assim que se combatia, não era assim que se encontrava um lugar no mundo, que a sobrevivência era um equilíbrio entre o prazer e a raiva, entre a convicção e um medo profundo de se estar errado.

Eu nunca contrariava o senhor António. Nem mesmo quando me servia o que eu não lhe pedia.

Peguei no café e quando me virei para me sentar na única mesa redonda que o café tinha, esbarrei com uma pessoa que entrava, alvoroçada, no café. Era a Nadia. Não a via há anos. Entornei o meu café sujando-lhe a roupa. Ainda antes de me reconhecer e sem levantar a cabeça respondeu-me:

– Não faz mal, assim tenho mais uma desculpa para chegar mais tarde! Despedi-me! Vou só lá buscar as minhas coisas!

A Nadia era a única, do nosso grupo de amigas que tinha conseguido o emprego dos nossos sonhos.

– Olá Nadia!

– Amália? Não devias estar na…

– Sim… vou daqui a pouco… Estás bem?

– Não… como é que dizia a canção? Tudo vai mal para mim…

– Mas tudo vai mal porquê?

Passámos a infância a decorar canções e poemas que ouvimos os nossos pais a cantar. Nada destas músicas ou livros se ouviam na rádio ou se compravam em livrarias (que hoje eram monumentos com bilhete de entrada e tinham nas prateleiras apenas 10 títulos e quatro autores nas prateleiras traduzidos em 35 línguas). Tínhamos ouvido os nossos pais e tios e avós e bisavós a falar de Trovas do Vento que Passa, e de uma Grândola que chegou mesmo a ser sugerida para ser hino nacional e que agora só se ouvia na boca de alguns em cafés como este.

– Não aguento produzir mais um evento que me embrutece disfarçado de pérola artística e comunitária cheia de europa comum.  Hoje recebi os artistas que vão fazer um espetáculo cá sobre paisagens para lhes mostrar os locais possíveis para a sua apresentação. Querem fazer o espectáculo numa floresta mas não querem bem uma floresta, porque uma floresta “a sério” tem muitos mosquitos ao final do dia e atrapalha um pouco a “fruição do espectador”.

Têm de escolher um local que seja acessível e que permita um trabalho artístico com a comunidade mas a companhia tem apenas três dias para vir ao local antes de vir montar o espetáculo. Pediram-me para “providenciar participantes dessa comunidade” mas convém que sejam profissionais pois é para constituírem uma banda musical que não toque muito bem nem muito mal. Também já avisaram que não pode ser um sítio mesmo descentralizado porque não se pode demorar mais de uma hora a chegar (a partir da capital, entenda-se, pois outro público da periferia poderia estar mais próximo, mas esse não interessa nada).

A floresta tem de ter trilhos para ser acessível, mas também tem de ser suficientemente “selvagem”. Tem de ter acesso a casas de banho e a eletricidade, mas não pode ter um café ou algo que indique que existe presença humana no espaço. Tem de ser fácil de montar e tem de ter a dose certa de espaços abertos e espaços com densidade florestal, para se poder desenhar um triângulo entre as diferentes performances que são sempre iguais em todos os países onde se apresentam, apesar de se apresentarem como um projeto site specific. Só a paisagem deve mudar e mesmo assim, se pudesse mudar o menos possível…

Tem de ser um espaço ao ar livre com árvores que seja suficientemente próximo do público de cada capital que acolhe o projeto e tem de permitir a acessibilidade e por isso deveria ter uma paragem de autocarro próxima do local e não se pode autorizar os espectadores a deslocarem-se em carro próprio até ao espaço, mas a equipa tem de poder chegar lá com camiões tire com todo o material hiper-pró high tech para poderem trazer os capacetes 3D, e as cadeirinhas para todos, o sistema de internet para que cada espectador com o seu telemóvel possa fazer download da folha de sala e da tradução de algumas peças para evitar o desperdício de celulose (porque o desperdício digital, apesar de ser tão ou mais grave, pelo menos não se vê) e para trazer as arcas frigoríficas que vão refrigerar os almoços que vão oferecer todos empacotados em saquinhos de plástico por causa das questões de higiene, e os contentores de água porque vai fazer um calor horrível e a peça dura sete horas para que todos tenhamos a experiência de estar isolados na floresta, e os ecrãs de leds e os auscultadores multifuncionais com os quais se termina o espetáculo com uma voz que se diz ser a mãe-natureza e que num tom de antigo testamento ameaça ficar cá quando mais ninguém conseguir sobreviver neste planeta.

