A maior criptomoeda do mercado está numa tendência de subida acentuada e chegou ontem a um máximo de 89.982 dólares, quase atingindo os 90 mil dólares. A eleição de Donald Trump para a presidência dos EUA e o discurso durante o período eleitoral de que iria ter uma política mais amigável para as criptodivisas parece ter ecoado no mercado e levou a uma elevada procura. Também a Tesla, do apoiante mais notável de Trump, Elon Musk, aumentou a valorização no mercado em 40% nas últimas semanas.

Alvin Tan, diretor da RBC Capital Markets, explica à Reuters que “os entusiastas da cripto pensam que está a chegar um presidente que pensa como eles. Sobre a bitcoin, ao fim do dia, não há qualquer valorização para a ancorar, pelo que é difícil ter uma noção real do seu valor. Assim, quando o sentimento é positivo, é muito mais inflacionado do que qualquer outro tipo de bens”.

Nesta fase, ainda não se sabe bem como é que o apoio de Trump às ciberdivisas se vai materializar, o que tem levado a um aumento galopante na especulação, na mineração e na troca de ações.

A empresa especializada em bitcoin MicroStrategy anunciou ter investido mais de dois mil milhões a comprar bitcoin entre 31 de outubro e 10 de novembro, o que levou as ações a aumentar 26%. Por outro lado, os especialistas em mineração Riot Platforms, MARA Holdings e CleanSpark, viram as suas posições valorizar 17 e 30% respetivamente.

Donald Trump já fez saber que vai substituir Gary Gensler na presidência da Securities and Exchange Commission, o que poderá significar menos intervenção do regulador neste setor e também anunciou em setembro um novo negócio neste setor, a World Liberty Financial.

“O que estamos a ver não é só uma marca no preço, é um sinal de que o mercado está a aquecer para a ideia de uma bitcoin mais estável e um bem politicamente mais favorável”, vaticina Justin D’Anethan, responsável por desenvolvimento de negócio na Keyrock.

Quando algo se parte dificilmente conseguimos colar todo e cada pedacinho por forma a recriar o objeto. Há quem, com muito jeito, prática e sobretudo tempo e paciência, consiga mais ou menos fazê-lo. Mas a forma inicial nunca mais voltará a ser a mesma.

Conheci alguém que pegava em todos os cacos que podia e com eles criava novas formas, telas artísticas, tampos de mesa, o que fosse dando assim uma segunda vida aos pedaços que soltos eram apenas lixo.

O que assistimos hoje um pouco pelo mundo inteiro, sem que Portugal seja exceção, é que a política e a sociedade estão irremediavelmente partidas. Nada pode recuperar a forma anterior e o que para uns é uma calamidade, para outros pode ser encarada como a possibilidade, quem sabe única, de transformar o que havia em algo totalmente novo.

A eleição do novo inquilino da Casa Branca parece ter agradado apenas aos americanos. Mas em bom rigor não são eles quem tem que decidir da sua democracia e da forma como querem que o seu país seja governado? Seria absurdo imaginarmos alguém fora de Portugal tecer considerações sobre a eleição presidencial ou o resultado das autárquicas.

Claro que a presidência norte-americana com toda a influência quer em matéria de política externa quer no que diz respeito à economia mundial muito para além dos limites físicos dos EUA.

A eleição do novo inquilino da Casa Branca parece ter agradado apenas aos americanos. Mas em bom rigor não são eles quem tem que decidir da sua democracia e da forma como querem que o seu país seja governado? Seria absurdo imaginarmos alguém fora de Portugal tecer considerações sobre a eleição presidencial ou o resultado das autárquicas

E é também evidente que a política é, hoje em dia, a tal borboleta que, ao mover as asas, provoca um tsunami do outro lado do mundo. Ou, como diria alguém bem mais prosaico, isto anda tudo ligado.

O maior e mais cínico dos paradoxos atuais é o facto de assistirmos a conflitos fomentados ou pelo menos alimentados na sua maioria por forças externas, que provocam enormes vagas de pessoas deslocadas e continuar a ser discutida a todos os níveis e em todos os quadrantes políticos mundiais o direito à migração.

O novo, mas já não principiante, inquilino da Sala Oval, ficará para sempre ligado ao famoso muro entre o México e os EUA. Não é um bom cartão de visita, tanto mais que não corresponde completamente à verdade. Quer o seu antecessor quer Biden têm responsabilidades tanto na construção quer nas políticas restritivas que levam à desumana separação de famílias, num claro e violento ataque aos Direitos Humanos.

No entanto o Sr. Trump consegue ir sempre mais longe, presenteando-nos com a sua megalomania ao nomear “czares” para as áreas consideradas chave, entre elas a imigração.

Para além do controle de fronteiras, o processo de deportação teve já inicio com operações de fiscalização em diversos locais, em busca de imigrantes em situação irregular. Pouco importa se existem filhos nascidos nos EUA e que nunca puseram pé nos países de origem de seus pais! A deportação é para levar à letra e teme-se que o exemplo se estenda a outros países, com ênfase especial aos já conhecidos na União Europeia.

Este cenário e outros que se anteveem não tranquiliza ninguém e muito menos a Europa, relativamente ao resultado da eleição da passada semana e às políticas que daí surgirão.

As movimentações ofensivas quer de Israel quer da Rússia demonstram claramente um sentimento de quase euforia e de real respaldo perante a eleição norte-americana.

O mesmo acontece em relação à economia externa, ameaçada com tarifas aduaneiras brutais, o que levou já a uma contração da indústria automóvel alemã, grande sustentáculo da economia da União.

A ameaça/promessa relativamente ao apoio à NATO pode desencadear o fim do sistema de segurança em que a UE se tem apoiado até ao momento.

Ou seja, muito embora a soberania dos EUA e a sua democracia não possa nem deva ser posta em causa, o certo é que ela é, efetivamente, a borboleta que ameaça escaqueirar todo o equilíbrio europeu.

A questão que se coloca é o que fazer com os cacos que daí resultarão.

Os mais otimistas dirão que esta é a oportunidade e o momento para uma maior autonomia europeia em áreas tão importantes como a defesa e segurança permitindo uma maior relevância na política externa.

Outros, como eu, consideram que a não existência de estadistas europeus, ou até mesmo nacionais, levará a uma profunda crise identitária europeia, que pode ter como resultado o recrudescimento dos nacionalismos baseados em políticas de supremacia do “nós” em detrimento dos “outros”.

Seja qual for a solução, tal como a faiança que cai, nada será como dantes. Não será possível reconstruir o prato, a terrina ou a figurinha.

Restam pois duas soluções: ou lhes aplicámos os velhinhos “gatos” que mais não são que grandes agrafos que desfeiam e apenas remedeiam ou criamos um outro objeto.

Uma nova União Europeia.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

Nem tudo o que testamos ao longo das várias edições é caro ou de luxo. E isso é positivo, pois permite-nos descobrir gadgets mais simples e a preços bem mais acessíveis. Um bom exemplo são os auscultadores Bowie H1i da Baseus.

A construção destes auscultadores é bastante simples, sendo composta maioritariamente plástico, o que transmite uma sensação de pouca resistência. As almofadas poderiam ter mais enchimento, especialmente para uso prolongado, mas isso também justifica o preço mais acessível dos Bowie H1i.

Baseus Bowie H1i
Os auscultadores Bowie H1i destacam-se pelo design simples e contam com tecnologia de cancelamento de ruído (ANC)

As hastes têm uma dobradiça que permite dobrar os auscultadores, o que é um detalhe útil para facilitar o transporte e arrumação em espaços pequenos. A combinar com a simplicidade da construção, os botões são físicos, e não há qualquer painel tátil. Há um botão de energia, que também coloca em pausa o que estamos a ouvir, outros dois que nivelam o volume e uma patilha que ativa a tecnologia de cancelamento de ruído (ANC). Já no que toca à conectividade contamos com uma entrada USB-C e um jack de 3,5 mm.

Baseus Bowie H1i
Os Bowie H1i da Baseus estão disponíveis em três cores diferentes

Bowie H1i: Som razoável e uma app bem conseguida

A aplicação que acompanha os Bowie H1i disponibiliza diversos modos de personalização de áudio

A qualidade sonora dos Bowie H1i não é impressionante, mas cumpre o essencial para utilizadores menos exigentes, contribuindo para uma experiência auditiva razoável. Com volumes equilibrados, não se nota distorção e os graves são claros. No entanto, quando aumentamos o volume, a qualidade dos graves cai drasticamente, com uma distorção evidente que afeta o som.

