É terça-feira, dia 5 de novembro. Levantei-me e dirigi-me à assembleia de voto, sita na minha secretária. Votei na Kamala Harris. Fossem umas eleições normais e podia recitar a costumeira ladainha: “Não o fiz particularmente entusiasmado, mas pronto vota-se no menos mau.” Depois acrescentaria que, ah e tal, é como todas as decisões que tomamos (as minhas, pronto): ficamos sempre com a sensação de que podia ser melhor.
Não, este meu voto imaginário não podia ser outro, nem podia ser melhor, porque sou um democrata. Esta minha decisão é uma inútil mas profunda profissão de fé no mais extraordinário sistema político que o Homem já inventou. No que lhe concedeu mais direitos, liberdade, condições de vida, segurança, paz. É verdade que não excita. Não promete grandezas e conquistas, não estabelece desígnios extraordinários, não nos garante qualquer glória, não nos assegura que há uma terra prometida ou que somos seres especiais apenas porque nascemos num certo lugar. É só um sistema que reconhece que o homem pode ser livre sem que tenha de condicionar a vida de todos os outros e que pressupõe para essa liberdade um conjunto de direitos políticos, sociais e económicos.
Talvez a Kamala tenha mesmo ganhado e com ela todos os democratas do mundo. Escrever isto arrepia. Tanto nas eleições em que o meu voto contou como nas que votei imaginariamente, para mostrar a mim e aos outros as minhas convicções, nunca estava em causa a democracia, mas apenas (e como soa agora este “apenas”) visões ou opções dentro do mesmo quadro. Trabalhistas ou conservadores, sociais-democratas ou democratas-cristãos, democratas ou republicanos etc., etc.
Desta vez, e na democracia de que em larga medida todas as outras democracias dependem, cerca de metade das pessoas não está interessada em viver democraticamente. É assim, não há outra forma de ver as coisas.
Claro que se pode sempre infantilizar as pessoas e achar que quem vota em Trump não sabe o que está a fazer. Recuso-me a passar atestados de estupidez e ignorância. Quer os que votam mesmo quer os que, como eu, votam de forma imaginária sabem que Donald Trump opôs-se a que Joe Biden tomasse posse, não respeitando os resultados eleitorais, não fazendo uma transição pacífica de poder, e organizando um golpe de Estado. Trump promete também instituir uma ditadura no primeiro dia, anuncia uma governação sem limites que não sejam os da sua vontade, jura cuspir nos mais básicos direitos humanos e sociais e desrespeita a Constituição norte-americana.
Quem vota nisto obviamente não é um defensor da democracia.
Noto contudo, numa altura particularmente alarmante para as democracias no mundo – as consequências para elas de uma vitória trumpista serão devastadoras –, um otimismo especialmente irritante e mesmo criminoso. O que diz que as instituições norte-americanas são tão fortes que aguentam um Presidente que as quer destruir. É só não conhecer a História. Construir uma instituição exige muito tempo e muito esforço, mas destruí-la é rápido – o caso do Supremo Tribunal Americano é exemplar. Somos bichos com uma capacidade de destruição única na História do mundo.
Recentemente, Teresa de Sousa, no Público, citava William Kristol, um comentador e político republicano: “O mesmo culto do líder ou do homem-forte, a aceitação da crueldade e da intolerância, a demagogia e as teorias da conspiração, a utilização da nostalgia do passado como arma, a adoção generalizada da mentira e da propaganda.” Tudo isto, típico dos movimentos fascistas europeus do século passado, está escarrapachado no fenómeno Trump.
Deixemos de lado nomes de doutrinas que podem ser estranhos aos votantes. As coisas são o que são, o nome, como dizia o outro, pouco importa.
Mas não é só na América, as pessoas estão a desistir da democracia, tantas que o caminho parece ser irreversível. Aliás, é a própria democracia que a está a levar ao seu fim. Não pelas suas imperfeições, não pelo seu caráter pouco excitante, não porque não tenha dado a gente suficiente o inimaginável há poucas dezenas de anos, não porque se imagina o futuro dos nossos filhos pior do que o nosso, mas porque as pessoas neste sistema podem transitar para outro apenas com o seu voto. Na prossecução normal da democracia é inevitável que o outro lado conquiste o poder. Só que desta vez não são outros democratas, mas sim quem a vai enterrar no caixote do lixo da História.
Até em Portugal o caminho parece inexorável. Quando vejo pessoas no PSD e no PS a aplaudir medidas antidemocratas ou a fazer discursos típicos da extrema-direita, é fácil perceber onde vamos parar. Que exagero, julgo ver o seu sobrolho a franzir. Pois é. Os Estados Unidos da América levaram muito tempo a chegar até este extremo. Nós, em meia dúzia de anos, juntámos mais de um milhão de portugueses que não querem viver em democracia e agora contam com a simpática contribuição dos partidos que a construíram.
Espero que o estimado leitor esteja neste momento a celebrar a vitória de Kamala Harris, mas receio que seja como aquela história do homem que está a cair dum arranha-céus e ao passar o 50º andar diz que por enquanto está tudo bem.
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