Hoje pediram-me para abater uma árvore para gravarem o som da queda naquele exato lugar onde vão fazer o espetáculo, e ainda se riram da minha cara, dizendo-me que não deveria estar chocada com o pedido porque há árvores abatidas todos os dias.

Não aguento!

Trabalho num teatro que não é um teatro, é um banco que recebe milhões em fundos europeus  comunitários  para desenvolver projetos artísticos que na verdade são produtos criados numa lógica  industrial, por artistas de países neutros ou que não fazem parte da dita comunidade mas que dela beneficiam, o que poderia ser ótimo e sem nada a opor se a bela e irrecusável proposta de partilha que se lê no papel não se traduzisse num cabaret  tecnológico de 15 minutos por país e artista convidado que se reproduz sempre igual, sem que os próprios artistas se tenham de deslocar aos 200 sítios por onde o espetáculo itinera, e pago com o mesmo orçamento inicialmente distribuído pelos cinco parceiros de países diferentes. 

Deixei de perceber o que faço, porque faço, para quem faço!

O caminho para o inferno, está cheio de coroas de padres…e de paletas de artistas!

Vim aqui porque quero perceber melhor como funciona essa vida de cornucópia!

A Arrábida é um dos territórios nacionais com maior presença cultural e simbólica na nossa consciência coletiva Botânicos e geógrafos como Robert Chodat, Orlando Ribeiro e Hermann Lautensach explicaram-nos a sua qualidade de diamante natural. Geologicamente, a Arrábida contém traços manifestos das grandes movimentações das placas tectónicas que modelam a fisionomia da história planetária. Geográfica e climaticamente, é um dos exemplos da extrema diversidade do território português.

O mesmo se pode dizer sobre a fauna e a flora, com uma assinatura própria, seja em terra como no mar, onde as águas costeiras imitam a função de berçário dos estuários, servindo alimento e abrigo para uma grande variedade de espécies marinhas. Mas existe também a história, marcada no património construído, e o sopro de espírito, que exalado do azul oceânico, sobe pela serrania calcária, cristalizando-se nas páginas do misticismo religioso ou da exaltação poética e literária.

Mas a Arrábida celebra também o envolvimento no mundo, nas grandes causas coletivas. Sebastião da Gama (1924-1952), cujo século de nascimento estamos a comemorar, foi também um combatente, intenso e pioneiro, pela proteção da Arrábida. Em 1947, a Mata do Solitário, uma joia botânica hoje com o estatuto de reserva integral, estava a ser delapidada como combustível para um vulgar forno de cal.

Gama escreve para a imprensa e para figuras influentes. Ficou célebre uma fulminante missiva: “Senhor engº. Miguel Neves. Socorro! Socorro! Socorro…O José Júlio da Costa [proprietário de um forno de cal] começou (e vai já adiantada) a destruição da metade da Mata do Solitário que lhe pertence. Peço-lhe que trate imediatamente. Se for necessário restaure-se a pena de morte. SOCORRO!” (23 de agosto de 1947).

O prof. Baeta Neves, da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, assumiria como sua, esta luta, e em 1948 nasceria a Liga para a Proteção da Natureza (LPN), a primeira organização ambientalista nacional. Aliás, logo após o 25 de Abril, seriam alguns jovens setubalenses ligados à LPN, os principais ativistas pela criação do Parque Natural da Arrábida (que ocorreu em 1976).

Na Arrábida de Sebastião da Gama ecoam também as vozes de santos e místicos como São João da Cruz, Santa Teresa do Menino Jesus, ou Frei Agostinho da Cruz (aliás, Agostinho Pimenta. 1540-1619). Contudo, não me parece adequado circunscrever o Poeta numa ilha cultural excessivamente regional, quando o tema do divino e das suas metamorfoses é transversalmente europeu e a avidez intelectual do jovem Sebastião não parece respeitar ou embaraçar-se excessivamente com fronteiras.