Nos agudos, a experiência é melhor, conseguindo-se um som mais nítido, mesmo em volumes elevados. A tecnologia de cancelamento de ruído não é espetacular, mas consegue reduzir algum ruído ambiente, embora esteja longe da qualidade dos modelos topo de gama. Contudo, sentimos que em locais onde o ruído exterior é mais elevado, a eficácia da tecnologia de ANC não cumpre os mínimos.

Uma surpresa agradável foi a aplicação Baseus, que disponibiliza várias opções de personalização de som. Existem três modos principais: o modo normal, o modo de música (o nosso preferido, por dar um som mais impactante) e o modo de cinema, que não apreciámos, pois parece que estamos a ouvir música num túnel. Além destes há mais de uma dezena de personalizações possíveis que têm impacto real na experiência auditiva.

Autonomia e carregamento

A autonomia não deverá ser um problema, já que a marca garante cerca de 100 horas, o que, pela nossa experiência de vários dias de utilização intensiva, é perfeitamente alcançável. No entanto, ao optar pela utilização com o ANC ligado, a autonomia é reduzida para cerca de 70 horas, o que continua a ser um valor aceitável e superior ao de muitos outros auscultadores no mercado. Durante uma semana de trabalho, conseguimos utilizá-los nos dias de trabalho regularmente, e este é um aspeto que valorizamos bastante. O tempo de carregamento completo é de duas horas, o que se justifica pela longa duração de utilização que garantem.

Baseus Bowie H1i
O preço é acessível e satisfaz as necessidades mais básicas de quem procura auscultadores com som q.b, sem investir muito dinheiro

Por fim, o preço é equilibrado, considerando a experiência auditiva. É importante salientar que estes auscultadores são low-cost, desenvolvidos para quem não quer gastar muito, mas procura uma qualidade de som satisfatória.

Tome Nota
Baseus Bowie H1i – €59,99
eu.baseus.com

Construção Fraco
Cancelamento de ruído Satisfatório
Autonomia Muito Bom
Som Bom

Características Frequência: 20Hz–40kHz ○ 40mm Neodymium Driver, Autonomia: 100 horas, c/ ANC: 70 horas ○ Conectividade: USB-C, Bluetooth 5.3 ○ Codecs AAC, SBC, LHDC ○ Bateria: 600 mAh ○ Tempo de carregamento: 2 horas ○ Peso: 226 g

Desempenho: 3,5
Características: 3,5
Qualidade/preço: 4

Global: 3,7

O Calendário de Marketing e Redes Sociais 2025 da E-goi — plataforma de automação de marketing omnichannel — já está disponível para download gratuito. Este ano, a ferramenta oferece mais de 270 datas estratégicas e 25 estratégias comprovadas, selecionadas para ajudar as empresas a promover as suas campanhas ao longo do ano.

O recurso, já habitualmente desenvolvido pela E-goi, visa auxiliar no planeamento de marketing. Ao longo dos anos, já foram mais de 30 mil empresas impactadas com a ferramenta, que se afirma como uma verdadeira aliada para diferentes setores.

Para 2025, a plataforma decidiu ir além, transformando a sua conhecida ferramenta em algo mais valioso. “Decidimos que era hora de inovar e trazer ainda mais valor para as empresas”, explica Marcelo Caruana, Head de Marketing da E-goi. “Além do mapeamento habitual de datas, este ano incluímos estratégias para promover os principais eventos do ano.”

Assim, o novo calendário de marketing vai além do mapeamento tradicional e destaca-se como um recurso mais estratégico para profissionais de marketing. Com mais de 270 datas — incluindo feriados, dias comemorativos e eventos relevantes para os setores de marketing e negócios — o calendário agora também inclui mais de 25 estratégias práticas para apoiar a comunicação de datas-chave, como o Dia dos Namorados, o Dia da Mãe e a Black Friday.

A nova abordagem garante que as empresas estejam cientes das datas importantes e equipadas com estratégias para tirar o máximo partido de cada oportunidade relevante do ano. “Queremos entregar valor para as empresas e ajudá-las a aproveitar todos os momentos do ano”, salienta Caruana.

Embora traga novidades, o calendário de marketing da E-goi mantém recursos que se revelaram valiosos ao longo dos anos, como o envio mensal de emails com lembretes das datas importantes e a integração facilitada com Google Calendar, Outlook e Apple. Estas funcionalidades tornam o planeamento ainda mais eficiente, permitindo que as empresas se concentrem em criar campanhas impactantes e bem-sucedidas.

O calendário já está disponível e pode ser encontrado em três idiomas. Para descarregar gratuitamente, basta aceder: Calendário de Marketing 2025.


CONTEÚDO PATROCINADO POR E-GOI

O “Toxic Panda” é um malware que se aproveita dos serviços de acessibilidade dos dispositivos Android para roubar dinheiro às vítimas, sem que as mesmas se apercebam. O vírus infiltra-se nos telemóveis Android, disfarçado de aplicações falsas – como o Google Chrome ou o Visa -, que os utilizadores descarregam através de links colocados em sites fraudulentos e nas redes sociais ou através de lojas de aplicações não oficiais. Uma vez instalado, este malware “trojan” – ou seja, “disfarçado” – abusa dos serviços de acessibilidade do dispositivo – como o reconhecimento facial, por exemplo – para obter permissões, manipular entradas do utilizador e capturar dados de outras aplicações.

O vírus Toxic Panda consegue intercetar palavras-passe de utilização única – geralmente enviadas por SMS ou geradas com aplicações autenticadoras – o que lhe permite contornar as proteções da autenticação de dois fatores e concluir transações fraudulentas. O atacante, para além de conseguir recolher todas estas informações, é ainda capaz de controlar à distância o dispositivo da vítima e fazer, facilmente, transferências de dinheiro sem que a pessoa se aperceba.

O malware foi detetado pela primeira vez em outubro pela empresa de cibersegurança Cleafy Intelligence e tem feito vítimas em vários países com mais de 1 500 dispositivos já afetados. A Itália é o país mais atingido pelo Toxic Panda – com 56,8% dos ataques – seguido de Portugal (18,7%), Hong Kong (4,6%), Espanha (3,9%) e o Peru (3,4%). De acordo com a Cleafy, este malware é originário da Ásia e acredita-se que ainda esteja em fase de desenvolvimento, uma vez que possui alguns comandos que ainda não têm funcionalidades reais.

Como posso proteger o meu dispositivo Android?

Na grande maioria dos casos, as vítimas deste esquema não se apercebem que o seu dispositivo foi atacado até verificarem a existência de transações que não autorizaram. Os utilizadores de Android são os mais vulneráveis a serem vítimas do Toxic Panda, uma vez que o sistema do dispositivo permite que sejam descarregadas aplicações fora da Google Play – a loja oficial de aplicações. Uma possibilidade que não é permitida nos sistemas operativos iOS, da Apple.

Para garantir a segurança do dispositivo, é recomendado aos utilizadores que mantenham o sistema Android atualizado e que evitem instalar aplicações de plataformas não oficiais ou de links que circulam pelas redes sociais e emails.

Diz que o frio vai chegar hoje a Portugal. Perante os anúncios da meteorologia, conheço quem tenha feito verdadeiras despedidas do verão de São Martinho, as mais ousadas até envolveram mergulhos no mar. Espera-se agora que esses exageros estivais não levem as pessoas para a cama. Só por uma razão e ela está escrita no título que abre esta newsletter. 

Nos últimos dias, a área da saúde tem sido marcada por episódios graves, tristes e só não são inexplicáveis, porque ontem a ministra da saúde esteve seis horas a tentar clarificá-los no Parlamento

Daí resultou um mea culpa pela situação dramática que se viveu na semana passada, na sequência da greve dos técnicos do INEM às horas extraordinárias e do não assegurar dos serviços mínimos no dia 4, por falta de recursos humanos, e que teve como saldo trágico 11 mortes derivadas do atraso no atendimento. Neste momento, todas os casos estão a ser investigadas, mas da morte já ninguém os salva.

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No belíssimo jardim da casa Pauline Viardot-García, onde hoje se situa o Centro Europeu da Música (CEM), um grupo de jovens cantores de ópera, das mais diversas nacionalidades, junta-se a um canto e ensaia a gravação de um tema.

Desta vez o que cantam não é uma ária de Rossini ou Mozart, mas uns tão vulgares Happy Birthday to You. O aniversariante é, nada mais nada menos, do que Georges Bizet, o autor de Carmen, cujo aniversário coincide com o dia mundial da ópera (25 de outubro).

