Os mais otimistas dizem que vivemos um novo Iluminismo. A luz está por todo o lado. Mas não é daquela que inspira poetas, cientistas, santos ou até lunáticos. É a luz fria de hospital, dos ecrãs, das notificações a tocar, como sinos em aldeia onde já quase só vivem descrentes.
Se é verdade que nunca houve tanta informação, também não é mentira que nunca houve tanto ruído. Num universo cada vez mais carregado de respostas à distância de um polegar, nunca nos sentimos tão perdidos, tão desorientados, tão vulneráveis a intrujas que chegaram para nos caçar a atenção. Somos veados a meio da estrada, encandeados, não por faróis de carros, mas pelo atropelo violento da desinformação. Os condutores vão em excesso de tudo, menos de verdade, e raramente perdem alguma coisa, muito menos pontos na carta.
Há uma nova leva de vendedores porta-a-porta e de testemunhas beatas. Novos evangelistas de feed, vendedores de salvação, guardadores de segredos que a ciência rejeita e a imprensa desconfia. Já não nos batem à porta com aspiradores ou enciclopédias, mas vão vendendo verdades em segunda mão, milagres para todas as dores da alma, superstições adaptadas à constituição e aos demónios do parlamento. Se antes pediam licença para entrar, hoje atravessam-se sem cerimónia à nossa frente na timeline ou até no noticiário, à hora de jantar. Já não nos querem falar de Jesus, mas de pandemias, planos secretos para nos substituir, conspirações que vamos ouvindo passivamente em surdina, que o tempo não dá para tudo e questionar é luxo que não cai bem na nossa moleirinha formatada para o preconceito.
Ainda somos um país de portas entreabertas. Entre a cortesia e o cansaço, vamos deixando passar qualquer promessa de redenção, qualquer segurança de um perigo distante, mesmo que seja paga a pequenas prestações que nos sairão demasiado caras. Uns são feiticeiros de gravata, outros curandeiros de carrapito. Uns passam receitas para almas cansadas ou aborrecidas, vendem detox de espírito e mezinhas de autoconfiança; outros chafurdam de tanga em ethos lamacento manosferiano, convidando-nos a mergulhar em teorias de machões, mesmo quando parecem nem gostar assim tanto de mulheres. Outros, ainda, assumem-se como profetas do medo, espalhando a palavra, seja ela sobre Gates, a vacina, o refugiado ou o senhor estrangeiro da mercearia que olha durante demasiado tempo para as raparigas. Vendem livros quase sagrados, editados à pressa, e programas orçamentais de salvação, depois fazem queixinhas sobre o peso da cruz da perseguição de uma imprensa que insiste em apontar-lhes a mentira, onde juram a pés juntos encontrar verdade.
É uma nova forma de folclore. Respostas simples para acontecimentos complexos, que o escuro é farto em vilões quando a razão não topa o que ele esconde. Teorias conspirativas sedutoras, que acendem luz sobre o vazio, exímias a agregar medos e desconfianças que tendem a tocar à maioria. O problema é que o excesso de luz não ilumina, cega. Nesta estranha devoção ao novo deus da desinformação, quanto mais a ciência explica, mais o povo saliva por mistério, superstição e impulso medieval. Na falta de critério, atiram-se pedras em vez de perguntas.
Para alguns é pobreza de espírito, mas eu vejo mais pobreza de tempo. Dez horas de trabalho, mais um par delas no trânsito, os trabalhos de casa dos filhos, o jantar por fazer… Pouco nos sobra para pensar. Restam pequenas migalhas de energia, que juntamos e engolimos à pressa com a explicação que nos pareça mais fácil, mesmo que nos prometa um milagre de pedrinha debaixo da almofada.
Ainda há quem acredite que a verdade reaparece naturalmente com um mercado livre de ideias, mas essa teoria dificilmente cola nos dias que correm. Foi pensada para o minimercado do bairro, e não para a confusão de um hipermercado global, com produtos de validade cada vez mais reduzida. Com tanta oferta e tão pouco tempo para escolher, vai-se pelo rótulo mais colorido, pela promoção de última hora ou pelo jingle que é música para os nossos ouvidos. Depois, rodeamo-nos só de iguais, partilhamos indignações, ouvimos só aquilo que já sabíamos, reforçamos certezas e esfregamos as mãos no quentinho destas novas fogueiras tribais. Cada qual de perna alçada a marcar território nos limites da bolha que escolheu, ronronando com o que queremos ouvir e rosnando a quem nos desafia o conforto daquela paz que só se encontra na ignorância.
Abriram a porta das televisões a cuspidores de fogo, vendedores de banha da cobra e músicos de algibeira, e ainda esperavam que o telespetador não começasse a bater o pezinho ao som do bailarico. A música é boa para embalar preconceito, perfeita para as palminhas sincronizadas com o tempo certo da aldrabice. Nas últimas eleições já se desenhou mais um capítulo deste novo conto folclórico. A gente juntou-se sem paus nem pedras, mas com votos de quem alinhou no feitiço e, por ironia, decidiu começar a correr atrás de bruxas que a razão nunca chegou a encontrar. O populismo está a tornar-se no novo fado nacional. Todos sabem que é mentiroso, mas poucos parecem querer deixar de o cantarolar.
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