Longe de querer filiar Sebastião da Gama numa genealogia exclusivamente nacional, reduzindo-o a aedo de agendas filosóficas demasiado precisas, parece-me possível vislumbrar na sua poesia as dúvidas, hesitações e conflitos, certamente matizados com os traços e padrões da nossa cultura nacional, que caracterizam as demandas pelo transcendente na atmosfera europeia da morte de Deus, como ficou ilustrado tanto no helenismo romântico de Hölderlin, como no grande poema filosófico de Nietzsche, Also Sprach Zarathustra (1883-1885), que Richard Strauss transformará em poema sinfónico em 1896.

Uma pesquisa mais vasta e profunda pela obra poética de Sebastião da Gama, orientada pelo triângulo temático Deus-Natureza-Morte, exibiria esses momentos de tensão e dúvida que são inteiramente partilhados pelas mentes mais lúcidas da consciência europeia

Estou convencido de que uma pesquisa mais vasta e profunda pela obra poética de Sebastião da Gama, orientada pelo triângulo temático Deus-Natureza-Morte,  exibiria esses momentos de tensão e dúvida que são inteiramente partilhados pelas mentes mais lúcidas da consciência europeia. Deus serve de contraste e motivo de escândalo perante a persistência da injustiça no mundo (“Pão Nosso de Cada Dia”, Cabo da Boa Esperança*, pp. 121-2). Noutros textos, o Poeta expressa uma clara nostalgia pelos desaparecidos deuses da Antiguidade, evocando nisso o helenismo de Nietzsche (“Deuses”, Campo Aberto*, p. 47; “Baco”, Cabo da Boa Esperança, p. 71). Noutro lugar, constata-se não tanto a morte, mas o eclipse ou a fuga de Deus (“Paraíso Perdido”, Campo Aberto, p. 53).

A Natureza está presente diretamente. Sentimos o sal do mar na face, o álgido vento norte, em ligação explícita com a dor e o sofrimento, sublimados ao lado do que é mais sensual e luminoso, como diferentes afirmações de uma Vida pensada numa espécie de incondicional e afirmativa aceitação dionisíaca (“Condição”, “Os que Venham da Dor”, Campo Aberto, pp. 110/111; “Canção do Vento Norte”, Cabo da Boa Esperança, pp. 46-47). Ou ainda, a Natureza vista como oposição a Deus (“Palavras a Frei Agostinho”, Campo Aberto, p. 58).

A morte é um tema que surge também em múltiplos laços associativos e sob conotações, aparentemente contraditórias, mas sempre subtis. Destacaria, mais uma vez num registo de vitalidade dionisíaca, a coragem de aceitar a morte, como um gesto supremo de triunfo da vontade de viver, nunca se confundindo com a patologia mística de a desejar. Não nos surpreende escutar o Poeta recorrendo a Cristo numa exortação por mais um fôlego existencial, perante uma morte ainda não merecida (“Cristo”, Campo Aberto, p. 121). Sebastião da Gama ocupa um lugar próprio no quadro dos temas e controvérsias do “espírito do mundo” (Zeitgeist) europeu da sua época, que em muitas facetas ainda é a nossa. J

* Cabo da Boa Esperança e Campo Aberto, Edições Arrábida, 2007.

Apesar das desigualdades e barreiras que ainda existem no acesso das pessoas com deficiência aos eventos culturais, o panorama tem vindo a mudar nos últimos anos. A tecnologia traz novas oportunidades para tornar os festivais de música mais acessíveis e, na sua 17ª edição, o NOS Alive foi palco do primeiro concerto 5G para pessoas surdas em Portugal. 

A iniciativa foi desenvolvida pela NOS em parceria com a Access Lab, uma empresa cuja missão passa por garantir o acesso das pessoas com deficiência à cultura e ao entretenimento. Através dela, oito pessoas surdas, com diferentes tipos de perda auditiva, tiveram a oportunidade de participar numa experiência multisensorial para sentir a emoção do concerto de Dua Lipa, que decorreu no segundo dia do festival. 

A experiência combinou coletes hápticos e uma aplicação com legendagem e interpretação em Língua Gestual Portuguesa (LGP) em tempo real: tecnologias suportadas pela rede móvel de quinta geração da NOS. 

“A NOS tem como missão colocar a sua tecnologia, principalmente aquela que é mais disruptiva, como é o caso da tecnologia 5G, ao serviço das pessoas. Esta iniciativa em particular surge com esse propósito”, afirma Margarida Nápoles, diretora de comunicação corporativa e responsabilidade social da empresa de telecomunicações, em entrevista à Exame Informática.