Bizet, se fosse vivo, poderia efetivamente surgir ali, a subir a colina, já que a sua fica junto ao rio Sena, a 10 metros dali, e ele próprio era um dos habituais frequentadores da casa de Pauline.

Naquela casa do séc. XIX, com um jardim magnífico, funciona agora o Centro Europeu da Música, dirigido pelo ex-cantor de ópera português Jorge Chaminé. Mas já lá vamos, Interessa-nos antes falar destes jovens e talentosos cantores, vozes do presente e do futuro da ópera.

Todos eles aproveitaram a I Edição do  Cascais Ópera para mostrar o seu talento e todos eles estão em algumas das mais conceituadas companhias de ópera mundiais, sendo que alguns conseguiram o seu contrato através da prestação no concurso português. Para Adriano Jordão, um dos diretores do Cascais Ópera, o sucesso foi tão grande quanto inesperado, ao ponto de afirmar: “Se soubesse que ia correr tão bem, nunca me teria metido disto”.

Os números falam por si. O concurso sem historial teve mais de mais de duzentas candidaturas de 39 países na primeira edição. Agora o objetivo é expandir a ideia, com novos parceiros, incluindo CEM, permitindo um crescimento exponencial. Daí a ação de divulgação feita em Paris, com recitais na Embaixada de Portugal e no CEM, que, na verdade, são feitas a pensar também nas redes sociais, que é o meio privilegiado para divulgar a informação entre os jovens.

Em conjunto ou em separado sobem ao palco cinco cantores: duas portuguesas, dois ucranianos e um coreano. A estes acrescenta-se um jovem pianista italiano – ironicamente aquele que é nativo de uma das línguas da ópera… não canta.

Cada um tem a sua história, mas todos eles têm em comum um início de carreira auspicioso que obriga à saída da sua terra natal.

As cantoras portuguesas

Um dos elementos surpreendentes da primeira edição é a quantidade e a qualidade dos participantes portugueses, tendo mesmo Sílvia Sequeira, 1º Prémio “Teresa Berganza” para voz feminina.

“A entrevista pode ser feita com o sotaque do Porto, é que se não puder também não há alternativa”, diz, bem disposta, a cantora, que é a primeira a subir ao palco interpretando uma ária de Wagner. E depois lá nos conta a sua história.

Foi nascida e criada em Matosinhos, habituada a bom peixe, e às conversas das varinas na lota. O pai é músico. E ela seguiu-lhe as pisadas. Primeiro começou por tocar trompa no Conservatório do Porto, mas depois descobriu que o que realmente gostava de fazer era cantar.

Fez a licenciatura na ESMAE, mestrado em Maastricht (onde atualmente vive). “Mal entrei na Holanda fiz várias audições e tenho tido muitos convites”, diz ao JL. Foi desafiada a inscrever-se no Cascais Opera pela diretora Alexandra. “Quando vi todos aqueles nomes nunca pensei que poderia ganhar o primeiro prémio”. Mas ganhou. “Houve muita gente a ouvir-me, as pessoas vão-me conhecendo, até porque algumas me viram na televisão”.

Teresa Sales Rebordão não ganhou o prémio principal, mas ainda assim o Cascais Opera trouxe-lhe oportunidades. Começou por cantar no coro infantil da Universidade de Lisboa (a mãe cantava no coro de câmara), depois entrou para o Instituto Gregoriano.

Fez o secundário em Ciências, entrou em biologia na Universidade de Lisboa, mantendo-se sempre a estudar música. A meio do curso de biologia, teve a primeira experiência operática no Gregoriano. “Fez um clique. Apercebi-me de que a música tinha demasiada importância para mim e teria que ser a minha profissão”.

Um dos elementos surpreendentes da primeira edição é a quantidade e a qualidade dos participantes portugueses, tendo mesmo Sílvia Sequeira, 1º Prémio “Teresa Berganza” para voz feminina

Fez provas para estudar em Colónia, onde acabou por tirar a licenciatura e o mestrado. O Cascais Ópera foi o seu primeiro concurso. Ganhou o prémio contrato com o Festival de Marvão mas, mais importante do que isso, fez o contacto que lhe permitiu fazer uma audição para a Ópera de Viena, que atualmente integra.  Nos recitais cantou Joly Braga Santos, Hoffenbach, Johann Strauss II e Franz Léhar.

Às duas perguntámos o que se passa com o nosso país, para que o sucesso implique sair de portas – na música erudita é assim há séculos. Silva é muito direta, diz: “Existe uma negligência para com os artistas. Uma ideia de leviandade sobre o nosso trabalho, como se fosse um hobby. Lá fora não é assim”.

Teresa explica: “Tendo em conta que há apenas uma casa de ópera no país, as oportunidades são muito poucas. Tive que sair de Portugal para a Alemanha, país que tem mais casas de ópera do mundo, mais que 50”.

Anna Erokhina é ucraniana, mas vive em Helsínquia há cinco anos. Venceu o terceiro prémio do Cascais Opera. Quando pedimos para conversar com ela, pergunta-nos se pode gravar o início da entrevista para o seu Instagram pessoal.

É sintomático da postura geracional, que tem a consciência que a autopromoção é um recurso necessário. Começou por cantar num coro, mas já na altura o que queria era ser solista. Começou por cantar música pop e integrar uma banda de jazz, mas quando descobriu a ópera não quis outra coisa.

“O mundo da ópera era algo completamente novo e fascinante. Decidi que era aquilo que queria fazer na vida. Adoro a ópera e não trocaria por nada”. Diz que ainda canta outras músicas com os amigos em karaokes e, a nosso pedido, quando lhe perguntámos qual era o seu standard favorito, cantou com uma voz cristalina um standard de Charlie Parker. Nos recitais cantou Bizet e Pietro Mascagni.

Haesu Kim acaba por ser o representante da comitiva sul-coreana. A ópera é um autêntico fenómeno na Coreia. Haesu é um dos três finalistas do Cascais Opera sendo que o seu colega Hae Kang venceu o prémio principal do festival para a voz masculina.

Haesu explica: “Nós na Coreia gostamos muito de cantar. Estamos a cantar o tempo inteiro, por isso é que o karaoke é tão popular”. Começou por cantar temas tradicionais coreanos e depois aproximou-se da ópera e esse tem sido o seu percurso a partir de então.

“Precisamos de fazer marketing, senão ninguém sabe nada sobre nós. Por isso, é que concorri ao Cascais Opera e agora estou aqui”. “Podemos praticar muito em casa, mas o mais importante é aprender no palco, que é o que acontece neste festival.” Canta com incrível graciosidade. No recital cantou Bizet e Puccini.

É absolutamente espantoso assistir a estas cinco vozes de realidades tão diferentes a banquetear-nos com atuações que, além da qualidade da voz em si, são tão expressivamente ricas. Aliás, o ambiente descontraído entre eles é notável. Nos intervalos, em vez de ensaiaram as áreas, põem-se a cantar, por exemplo, clássicos de Elvis Presley ou do musical Air. A versatilidade não se perde.

Como tudo começou

O Cascais Opera partiu de uma ideia do barítono russo Sergei Leiferkus a figura da ópera mundial, conhecido pelo seu papel de Iago, contracenando com Plácido Domingo, em Otelo. O barítono viveu 23 anos em Londres, mas, como explicou ao JL, estava cansado do frio, e procurou um lugar mais quente.

Depois de algumas investidas no sul de Espanha, encontrou o seu lugar ao sol em Cascais, vila onde ainda hoje vive. Ou melhor, como explica, “se me perguntarem onde eu moro, eu digo que é nos aeroportos”. Continua no ativo e é um cantor muito procurado, com uma agenda sempre cheia, ainda com atuações nos dois mundos: tanto viaja para as grandes óperas do ocidente como faz digressões na Rússia, aliás, mantém também uma casa em São Petersburgo.

Quando chegou a Portugal, há 17 anos, o famoso cantor deparou-se com uma realidade que lhe pareceu estranha: a enorme carência de programação de música erudita. Falou então com Adriano Jordão, que entretanto conhecera, e sugeriu a criação de um festival de ópera, de revelação de novos talentos, ao exemplo de um em que tinha estado em Helsínquia.

