Os Jogos Olímpicos são, para o melhor e para o pior, um espelho do mundo e, nos dias intensos e preenchidos em que se concentram as atenções planetárias, ajudam-nos a observar a realidade de uma forma diferente: ao vibrarmos com a proeza de um atleta, somos capazes de, imediatamente, passar a simpatizar com um país que, muitas vezes, nem sequer conseguíamos identificar no mapa; ao olharmos para as listas de medalhados, sentimo-nos obrigados, noutras ocasiões, a desfazer algumas ideias feitas sobre a relação entre economia, demografia e desenvolvimento desportivo; ao assistirmos a várias provas, das mais diversas modalidades, percebemos como, apesar de cada atleta envergar as cores da sua nação, o mundo é hoje um local mais diverso e miscigenado, e em que se desfazem, de forma imparável, os estereótipos de uma imagem associada à fisionomia e aparência física dos naturais de cada país.
Embora se tenha transformado num negócio colossal, o olimpismo não perdeu a magia de nos fazer acreditar, nem que seja por um instante fugaz, que é possível reunir os representantes de todas as nações do mundo num ambiente de paz e de respeito mútuo. E, quando esse espírito de união e de confraternização consegue alastrar pelas ruas da cidade que acolhe os Jogos Olímpicos, como se tem visto nestes dias em Paris, o efeito torna-se ainda mais forte. Pode ser só uma ilusão, mas as imagens de festa e de confraternização, despidas dos hooliganismos e de alguns tribalismos que se veem noutro tipo de competições, são um alento para as melhores utopias e ilustram, com cores vivas, o que pode ser viver em liberdade, igualdade e fraternidade, em plena e total diversidade.
A imagem, mesmo que fugaz e ilusória, de um mundo unido sob os Jogos Olímpicos é inspiradora para milhões de pessoas, mas é também terrivelmente perturbante para quem, todos os dias, repete o discurso do ódio, promove a intolerância e recusa o multiculturalismo. E isto não é de hoje. Todos sabemos – ou nunca deveríamos esquecer – que o impulso quase faraónico de Hitler, nos Jogos de Berlim 1936, não era promover o universalismo, mas procurar demonstrar que os arianos eram uma raça superior. Nesse ano, os resultados das competições, em especial as de um lendário Jesse Owens, desfizeram todas as teorias nazis, tanto as ideológicas como as pseudocientíficas. Agora, em 2024, o êxito popular e desportivo dos Jogos Olímpicos de Paris tem constituído a melhor resposta aos que, continuamente, procuram criar divisões na sociedade e destruir o espírito democrático.
A desinformação é a arma preferida para fomentar a polémica e, com ela, a divisão, quebrando o ambiente conjunto de fraternidade e de celebração. E o método é sempre o mesmo: pega-se num facto plausível e acrescenta-se-lhe uma mentira. Foi o que aconteceu com o caso das pugilistas femininas, alegadamente com níveis de testosterona altos, que rapidamente foram acusadas de serem homens disfarçados de mulheres pelos suspeitos do costume: os líderes da extrema-direita europeia, mais Donald Trump, Elon Musk e outras personagens que estão sempre prontas para deitar gasolina para qualquer fogueira de indignação.
A polémica não foi espontânea, no entanto. Ela foi plantada e, logo em seguida, ampliada pelo presidente da Associação Internacional de Boxe (IBA), uma organização desacreditada internacionalmente, com inúmeros casos provados de corrupção, e dirigida por um fiel escudeiro de Vladimir Putin. E não custa perceber as suas motivações: a Rússia foi impedida de participar nos Jogos Olímpicos e a IBA foi excluída do movimento olímpico. A vingança é mais do que óbvia.
Este caso ajuda-nos, no entanto, a perceber como funciona o coro de indignados numa cadeia de desinformação – como, uns a seguir aos outros, como que movidos pelo mesmo impulso instantâneo, repetem as mesmas falsidades, sem acrescentarem qualquer facto novo, ajudando a ampliar e a tentar criar um clamor global, baseado na raiva, no ódio e no confronto. O método está a ser usado para desacreditar uns Jogos Olímpicos de paz, festa e celebração, mas também para atiçar o ódio e os tumultos no Reino Unido, com o aproveitamento de uma tragédia, que a extrema-direita quis transformar em mais uma batalha contra os imigrantes. A desinformação é, neste momento, uma das maiores ameaças à paz, à democracia e à liberdade. É imperioso, por isso, que seja denunciada e duramente condenada.
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