Veja as imagens da iniciativa

A combinação de tecnologias usadas na iniciativa permitiu tirar partido das características do 5G, em particular do slicing da rede. Através desta capacidade é possível “fatiar” a rede, de modo a que os segmentos que a compõem possam ser usados para diferentes aplicações. 

NOS Alive: Foco no 5G

A par da iniciativa com “coletes das emoções”, a rede 5G da NOS também suportou soluções como o “Entusiasmómetro”, anteriormente conhecido por Audio Mood Analysis e implementado na edição de 2023 do festival

Para garantir a operação do festival, a comunicação foi assegurada por mais de 100 células móveis, 16 das quais 5G, indicam dados avançados pela empresa de telecomunicações. Em destaque esteve também uma Antena Lente semelhante à que é usada no SuperBowl. 

Com mais de 100 profissionais a acompanhar as operações de rede, a infraestrutura de rede fixa contou com mais de 1200 km de fibra ótica ao longo dos 11 hectares do recinto. Para monitorizar a qualidade de experiência da rede 4G e 5G, e apoiar o trabalho da equipa técnica, foi instalado um sistema de sondas remotas e autónomas. 

A utilização da rede 5G trouxe também mais ‘liberdade’ à experiência com os coletes hápticos, que captam o som do concerto e emitem vibrações para as pessoas que os estão a utilizar. Uma vez que a solução assenta totalmente em 5G, os participantes puderam movimentar-se livremente pelo festival, não estando circunscritos a um espaço do recinto nem ligados a cabos, “que era o que acontecia até agora”, explica Margarida Nápoles. 

A responsável destaca também o impacto da baixa latência, isto é, do tempo de resposta da rede. “(…) o facto de ser quase instantâneo garante que a música está a ser transformada em vibrações e as pessoas estão a sentí-la praticamente ao mesmo tempo que o artista está a fazer o seu concerto”, detalha.  

“Isto cria uma simbiose muito grande entre a pessoa que usa o colete, o artista e o público à sua volta. Todos estão no mesmo espaço físico a usufruir de uma mesma experiência que, naturalmente, é vivida por todos de forma diferente”

Margarida Nápoles, diretora de comunicação corporativa e responsabilidade social da NOS

De modo semelhante, a legendagem e interpretação em LGP transmitida através da aplicação também permitiu acompanhar o que se estava a passar no concerto a partir de qualquer local do festival.

“Foi muito especial poder estar no concerto a sentir toda a magia da multidão, da artista, das luzes e da vibração da música, sobretudo desta forma tão única com os coletes e a possibilidade de interpretação em LGP, através da tecnologia da NOS”, afirma Mariana Bártolo, uma das participantes na iniciativa, em comunicado. 

Embora esta seja uma solução-piloto, Margarida Nápoles realça que o seu desenvolvimento tem como objetivo chegar a um maior número de pessoas. Como piloto é possível à empresa testar a solução, perceber onde pode melhorar e “como é que ela pode vir a beneficiar de outro tipo de tecnologias que se possam depois introduzir”, detalha a responsável. 

Os Diários, inéditos, entre os 17 anos (1940) e os 30 anos (1953) são o “prato forte” do volume Eduardo antes de ser Lourenço, agora dado a lume por Luciana Leiderfarb.

Argentina de nascimento (de Buenos Aires), veio muito nova para Portugal, tendo-se licenciado em Filosofia pela FCSH da Universidade Nova de Lisboa e começado no jornalismo aqui no JL, em 1992, escrevendo em especial sobre música.

Em 2016 foi-lhe atribuído o Prémio Gazeta de Imprensa, por um texto seu no Expresso, onde colabora desde 1996 e no qual publicou um primeiro matéria sobre o que viria a dar este livro, a propósito do qual a ouvimos.

O que a levou a começar a interessar-se pela “produção” escrita de Eduardo Lourenço muito jovem?

No meu percurso de jornalista, tive a oportunidade de fazer três entrevistas a Eduardo Lourenço. Tinha também lido alguns dos seus livros. Entrevistá-lo é uma experiência muito particular, e quem o fez sabe a que me refiro. Havia essa clareza de discurso, a qualidade cristalina das frases, quase que era possível passá-las intactas para o papel.