Os dois tiveram reuniões ao mais alto nível e foram trabalhando na ideia até conseguir os fundos necessários para o arranque. Quando finalmente estava tudo preparado, espoletou a Guerra da Ucrânia e a restrição aos dinheiros vindos da Rússia puseram em causa a viabilidade económica. Mais dois anos de esforço até que, em maio de 2024, foi finalmente possível fazer a primeira edição do Cascais Opera, que decorreu em Cascais em Lisboa, com a final no São Carlos.

Sergei Leiferkus tem um percurso singular. Começou a cantar por insistência da professora de inglês da escola, que fazia aulas dinâmicas com canções tradicionais e inglesas e russas. Foi assim que descobriu que tinha uma voz. A partir daí foi uma questão de estúdio, esforço e trabalho.

Um dos motivos de sucesso do Cascais Opera é a escolha do júri. Os jurados são figuras maiores e reconhecidas da ópera mundial, diretores de companhia, ilustres cantores. Tal permite que o festival sirva de audição em grande escala. Muitos dos concorrentes de 2024, mesmo aqueles que não ganharam prémios, conseguiram contratos com importantes companhias.

Leiferkus, que, além de diretor artístico, é o presidente do júri, explica o que os jurados observam: “Primeiro que tudo é preciso ter uma voz. Depois é preciso ter uma capacidade de interpretação artística e finalmente carisma”, , lembrando que a Ópera é uma arte performativa, parente do teatro. Sintetiza: “Olhamos para estes cantores na perspectiva de ver que futuro poderão ter”. E no caso dos premiados e daqueles que acompanharam a comitiva a Paris, adivinha-se um futuro auspicioso.

Previsões para o futuro

O sucesso da primeira edição do festival foi acima das expectativas, mas agora a ambição redobrou. É isso que nos explica Alexandria Maurício, que com uma equipa muito pequena, assume a direção do evento.

É expetável um grande crescimento, pois há testemunhas do sucesso que teve a primeira edição. E isso pode fazer com que a fama do recém criada o festival chegue a ainda mais gente. Isto, claro, com o duplo objetivo de aumentar o número de concorrentes e promover a ópera em Portugal. Para tal, este ano também contam com novos parceiros. 

Um dos mais importantes é o Centro Europeu da Música, cuja sede se situa em Bougival, a oeste de Paris. O centro é dirigido pelo português Jorge Chaminé, antigo cantor de ópera, que chegou a contracenar com Sergei, e grande entusiasta da música erudita. O espaço onde o centro se situa foi recuperado graças a um grande esforço feito pelo próprio. Chaminé é um exímio contador de histórias, com uma vasta cultura

A sede da CEM era a morada de Pauline Viardot-García, uma das mais carismáticas cantoras de ópera de todos os tempos. Teve aulas de piano com Liszt (aliás um dos pianos da casa era do próprio Liszt), mas acabou por enveredar pelo canto, após uma tragédia familiar.

A casa era frequentada por figuras ilustres. Dentro do mesmo terreno, um pouco mais acima, fica uma outra casa, num estilo mais próximo do estilo chalé. É a casa-museu de Ivan Turguêniev, que terá sido seu amante. O escritor russo viveu e morreu ali e a sua casa foi recuperada há décadas, servindo-se também de um fundo da então União Soviética.

Mais abaixo, na margem do Sena, fica uma casa mais discreta que pertenceria a Georges Bizet. Jorge Chaminé conta-nos muitas histórias, incluindo a altura em que o compositor de Carmen inventara um escorrega que saía de uma das janelas do andar superior diretamente para o rio.

Foi ali que nasceu Carmen. Na sala de baixo está o piano em que o compositor francês escreveu a ópera, enquanto, no andar de cinema, Henri Meilhac escrevia o libreto (que depois foi revisto e em parte rescrito pelo próprio Bizet e por Ludovic Halévy). Como se sabe, a estreia em Paris, em 1875 foi um fiasco e Bizet não teve reconhecimento em vida.

Mas o tempo havia de lhe dar razão. Carmen é sem dúvida uma das mais populares óperas de hoje em dia. Aliás, tornou-se mais conhecida do que o próprio Bizet.

Adriano Jordão com Sergei Leiferkus e Jorge Chaminé – Os diretores artísticos do Cascais Ópera com o diretor do Centro Europeu da Música

Difícil de explicar é o estado de degradação a que se deixou chegar a casa Bizet. Está fechada ao público, a cair de podre, necessitando de obras urgentes, mas ainda não está aprovado qualquer plano de transformação em casa museu. Jorge Chaminé tem o plano ambicioso de fazer uma passagem subterrânea, juntando a Casa de Bizet à Pauline, fazendo um grande polo cultural dedicada à música operática. São largos milhões e faltam mecenas.

Para já, Jorge Chaminé tem em mãos um outro grande projeto. O CEM vai crescer, ganhando espaço para workshops e residências artísticas, criando uma rede por toda a Europa, que inclui espaços em Portugal.

Isto e o Cascais Opera, que tenta criar em Portugal um pólo de revelação de talentos, mesmo que seja contracorrente. Claro que é impossível concorrer com o investimento alemão ou austríaco, em que todas as cidades médias e grandes têm pelo menos uma companhia de ópera.

Mas, com um pouco de investimento público, Portugal tem as condições certas para crescer.  Para Sergei a receita é simples: “A formação é essencial. É preciso o acompanhamento dos pais e existir uma escola de música perto de casa.” Um dia os governos vão perceber que os nossos grandes cantores não estão aqui.

O poema chama-se “Save” e nele fica clara a sua relação com a memória. “Nada fica, a própria memória/ é uma mitologia, tenho-me/ como testemunha mas nada/ garante que um dia não negue/ tudo, então haverá este processo/verbal, museu portátil que com/ um gesto, dizem, está salvo./”.

Pedro Mexia (PM) é um poeta consciente da imprecisão da memória, dos efeitos da passagem do tempo, mas também sabe – e disso tem uma consciência aguda – que “tudo acaba”. E, por isso, escreve: para fixar no poema fragmentos de vida.

Com o primeiro livro, Duplo Império, publicado em 1999, PM chega agora aos 25 anos de percurso literário, efeméride assinalada com estes Poemas Reunidos, uma edição da Tinta-da-China.

Não são todos os poemas, pois de alguns se afastou há algum tempo, mas aqueles de que mais gosta, agora divididos numa nova organização temática. Incluindo vários inéditos e poemas nunca reunidos em livro, são escritos sobre a vida oculta, a cidade de Lisboa, as afinidades eletivas, as ligações familiares e outras figuras que povoam o seu imaginário. Um retrato de um poeta também cronista, leitor voraz, comentador de políticas e de linguagens públicas.

Nascido em 1972, em Lisboa, PM é licenciado em Direito e começou cedo a colaborar nos jornais, primeiro no DN Jovem, depois como crítico e cronista no DN e no DNA, nos últimos anos no Expresso. Na rádio e na televisão é um dos rostos do Programa Cujo Nome Estamos Legalmente Impedidos de Dizer (antes chamado Governo Sombra), ao lado de Carlos Vaz Marques, João Miguel Tavares e Ricardo Araújo Pereira.

Diretor da revista Granta em língua portuguesa e da colecção de poesia da Tinta-da-China, é ainda assessor para a Cultura do Presidente da República Marcelo Rebelo de Sousa.

Vinte cinco anos de percurso literário, que esta antologia assinala, é momento propício a balanços. Também os fez? Qual a primeira imagem que lhe surge quando pensa nesta efeméride?

Pedro Mexia: É uma data com alguma importância para mim, mas nada mais do que isso. Não é um marco de nada. Faz sentido publicar este livro agora, como também teria feito quando cheguei aos 50 anos, mas aí houve alguns atrasos. O mais importante para mim era tornar acessíveis livros (ou poemas) que estavam há muito esgotados, alguns publicados em editoras que já não existem.

Também queria voltar a disponibilizar os poemas de que eu gosto, livrando-me dos outros, organizando-os de uma forma completamente diferente, o que me parece ser a marca deste livro.

Que organização é essa?

O livro não reproduz a ordem pela qual os poemas foram publicados. À organização cronológica, contrapus a temática. Fotocopiei todos os poemas que publiquei, li-os, selecionei os de que gosto mais e a partir daí organizei um novo livro.

Não me reconheço nos poemas que não estão aqui, nem tenho intenção de os voltar a publicar.  Estes são todos os poemas que neste momento quero preservar, numa ordem nova

Não vê nele uma antologia?

Não. Não me reconheço nos poemas que não estão aqui, nem tenho intenção de os voltar a publicar.  Estes são todos os poemas que neste momento quero preservar, numa ordem nova.

Mas 25 anos são 25 anos. Não houve balanços, revisitação do percurso feito, recordações dos momentos em que tudo se apostou na escrita?

Nem por isso. Dei importância à data porque gosto de efemérides. E porque cheguei aos 50 anos. Ter esta idade ou ter 25, quando tudo isto começou, não é a mesma coisa (como em quaisquer outras idades, claro). Há um olhar retrospetivo, existencial, que contamina o olhar para os poemas escritos ao longo deste tempo, incluindo sobre alguns que são ainda mais antigos e que foram publicados em Duplo Império.

Essa diferença de olhar, e de vida, está bem presente nos cerca de 40 poemas inéditos (ou inéditos em livro) incluídos neste volume. Tudo isto me passou pela cabeça, mas o mais importante foi a sensação de não estar contente com nenhum dos meus livros e a vontade de reunir os de que gosto mais, dando uma legibilidade ao que escrevi até agora.

Nunca publicará toda a sua poesia reunida? Esses poemas que ficaram de fora deste volume não voltarão a ser publicados?

É essa a ideia. Esta é a minha poesia reunida. E é possível que num novo livro que reúna poemas meus já não estejam algumas poemas que aqui estão. É um privilégio que é concedido aos livros de poesia: fazerem-se depurações.

E não há poemas que estejam no limbo, recusados agora mas com hesitações?

Houve alguns que estiveram até à última hora, num diálogo com a minha editora [Bárbara Bulhosa, da Tinta-da-China]. E não foram incluídos porque eram muito parecidos com outros, melhores, que estão aqui. Não valia a pena ser redundante. Não é muito provável que esses poemas excluídos regressem. Posso vir a recuperar alguns versos de poemas que no seu todo são bastante maus. 

Recuperados num poema novo?

Sim. Nesta tarefa de ler tudo o que escrevi, encontrei alguns poemas francamente maus com um ou outro verso bom. Quem sabe se não surgem, reciclados, num livro futuro. Há o caso de um poema que tinha uma página e meia e que acabou reduzido a oito versos. Começava bem e depois descambava.

Também há poemas que apareceram em antologias anteriores que publiquei e não estão aqui. O que quer dizer que até há bastante pouco tempo eu achava que determinado poema era aceitável, embora hoje já não ache. Só tive um cuidado: não excluir poemas só porque não os escreveria agora, porque já não sou aquela pessoa.

Que critérios usou então para incluir ou excluir poemas?

A relação que eu tenho com os poemas é sempre a mesma: gostar ou não do poema enquanto poema. Havia poemas muito crípticos, outros muito prosaicos. Dois critérios para os eliminar. O livro de poemas  que publiquei sobre Lisboa está pouco representado, porque hoje parecem sobretudo anotações.

Quis preservar os que são mesmo poemas. Mas também não quis excluir poemas por motivos que me parecessem extraliterários: porque já não sou assim, já não sinto daquela maneira, penso de forma diferente. Excluí ainda poemas que se referem a factos que eu hoje sei que não acontecerem exatamente como estão descritos e que, na altura em que os escrevi, eu não o sabia.

Em que sentido?

A poesia é não-ficção, claramente. Mas sei que há coisas que estão escritas nos poemas que foram resultado de impressões. Estavam na minha cabeça e não na vida real e assim ficaram.

“Foi sempre claro que tenho mais interesse pelo poema curto do que o poema longo, pelo poema contido do que o poema exuberante, o disfórico em vez do eufórico”

Um político é sempre perseguido pelas opiniões que teve no passado. Um poeta está livre desse passado, dos eus diferentes que viveu, das visões do mundo que foi tendo?

Está livre até da sua má poesia. Mesmo quando se renegam poemas (não é o meu caso), eles estão aí para quem os quiser descobrir. Eus diferentes há certamente nos meus poemas, pois 25 anos é muito tempo. Visões do mundo nem tanto. Há poucos poemas claramente datados, até porque a maior parte é retrospetiva, falam a partir do momento e da idade que eu tinha quando os escrevi, embora se reportem a um período anterior. Por causa disso, a cronologia biográfica acaba por ter pouco interesse.

Na nota final do volume, diz que queria incluir apenas 25 poemas, mas que a sua editora o convenceu a escolher 200. Tem um núcleo assim tão reduzido de poemas de que gosta mesmo muito?

Os 25 são mais uma imagem do que uma vontade. É verdade que cheguei a propor um volume com menos poemas, talvez 80. E o critério seria simples: escolher aqueles poemas que normalmente leio em público, quer em sessões de poesia, quer nas apresentações dos meus livros. Há poemas neste volume que nunca li em público, alguns porque não se prestam a isso, outros por diversas razões.

Ainda assim, parece ser um leitor muito exigente da sua poesia.

Não sei avaliar isso. Sei que a minha editora queria incluir mais poemas. E não gosto da ideia de sermos os maiores críticos do nosso trabalho, porque nunca o somos. Este também foi o primeiro livro que fiz em diálogo com outra pessoa. E algumas escolhas resultaram desse diálogo. Esse olhar exterior foi muito útil.

A memória é seguramente a palavra mais forte deste livro. Escreve com a incerteza, a recordação imprecisa?

Sim, sim. É trabalhar com a incerteza. Há duas experiências muito comuns que mostram isso. Os testemunhos em tribunal e as conversas em família. Há sempre alguém a dizer que não foi bem assim, que aconteceu de outra maneira. E dentro de uma família há recordações muito diferentes.

Às vezes, é porque umas pessoas têm melhor memória, outras por erros ou equívocos, noutras ainda porque houve má vontade. Todos nos lembramos de forma imperfeita. A memória não é totalmente confiável. E isso é uma dimensão que me interessa muito.

Como é que isso alimenta a sua poesia?

O que me interessa são as imagens mentais. Só nesse sentido é que os poemas são um pouco ficcionais. Não vou fazer fact-checking. Nem tenho como. Não reconstruo memórias, apenas tento transmitir as imagens que estão efetivamente na minha cabeça. Não as falsifico deliberadamente, mas tenho a consciência de que é apenas uma perspetiva, uma interpretação ou uma recordação que muitas vezes é imperfeita.

Trabalha com a memória porque escreve muito tempo depois do que aconteceu, do que se evoca?

Quase sempre. Neste volume são exceções os poemas sobre Lisboa e a sequência dedicada ao meu pai, Verdadeira Herança. É óbvio que os poemas sobre a infância e a juventude também foram escritos mais tarde. Mas há muitos poemas que nascem daquelas frases que nos surgem na cabeça e que ficam num caderno de apontamentos até serem trabalhos.

Apesar de haver poemas sobre a infância, os anos mais revisitados são os que vão dos 20 aos 35. O que teve de tão nuclear essa fase da vida?

Foram os anos da grande transformação. É um período que remete para uma educação sentimental que praticamente não voltou a acontecer de uma forma tão decisiva. Houve experiências posteriores marcantes, nomeadamente perdas, mas não operaram uma transformação tão grande. Porém, embora estes sejam poemas sobre a vida privada, todos, não quero que a chave da leitura seja biografista. São poemas sobre relações humanas, mesmo quando são impessoais e não façam referência a um eu.

Entre os 20 e os 35 anos foi também a sua época de escrita mais intensa?

Há aí uma coisa muito importante, que é entre os 35 e os 42 anos não ter escrito nenhum poema.

O que determinou esse silêncio?

Foram razões mais biográficas do que poéticas. Por achar que a poesia não tinha uma ligação suficientemente forte com a vida, que era mais ficcional do que eu queria. Isto é uma interpretação, uma intelectualização a posteriori, porque na altura simplesmente não queria escrever poemas. Mas isso faz com que os 35 anos não sejam totalmente arbitrários, porque marcam o início desses sete anos sem escrever.

Como regressou à poesia?

Já não me lembro muito bem como aconteceu, mas fiquei sobretudo surpreendido com um convite para um novo livro, mesmo não tendo publicado há muito tempo. Deu-me ânimo. Senti que aquelas pessoas achavam que o que eu tinha escrito não estava terminado – e elas não sabiam que eu não escrevia há muito tempo. Foi muito importante na altura. A partir daí voltei a escrever, mas com menos frequência.

Por mais individual que seja a escrita de um poeta, ela também vive das cumplicidades que vai criando, de estímulos que vêm de fora?

Vive muito das pessoas, a todos os níveis. Por exemplo: nunca uso a palavra “poeta” em causa própria. Mas o facto de poder ser reconhecido como tal por diversas pessoas é um sinal forte. O reconhecimento que vem de fora é sempre importante, mais para uns do que para outros, claro, e mais nuns momentos do que noutros.