E era sempre surpreendente. Em 2021, quando soube que existia na Biblioteca Nacional uma sala a guardar o seu espólio, na qual ele tinha passado muitas tardes a trabalhar, a ajudar a identificar e datar documentos, achei que seria interessante ir lá e fazer um trabalho jornalístico sobre essa sala e o seu conteúdo. Mas claro que isso era impossível, porque para aceder a tudo o que lá está seria preciso passar lá anos. Tinha necessariamente de circunscrever a minha abordagem.

E como é que o fez?

Nessa altura, foi o João Nuno Alçada – que estava lá a organizar o acervo, e foi o seu grande organizador – que me guiou pelas muitas prateleiras e dezenas de dossiers. E chamou-me a atenção um em especial, em cuja lombada se lia ‘1940’. Perguntei o que era, e ele disse-me que eram os diários da juventude.

Ora, em 1940 Eduardo Lourenço (EL) tinha apenas 17 anos. Naquela estante estavam os diários e os escritos do professor desde esse ano até meados dos anos 50, na sua grande maioria inéditos. Para mim, foi um momento de revelação, soube logo que essa era a reportagem que devia fazer.

Devia fazer e fez. E depois…

O trabalho foi capa da revista do Expresso, em dezembro de 2021, e daí parti para outros temas. Até que, numa reunião com Guilherme Valente, o fundador e então editor da Gradiva, que detém direitos sobre as obras de Eduardo Lourenço, surgiu o tema das comemorações do centenário – e, quando referi a existência desses textos, ele manifestou logo vontade de publicá-los. Daí ao livro foi pouco mais de um ano de trabalho permanente, de transcrição e de edição, com descobertas incríveis sobre um homem que, aos 17 anos, pensava com a complexidade e a sistematicidade de um adulto culto.

Quais foram as ‘descobertas’ que mais a surpreenderam?

Para já, como disse, a maturidade, o facto de, apesar de muito novo, Eduardo Faria ser ‘já’ Eduardo Lourenço. Ainda assim, estava em construção, e essa busca é muito comovente. Há páginas em que ele treina a assinatura, nas suas várias formulações – Eduardo Faria, Eduardo Lourenço, Eduardo Lourenço de Faria.

Surpreendeu-me o uso da linguagem, porque desde o começo se percebe que ele tem uma enorme facilidade de escrita, e que esta faz parte do modo como pensa o mundo. Outro ponto importante é a sua abordagem filosófica, indagatória e crítica, seja qual for o assunto que sobre a mesa e muito antes de ele próprio saber que viria a construir obra filosófica.

Se EL pode ser contemplativo, e muitas vezes o é, a sua grande marca é a capacidade de olhar filosoficamente para as coisas, um olhar que vai muito além da aceitação do que é dado, mas que o questiona e, nesse questionamento, o modifica.

Que critérios presidiu à organização do livro, que começa com os Diários, que ocupam mais de metade das suas páginas, e acaba com os poemas?

Como explico na introdução, a forma como o livro está organizado tenta responder o mais possível à ordenação dos dossiês no âmbito do espólio. Pareceu-me sensato que os textos fossem apresentados ao leitor do modo mais próximo daquele em que se encontram no seu estado original. Por isso, tirando algumas pontuais alterações, segui a ordem que os manuscritos me propunham. Primeiro os diários, de 1940 até 1953 – quando ele perfaz 30 anos -, depois o resto: os escritos sobre temas específicos, um núcleo sobre Mário de Sá-Carneiro, outro mais filosófico intitulado “Liberdade e Situação”, os projetos de livros e de um romance, e os poemas.

Entretanto, cada uma dessas partes tem textos introdutórios, quatro no que respeita aos Diários – relativamente aos anos 1940-42, 1943-47, 1948-52 e 1953. Qual o objetivo desses textos?

O livro dirige-se a todos aqueles que o queiram ler, quer tenham tido ou não contacto com a obra de Eduardo Lourenço. Não se trata nem de uma edição crítica nem de um livro académico, mas de colocar à disposição de todos um núcleo de textos que antes se mantinha inacessível e praticamente desconhecido. A palavra-chave, para mim, é mesmo ‘acesso’. Por isso, não fazia sentido publicar os fragmentos sem lhes dar um contexto que fosse de alguma forma facilitador da leitura. Tentei que as introduções fossem curtas, simples e diretas, uma espécie de alavanca para continuar a ler.