Ou seja, não me foi indiferente, muito pelo contrário, o que o Joaquim Manuel Magalhães escreveu sobre os meus livros, ou o António Osório, o poeta de quem fui mais próximo do ponto de vista pessoal e poético, sobretudo no início.

Aos 20 anos também havia já um conjunto de referências nucleares que se mantêm até hoje?

O universo de referências determinante é sempre o da língua em que se escreve, mas o meu encontro entusiástico com a poesia nasceu da leitura dos poetas modernistas anglo-americanos. Em momentos diferentes, Yeats, Eliot, Wallace Stevens e Philip Larkin foram foram poetas que, de uma forma ou outra, me levaram a escrever poesia. É a minha galáxia fundamental, embora nem sempre haja grandes traços destas referências no que eu escrevo.

Foram descobertas pessoais, sugestões de outras pessoas?

O que me recordo concretamente foi a leitura do Yeats na Irlanda, numa viagem que fiz. Já o tinha lido, mas quando cheguei comprei a sua poesia completa e esse mergulho foi muito marcante. Também a compra do poema The Love Song of J. Alfred Prufrock, do Eliot, numa livraria da baixa lisboeta.

Foi o meu encontro decisivo com a poesia, até pela variedade de registos, desde as referências literárias mais obscuras à linguagem coloquial, das ideias à musicalidade. É uma influência grande, mas, mais uma vez, a minha escrita está muito longe. A influência por vezes sugere qualquer coisa da ordem da imitação. Nunca foi o caso nestas referências maiores.

E as referências portuguesas?

São em maior número e foram variando ao longo do tempo. Pessoa é Pessoa, não há nada a fazer nem tem de haver. E Vitorino Nemésio, um grande poeta muito importante para mim. Sem ter heterónimos, é de uma enorme variedade, ao ponto de não se acreditar que alguns poemas foram escritos pela mesma pessoa. Não é casual que a única epigrafe portuguesa deste novo livro seja sua.

Na nota com que encerra o livro, refere-se ainda a uma relação dúplice com o idealismo. Como a define?

O idealismo tem um sentido vulgar e um filosófico. Na juventude e até muito tarde, era bastante idealista e inocente. Deixei de o ser porque não é possível atravessar a estrada, por assim dizer, e continuar a sê-lo. Acaba-se atropelado. Mas continuo a ser idealista no sentido filosófico. Parece um pouco ponderoso, mas digo idealismo por oposição ao materialismo, se se quiser. Acredito que as coisas existem em nós tal como elas existem na nossa cabeça.

Em que sentido?

Não estou a defender que a realidade não existe ou que estamos a viver um sonho. Não são essas teorias. Simplesmente, o que nos determina está na nossa cabeça. Nesse sentido, a memória determina-nos muito.  Gosto de citar uma frase muito lúcida do Adam Philipps: “Tudo aquilo em que pensámos faz parte da nossa experiência.” Isso inclui o que não chegámos a fazer. Mas ter pensado nessa possibilidade também foi uma experiência.

Alguns  dos meus poemas são claramente sobre hipóteses frustradas, amorosas mas não só, como gestos por fazer, palavras que não foram ditas na altura certa. Isso está na minha cabeça. A palavra não dita, por exemplo, pode até desencadear um sentimento de culpa, o que reforça a sua presença mental.

Numa crónica recente referia-se às pessoas que não visitou no hospital.

É outro bom exemplo. Aconteceu-me duas ou três vezes e senti-me terrivelmente culpado. Não aconteceu e não deixa de ser um acontecimento na minha memória.

Nessa relação com o mundo, com o passado e com a memória, há sentimento e linguagem. Mas há também uma sensibilidade própria do poeta?

Há claramente aquilo a que se chama voz, o momento em que uma pessoa encontra o seu registo, mesmo quando é múltiplo. Ao organizar este livro percebi que, mesmo nos poemas de que não gosto, o meu registo ficou mais ou menos estabelecido bastante cedo.

Foi sempre claro que tenho mais interesse pelo poema curto do que o poema longo, pelo poema contido do que o poema exuberante, o disfórico em vez do eufórico. Algumas destas opções têm a ver com influências literárias, outras com traços de personalidade.

Também tem mais interesse pela melancolia do que pelo lirismo, ainda que não sejam registos antagónicos?

Sim, a melancolia é um sentimento muito presente nos meus poemas e, em geral, em tudo o que escrevo. É até um pouco independente do que acontece. É como ser pessimista, que também sou, mesmo quando as coisas estão a correr bem.

O pessimismo não está indexado à forma como a vida está a correr. Está ligado à ideia, que não pode deixar de ser pessimista, de que tudo acaba. Não só a vida, mas tudo.

a melancolia é um sentimento muito presente nos meus poemas e, em geral, em tudo o que escrevo

pedro mexia

Estes poemas são atravessados por coisas que acabaram, por prédios que foram demolidos, relações familiares que já não existem, por amizades que terminaram. Nesse sentido, o livro tem como fio condutor a memória e o tempo. São conceitos que se tocam, mas não são os mesmos.

A memória é uma viagem no tempo, é certo, mas o tempo é menos subjetivo do que a memória. O tempo passa  objetivamente, envelhecemos e morremos, as casas degradam-se. E depois há o que valorizamos e o que esquecemos.

Referiu há pouco os laços familiares. A ideia de pertença é importante para si?

Foi muito importante até determinado momento, hoje menos. Os poemas de infância e de adolescência, por exemplo, são quase todos sobre férias. É uma aldeia de irmãos, para usar um título do António Osório de que gosto muito. Não tenho irmãos, mas tive um grupo alargado de pessoas que marcaram afinidades, convicções, uma identidade.

Numa crónica recente falo um pouco disto, dizia que o que dá solidez a uma família são as pessoas mais velhas e as pessoas mais novas, estas muito iguais entre si. Quando as pessoas mais velhas desaparecem e as que já não são assim tão novas começam a diferenciar-se, a família vai-se deslassando.

Não é uma regra, é um pouco a minha experiência que poderá ser generalizada a outras relações familiares. Por isso, tirando a secção Verdadeira Herança, dedicada ao meu pai, os poemas familiares hoje são menos frequentes.

Os poemas que ficaram neste volume foram reescritos?

Para este volume fiz pouquíssimas revisões, apenas de pormenor. Escrevo sempre à mão e passo a computador, com algumas alterações. Depois, sim, os poemas que escolho para entrar num livro são trabalhados, revistos, revisitados. E, finalmente, há uma parte significativa do poema que depende de o ver em página.

E ver um poema numa página de um livro, já em prova, é mais determinante do que o ver num A4 solto. Mas estas já não são revisões muito extensas, talvez porque os poemas que chegam às provas são os mais trabalhados.

Também escreve as suas crónicas à mão?

Não, só os poemas. A maior parte da prosa é trabalho, com prazos apertados. Não faz sentido ter várias versões. Na poesia, o computador nunca funcionou. Já tentei, mas sinto que a poesia precisa da caligrafia. E não é por prazer estético, pois tenho uma caligrafia horrível.

Os poemas e as crónicas são uma forma de se expor ou de se esconder, tendo em conta o jogo com a biografia, os interesses, as obsessões?

Não tenho interesse em expor-me ou em esconder-me. Não penso nisso. Sei que podemos dizer tudo sobre nós próprios mas não sobre os outros, uma preocupação quase deontológica. Mas pelas crónicas – que têm muito mais feedback do que os poemas – percebi que um texto totalmente impessoal pode ser lido como uma confissão, e o contrário também.

Não tenho interesse em expor-me ou em esconder-me. Não penso nisso. Sei que podemos dizer tudo sobre nós próprios mas não sobre os outros, uma preocupação quase deontológica. Mas percebi que um texto totalmente impessoal pode ser lido como uma confissão, e o contrário também

pedro mexia

Já publiquei duas ou três crónicas muito confessionais, ao ponto de ficar arrependido de as ter escrito, e ninguém ter dado pela intimidade. Basta às vezes não usar um “eu”. Também já tive interpretações delirantes, longe da minha biografia ou intenção. Mas faz parte: ninguém domina, e ainda bem, o que os leitores leem, ainda mais na poesia.

Estes 25 anos de poesia são também de crónicas nos jornais, estas ainda mais antigas. Nunca sentiu a necessidade de construir uma “persona”, uma máscara pública?