O que é que todos os escritos reunidos no volume, sobretudo os diários, revelam quanto aos principais interesses, preocupações, etc., de EL nessa época?

Do núcleo de manuscritos da juventude, são efetivamente os diários que nos fornecem o material mais significativo, no sentido em que é neles que encontramos o início do seu pensamento, o momento inaugural de temáticas que viriam a estar presentes ao longo de toda a sua vida. É também neles que ficamos a conhecer a pessoa, os seus anseios, temores, sonhos, dúvidas. Estão lá a fé, Deus e a religião – que ele distingue -, as origens, a família, o amor, a infância, a procura da identidade, a morte, todas as perguntas existenciais que ele se colocou desde muito cedo.

E em matéria de livros e leituras?

Sim, estão também lá as leituras, as listas imensas de livros lidos e por ler, projetos de obras, a filosofia, a literatura, o teatro, a música, a relação com o mundo e com ele próprio, como argila que se vai auto-moldando. Portugal aparece como um país ainda incipiente em termos culturais – um aspeto que, mais tarde, ele aprofunda. E o sentido de humor, aquela ironia fina do EL posterior já se começa a ouvir, tanto na crítica ao ambiente académico da altura quanto, por exemplo, no relato surrealista de uma aula de lógica, no qual diz estar mais aborrecido que uma pescada…

Um dos temas que aborda, e se vê que o toca, é o da relação com os pais…

O Eduardo Faria destes textos é um jovem que entra em rota de colisão com a tradição católica e conservadora muito arreigada dos pais, e que se sente incompreendido por estes. A dada altura, sabe que está a desiludi-los por não poder corresponder àquilo que esperam do filho. Por outro lado, o seu é um olhar sociológico, que consegue inserir os pais num tempo e num espaço muito específicos, e assim explicar a sua distância ou dificuldade de comunicação. Há um conjunto de entradas na altura da morte dos pais que é realmente comovente, porque ao desaparecerem, diz ele, desaparecem aqueles para quem ele contava de modo incondicional.

Uma das coisas extraordinárias é como que um aluno interno do Colégio Militar, até ir para Coimbra, consegue uma tamanha formação cultural. Como é que isso se explica?

Numa primeira fase, EL é um autodidata voraz para quem os livros representam a única porta válida para o mundo. O que vemos é que ele não renega nada, não despreza nada: lê tudo aquilo a que vai acedendo. Cada livro lhe sugere mais leituras, numa cadeia sem fim, o que no fundo responde a uma curiosidade incansável. Isto faz com que, chegado à Universidade de Coimbra, ele se dececione. Esperava uma mentalidade mais aberta e encontra uma academia fechada sobre si própria.

Outra coisa que estes escritos da juventude mostram é que vem de trás, de sempre, a ambição de escrever e o apelo da criação.

É verdade: uma das descobertas deste núcleo de juventude reside na enorme quantidade de folhas soltas que simulavam ser a capa de um livro, com título, ano, cidade e autor. Em muitas lemos ‘Eduardo Faria’, noutras já Eduardo Lourenço. Destes projetos, ele chegou a começar alguns, nomeadamente peças de teatro, como aquela em torno da figura de Spartacus, que contém toda uma reflexão sobre o poder e a escravidão. Há também um excelente ensaio sobre Sócrates e o início de um romance. Nenhum destes projetos parece ser um esboço feito ao sabor da pena: o que vemos é uma tentativa de aprimorar muitos deles, fazendo várias versões. O mesmo se verifica em alguns dos poemas maiores, que ele reescreve até os considerar acabados.

E nos próprios diários aquela ambição e aquele apelo já são bem notórios…

Sim, não são poucas as alusões nos diários à vontade de escrever – numa diz mesmo: “Eduardo Lourenço de Faria. Eu devo fazer um romance.” E não podemos esquecer os seus heterónimos, os seus duplos, que por vezes assinavam os manuscritos com nomes como Tristão George, Tristão Bernardo ou, numa oportunidade, Eduardo Coimbra.

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No dia em que Fausto morreu, o presidente da Câmara de Lisboa entregou a medalha de Mérito Cultural da Cidade ao cançonetista Tony Carreira.