Tive grandes preocupações com esses assuntos quando tive um blogue, porque aí publiquei textos muito confessionais e escrevi coisas que não devia ter escrito. Mas tirando esse exemplo muito específico, nada me leva a construir uma “persona”. Há, no entanto, um aspeto que me interessa muito.

As crónicas e os poemas são completamente diferentes. Os poemas são relativamente parecidos uns com os outros, há duas ou três tipologias de poemas que sei e quero escrever. Nas crónicas, até pela âncora temática, tento escrever sobre assuntos completamente diferentes.

Dizem-me muitas vezes: “Nunca sabemos sobre o que é que vais escrever”. Gosto muito dessa ideia. E é intencional. Um cronista que escreve sempre o mesmo texto não é muito interessante, embora fazer o contrário também não seja garantia nenhuma.

A exposição é ainda maior se somar à poesia e à crónica a participação televisiva, há mais de dez anos, no Governo Sombra e agora no Programa Cujo Nome Estamos Legalmente Impedidos de Dizer. É possível essa naturalidade, essa ausência de construção para o exterior?

Poemas Reunidos
Tinta-da-China, 272 pp, 21,90 euros

O que eu gosto de fazer é de escrever. O resto que faço não são coisas de que não gosto, mas faço-as por outras razões. Esses dois programas começaram por ser de rádio e são feitos por amigos com quem me divirto. Além disso, gosto de falar de política.

Claro que quem aparece na televisão é muito mais conhecido apenas por aparecer na televisão. Entre essa exposição e a visibilidade da poesia há uma disparidade que às vezes me desagrada mas que é da natureza das coisas. Fico agradado quando alguém diz que me reconhece sem ser da televisão, não por ter um constrangimento com a televisão, mas porque o que valorizo mais é a escrita.

Ao fim de 16 anos de comentário político, o que continua a surpreendê-lo na política?

O meu interesse pela política é exterior. Nunca quis fazer política partidária, ativa ou como militante. As poucas coisas que fiz foi por amizade ou por proximidade com as pessoas. É um interesse mais teórico do que prático. Mas no programa não discutimos necessariamente a substância da política quotidiana, antes nos fixamos em frases, mal-entendidos, contradições. Acaba por ser um programa quase linguístico, um programa sobre coisas que os políticos dizem. E, nesse sentido, a surpresa é constante.

Palavras-chave:

Músico, poeta, artista visual, Arnaldo Antunes, 64 anos, é uma das figuras de primeira linha da cultura urbana brasileira. A sua faceta mais visível é, sem dúvida, a de músico. Começou por formar os Titãs, banda que marcou o rock brasileiro a partir dos anos 80, com músicas como  ‘Polícia’, ‘Pulso’ e ‘Miséria’.

Depois, lançou-se numa carreira a solo, em que a palavra sempre foi um aspeto preponderante. Pelo caminho teve o enorme sucesso do projeto Tribalistas, em que se juntou a Marisa Monte e Carlinhos Brown para dois discos e vários espetáculos.

Ao longo de todo este tempo desenvolveu paralelamente um percurso de poeta, com vários livros publicados, em edição cuidadas por si próprio, com alguma tendência para a poesia gráfica, mas tendo sempre a palavra com elemento primordial.

Quase Tudo, editado na coleção Plural, da Imprensa Nacional / Casa da Moeda, dirigida por Jorge Reis Sá, reúne a sua obra poética, em que, além das palavras, Arnaldo Antunes transpôs a linguagem gráfica de cada volume para este novo objeto.

Ao mesmo tempo, o músico, que foi o homenageado este ano da “Escritaria”, em Penafiel, anda em digressão, apresentando a versão ao vivo de Lágrimas no Mar, em parceira com o jovem  pianista Vítor Araújo. Sempre à procura, como diz numa das suas mais conhecidas canções, de “qualquer coisa que se sinta”.

Na Bíblia diz-se que no princípio era o verbo. E no seu caso: o que apareceu primeiro, a palavra ou a música?

Arnaldo Antunes: Apareceu tudo junto. Na mesma época em que comecei a interessar-me por poesia estava a ter aulas de violão com desejo de compor. A minha formação na adolescência foi de confluência entre a poesia e a música popular. O Brasil tem uma tradição de música popular sofisticada enquanto poesia cantada.

Era o momento em que se vivia o encontro do Tropicália com a poesia concreta. Havia poetas que também faziam canções, como o Vinicius de Moraes, o Torquato Neto, Wally Salomão, o Paulo Leminski ou o António Cícero, que recentemente perdemos. A coisa da poesia visual e da canção veio junto, mas tudo motivado pelo trabalho com a palavra, seja ela cantada ou ligada à materialidade gráfica.

Quando tem uma ideia para um poema, como sabe se vai resultar em algo apenas escrito ou numa letra de canção?

Geralmente, ao fazer já tenho o destino traçado, um pressentimento daquilo que vai ser. Contudo, as exceções foram-se tornando mais frequentes. Há poemas que fiz e acabaram por ser musicados por alguém, ou letras de canções que acabei por lhes dar uma forma gráfica. Há muito trânsito entre essas áreas.

Apesar de ser um músico, a sua poesia nem sempre contempla a oralidade, alguns dos textos só fazem sentido no papel, até pelo trabalho visual envolvido…

Predominantemente os poemas em livros foram feitos apenas para ser lidos. Há uma escrita para o papel ou visual, em que transformo as coisas em página de forma a fazer um sentido gráfico.

Há de facto uma grande preocupação gráfica com os seus livros, com os seus poemas. É um quebra-cabeças para os editores?

Desde o começo sou que faço a arte gráfica dos meus  próprios livros. Aliás, também fiz muitas capas de discos. De certa forma a minha poesia é pensada com uma materialidade gráfica. O meu primeiro livro, que não está incluído neste volume, porque era uma reprodução impossível, era feito de papéis soltos numa pasta.

Sempre fui apaixonado pelo grafismo. Uma coisa que começou quando ainda não havia impressão digital, então acompanhava todo o processo, a fotocomposição, os fotolitos. Era preciso entregar os negativos e dois dias depois via-se o resultado… Hoje basta apertar um botão na tela e já está.

O reportório de recursos ampliou-se muito com a evolução tecnológica. Agora os efeitos de computador criam desafios para respostas de linguagem.

As letras de canções não couberam neste livro. Porquê?

Seria outro tipo de livro. Gostaria de fazer uma antologia de letras de canções. Acho interessante, porque algumas lidas ganham um novo sentido. Mas este é o conjunto de livros de poesia que publiquei no Brasil, que nunca tinha juntado num só volume. Nome ou o ET Eu Tu não estão completos, devidos devido a questões gráficas. Os outros estão lá com uma adaptação das artes gráficas originais, o que me deu muito trabalho mas também muito prazer.

Mas de alguma forma fazem parte da mesma matéria?

Sim. Acabo por fazer performances de poesia, em festivais, com os poemas que têm essa dimensão sonora. Aliás, um dos livros incluía um CD com versões sonorizadas dos poemas. Sempre fiz isso muito sozinho. Algo que tem musicalidade, mas não é canção. Neste show com Vítor Araújo é a primeira vez que junto as duas coisas no mesmo espetáculo.

A essência é a palavra?

As palavras na poesia são diferentes das do uso corriqueiro do dia-a-dia. Nas outras atividades as palavras têm uma certa transparência, servem apenas para apontar para os caminhos enunciados. Na poesia parece que a palavra cria uma opacidade, coisifica o que está apontando, não está apenas dizendo as coisas, mas sendo o que se diz, enquanto experiência de linguagem. Porque em vez de estar intermediando as nossas relações com os objetos do mundo, ela está a criar uma via de acesso mais direto ao mundo, incorporando os seus sentidos corporalmente.

Em tudo isto há um sentido lúdico…

Tenho uma coisa muito material no processo de trabalho.  Faço muitas versões, imprimo, anoto, volto para o computador… Faço uma decantação. Às vezes escrevo muito e depois tiro apenas um pedacinho, que resulta numa outra coisa.

A criação poética parte de uma ideia, de uma fagulha, e depois, a partir do processo de criação, chego a uma ideia diferente e mais interessante daquela de onde parti. Para compor é igual.

Gravo vários caminhos melódicos até descobrir o que melhor serve para aquela letra. É um exercício muito material e lúdico. Gosto de explorar os limites da linguagem, subverter gramaticalmente a língua, para criar uma nova perceção estética.