No dia em que Fausto morreu, a visita a uma qualquer das “grandes superfícies”, que pomposamente ainda se consideram “lojas da especialidade” na venda de discos, renderia a conclusão de que, na melhor das hipóteses, lá morariam um ou dois exemplares de Por Este Rio Acima.

No dia em que Fausto morreu, uma aventureira consulta às playlists das rádios nacionais mostraria que, entre os felizes contemplados pelos iluminados decisores da divulgação diária e/ou semanal, não constava nenhuma canção de Fausto Bordalo Dias.

Tristeza? Claro que sim, perante o nebuloso silêncio que se abateu, em torno de uma obra única, coerente, teimosa, cheia de lições e de pistas, equilibrista em doses sábias de acutilância, estudo prévio, intensidade e paixão.

Surpresa? Nem por isso – o próprio Fausto encarregou-se de antecipar este e outros cenários num capítulo maior do seu caminho discográfico, que esbarrou no desinteresse e nas febres da moda, no facilitismo vigente, nos compadrios interesseiros em que vivemos, subjugados pela fast food musical ou, melhor dizendo, industrial.

Chama-se A Ópera Mágica do Cantor Maldito, vale como um retrato impiedoso e cáustico do nosso devir coletivo e só quem estiver privado de sensibilidade e atenção não descobrirá por ali muitos toques de autobiografia. Foi lançado em 2003, mas o prazo de validade está longe de se esgotar, bem pelo contrário.

Sem a urgência das mudanças em velocidade da época revolucionária, em que se alojam os discos Pró Que Der e Vier (1974) e Um Beco com Saída (1975), o criador recuperava as vestes – na verdade nunca abandonadas – de “cantor de intervenção”, farpela que parece assustar muitos e que continua a ser tão incómoda como indispensável a quem queira ir buscar às canções mais do que um passatempo amorfo com efeitos entorpecentes próximos aos dos opiáceos. O cenário envolvente é que tinha mudado.

Um amor desmedido pela música tradicional portuguesa; uma tomada de posse peculiar do seu próprio tempo criativo;  a precisão com que ajustava os poemas e a transcendente riqueza do léxico utilizado; a forma exigente, talvez em busca das montanhas da perfeição, como se apresentava em palco

Até para alguém cujos códigos artísticos foram sempre cristalinos: um amor desmedido pela música tradicional portuguesa, com a raiz de chulas e corridinhos depois trabalhada à medida de um talento singular e de um rigor único, bem documentado em todos os seus discos, dos mais conceptuais ou “históricos” aos que pareciam ser – e não eram – apenas conjuntos de canções (como Para Além das Cordilheiras, de 1987, ou A Preto e Branco, de 1988, o seu reencontro quase íntimo com a África onde cresceu); uma tomada de posse peculiar do seu próprio tempo criativo, sem perder tempo a pensar nas leis da periodicidade, por estar indisponível para pressas rendidas ao intuito comercial – veja-se, tão só, os longos intervalos que separam a sua monumental trilogia da diáspora, com uma dúzia de anos entre Por Este Rio Acima (1982) e Crónicas da Terra Ardente (1994), e mais 17 entre este notável segundo andamento e o remate superlativo com Em Busca das Montanhas Azuis (2011); a precisão, quase de ciência exata, com que ajustava os poemas (a que por aqui se referirá o especialista António Carlos Cortez), de que vale a pena sublinhar a transcendente riqueza do léxico utilizado, mais ainda em tempos em que a Língua parece encolher, às melodias, às harmonias e aos burilados e esplendorosos arranjos; a forma exigente, talvez em busca das montanhas da perfeição, como se apresentava em palco, partidário de que não podia adotar a mais comum das táticas, a da meia bola e força.

Fausto justifica a ideia de um “antes” e um “depois”

Fausto justifica – como disse um amigo e estudioso do seu trajeto, Viriato Teles – a ideia de um “antes” e um “depois”. Não será o único, se pensarmos nas ligações que manteve com José Afonso ou Adriano Correia de Oliveira, talvez mais ainda na proximidade com José Mário Branco ou Sérgio Godinho, a nossa “ínclita geração” das cantigas.

Se José Mário Branco foi, entre muitas outras qualidades, o homem dos rasgos no som e na produção, das inquietações sucessivas, das paixões pelo erudito e pelo fado, juntando a isto uma peculiar dimensão teatral ou cénica, se Sérgio Godinho é o que melhor percorre – pela sua particular aptidão “ecuménica” – uma desejável ponte entre gerações, sucessivamente identificadas com as suas investidas sem nódoa, Fausto fecha muito bem esta troika, passe a palavra e fique a ideia.

Voltaram, os três, a afirmá-lo sem reticências em Três Cantos (espetáculos e disco, em 2009), como já o tinham feito para um filme de Luís Galvão Teles (A Confederação, de 1978).

A diferença principal, no que diz a respeito aos feitos de Fausto Bordalo Dias, está na adoção, teimosa e lúcida, de um “livro de normas” mais dirigido, mais estrito mas não mais estreito, nas suas opções musicais. Que a sua forma de tocar – e era, já agora, um instrumentista eleito, reconhecido de forma unânime pelos seus pares – fazia transbordar e que a sua personalidade artística, meticulosa, conhecedora, profunda, transformadora, pouco dada a fogos fátuos e a compromissos de ocasião, remetia para horizontes sempre largos, “mais do que prometia a força humana”, “tomando sempre novas qualidades”.

Ouvir hoje um qualquer dos discos assinados por Fausto tornou-se ainda mais premente

Ouvir hoje um qualquer dos discos assinados por Fausto tornou-se ainda mais premente, pelo olhar histórico alternativo que nos proporciona, e que inaugurou muito antes da forçosa revisita aos compêndios, escolares ou não, pela dimensão humana e pelo pensamento, estruturado mas aberto, das suas “cantigas de tese”, pela dimensão tão próxima e tão acessível, e por isso mesmo tão difícil, das canções de amor, em que era grão-mestre.

Apesar das confluências e mestiçagens das suas descobertas musicais (mas não só), quase apetece dizer que Fausto era o último dos puros.

Guardo para mim as memórias pessoais do que vivi com ele, dos desafios que me fez (falar sobre Por Este Rio Acima a bordo de uma traineira no Tejo, “que vida boa era a de Lisboa”, ou escrever o texto de apresentação de A Ópera Mágica do Cantor Maldito).

Com uma ressalva apenas, face ao mito urbano de que Fausto não gostava de dar entrevistas. Nunca o notei. Mas talvez seja mais correto dizer que o cantor não gostava era de perder tempo a responder a perguntas de quem não se tinha preparado para as fazer. Pois se ele tinha feito o seu trabalho…

Continuarei a ouvi-lo, sempre, e a fazer ouvi-lo, sempre que puder. Na esperança de que haja mais quem pegue na sua obra e lhe vá dando “mais uma volta e outra volta ainda” – como já aconteceu com Né Ladeiras, com os Couple Coffee, com Amélia Muge, com A Garota Não, entre muitos outros. Insistirei em fazer escala, entre as muitas possibilidades que este reportório descomunal abre, numa das tangentes à perfeição da Música Portuguesa: “Lembra-me Um Sonho Lindo”.

Sem perder de vista duas declarações, que talvez se complementem, como só acontece com os muito grandes: “Assim se faz Portugal / Uns vão bem e outros mal”. E “Atrás dos tempos vêm tempos / E outros tempos hão de vir”. Como o tempo de Fausto é eterno, haja esperança nas melhoras.

Palavras-chave:

O Tribunal de Instrução Criminal decidiu esta segunda-feira levar a julgamento os cinco arguidos do processo BES/Angola (BESA), validando assim na íntegra a acusação do Ministério Público.

O banqueiro Ricardo Salgado, o presidente do BESA, Álvaro Sobrinho, os administradores do BES, Amílcar Morais Pires e Rui Silveira, e o administrador do BESA, Hélder Bataglia, irão assim sentar-se no banco dos réus segundo indicou a decisão proferida pela juíza de instrução Gabriela Lacerda Assunção.

Para a magistrada, existem provas suficientes e que, por essa razão, é muito mais provável uma condenação em julgamento do que uma absolvição.

Álvaro Sobrinho está acusado de dezoito crimes de abuso de confiança agravada e cinco de branqueamento de capitais, enquanto Ricardo Salgado irá responder por cinco crimes de abuso de confiança e um de burla qualificada.

Amílcar Morais Pires é acusado de dois crimes, um de abuso de confiança e outro de burla, Hélder Bataglia responde por um crime de abuso de confiança e Rui Silveira por um crime de burla.

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