Tudo isto com uma cumplicidade com outras artes… Alguns livros contam com fotografia ou ilustração…

Sinto-me sempre um intruso. O que é faço não são artes visuais, mas poesia visual. O que faço não é música instrumental, mas palavra cantada. Sempre tem a poesia por trás de tudo. Mas o desejo de renovação da linguagem leva-me a suportes, a materiais, a escalas diferentes.

Por isso flui levado para o circuito das artes. Agora mesmo, está patente uma exposição em São Paulo, no Museu de Arte Contemporânea, com os meus rascunhos. Há uns anos fiz uma exposição itinerante que abrangia vídeos, objetos, instalações. Gosto de me aventurar em direção a essas outras linguagens.

Isto também é uma adaptação aos tempos em que vivemos, em que no mesmo instrumento temos várias linguagens: música, instrumentais, fotografias, desenho, animação, vídeo.

Voltando aos livros… Muitos dos livros têm um conceito. Ele é criado à partida ou a posteriori?

É difícil ter um conceito anterior. Em alguns casos, comecei a escrever com uma certa ideia. Foi o caso de As Coisas , comecei a fazer uns textos em tom de descoberta do mundo, como se fosse um compêndio das coisas, dentro de um a linguagem original, em que tentava ver as coisas de ângulo muito diferente.

Então eu pedi à minha filha, que tinha três anos, para o ilustrar. Mas o que acontece, regra geral, é que estou sempre rabiscando, produzindo coisas, ando sempre com o meu caderninho anotando coisas. Quando sinto que há um corpo de poemas que daria para pensar na semente de um futuro livro, começo a organizar, a fazer o projeto gráfico e acabo por criar muitos poemas novos em função daquele grupo de poemas que já existia. Isso acaba trazendo uma coesão ao livro. É um processo muito vivo.

Qual a sensação de ver tudo agora compilado neste imenso volume?

É muito gratificante. Dá uma noção mais panorâmica da trajetória. O meu primeiro livro é de 1986. Não há nada que achasse que não deveria estar lá. E agrada-me reproduzir as artes de forma fiel ao original. Cada projeto gráfico tem uma ideia diferente,

Não teve vontade de escrever nada de novo?

Se eu fosse incluir uma parte de inéditos, seria um outro trabalho. Tínhamos pouco tempo.

E de reescrever poemas antigos?

Não. Tenho vontade der reescrever enquanto estou fazendo, depois de estar publicado aquilo deixa de ser meu.

Na música, começou no rock, com os Titãs, que contradiziam a ideia de que no rock há demasiado barulho para se cuidar da palavra.

Eu sempre tive o mesmo cuidado com as letras de canções, seja rock ‘n roll ou uma canção de embalar. É uma responsabilidade e um impulso que vem da tradição sofisticada da canção popular brasileira. Tento sempre dar o meu melhor, mas também, há uma adaptação de linguagem.

No rock, há coisas que eu fazia para serem berradas. Também há canções que canto com a suavidade do acalanto. Seja berrado ou suave, há o mesmo cuidado com o rigor de uma letra de canção, com a adequação ao que está sendo dito, a divisão rítmica das sílabas.

O que acontece muitas vezes com a música é que algo aparentemente banal, ganha uma potência gigante quando cantado. A adequação é muito importante. Um poema belíssimo se for adaptado inadequadamente torna-se uma canção medíocre

A carreira a solo ampliou as possibilidades?

Sim, saí dos Titãs um pouco por isso, para poder exercitar partes da minha criação que não caberiam bem no consenso da banda. Fiquei no Titãs de 1982 a 1992. Tive uma carreira solo toda, e depois os Tribalistas, com dois discos. Há várias fases da minha carreira, em que me sinto à vontade para cantar em diversos registos de voz, experimentar diferentes acompanhamentos musicais, para transitar entre géneros.

O último álbum, Lágrimas no Mar, apresentado ao vivo, com o pianista Vítor Araújo, é muito surpreendente. De onde veio esta ideia?

Vinha de um disco que já se concentrava em sonoridades de instrumentos de corda e piano, quis radicalizar e fazer um show só acompanhado de um piano. Seria o show de O Real Resiste. Fiz um convite ao Vítor, Ensaiámos, mas começou a pandemia e não podemos apresentar o show.

Fomos para estúdio e gravámos o disco, que está agora no fim da tournée. O encontro foi a descoberta de muito sensibilidades. Ele vem da música instrumental, mas tem uma enorme sensibilidade para projetar o discurso cantado. É um deslumbre.

E o seu próximo disco de originais. O que se pode saber?

Está ainda germinando, mas vai estar pronto em março.

No disco anterior, O Real Resiste, há uma forte componente política. Como olha para o mundo atendendo aos acontecimentos recentes? Sobra algum otimismo.

É difícil ser otimista. Estamos a viver num mundo distópico, com o crescimento dessa extrema-direita, estúpida, fascista. Fiz O Real Resiste quando o Bolsonaro foi eleito. Mas continua a ser tudo muito difícil.

Vemos a humanidade na direção de um suicídio coletivo, com o aquecimento global, sem que os responsáveis façam nada para travar algo cujos  sintomas já são evidentes. O que falta para se tomarem as medidas necessárias? Que consciência difícil de ser alcançada coletivamente…

Ao mesmo tempo, o avançado do nazifascismo mundial, com as pessoas muito solitárias permeáveis  nas redes sociais. É uma visão muito distópica. Mas temos de cultivar as coisas boas, a cultura, a música, a arte, a literatura. Tudo isso é necessário mais do que nunca para contrapor a esse ritmo veloz, violento e destruidor.

Praticamente no fim da rentrée cultural, e em jeito de abertura do último trimestre do ano, inauguraram-se a 30 de outubro, no MAAT, duas exposições com curadoria de Sérgio Mah (SM), diretor-adjunto do museu.

Diametralmente opostas a nível cromático, as mostras, patentes até 17 de março de 2025, partilham, no entanto, uma abstração formal e apelam, cada uma à sua maneira, à criação de uma relação íntima entre o público e as obras expostas.

Explosão de cor

A Galeria Oval do MAAT foi entregue a Vivan Suter (VS), pintora suíço-argentina que, ao longo das últimas quatro décadas, tem vindo a construir uma obra monumental em Panajachel, na Guatemala, onde vive.

O culminar de tal processo é agora apresentado em Disco [título da exposição que é também o nome do cão da artista], através de mais de 500 pinturas, 163 das quais mostradas pela primeira vez.

Da Guatemala, Suter trouxe o amor à natureza, principal fonte de inspiração do seu trabalho, o qual realiza imersa no jardim de casa, à beira de uma floresta, rodeada de montanhas e próxima do lago Atitlán.

Esse amor foi passado para as telas de grandes dimensões que, expostas sem grade nem moldura, cobrem as paredes, o chão, pendem do teto e de estruturas semelhantes a estendais, transformando a Galeria Oval num local que poderia definir-se como algo entre um jardim de pinturas, uma loja de tapetes de um souk marroquino e uma selva de ideias coloridas precipitando em espiral e envolvendo o público.

Das obras, cada um fará germinar o que lhe aprouver, reconhecerá nas cores, nos movimentos e nas pinceladas de Vivian Suter as formas latentes que já traz dentro

A forma como as obras foram dispostas, explica SM, reflete uma liberdade e independência em relação a modelos expositivos com que a artista se identifica.

“São permitidas todas as combinações: horizontal, vertical, frente e verso. O momento da montagem é de grande criatividade para Vivian. Foge sempre à norma, à regra, àquilo que implica estabelecer alguma racionalidade no trabalho”.

Apesar de abstrata, a pintura de VS “está ancorada na realidade que a circunda e faz justiça a uma relação íntima, idiossincrática e muito solitária entre a artista e a natureza na qual vive”, sublinha o curador.

“Represento o que está em redor no momento da criação”, confirma a artista. Refere-se a elementos tão simples e fugazes como “os movimentos das folhas, a chuva, os cães a correr ou o som do vento”, mas suficientemente poderosos para se terem transformado em algo “necessário” na sua vida.

Mais do que as formas, são então as cores e a intensidade das pinceladas a desenharem a essência, os sons e as sensações de uma paisagem enraizada no coração da artista.

[a pintura de Vivivan Suter] está ancorada na realidade que a circunda e faz justiça a uma relação íntima, idiossincrática e muito solitária entre a artista e a natureza na qual vive

sérgio mah – curador

À medida que o público se adentra na floresta de telas, deixando-se envolver pelo turbilhão de cor, começará a aceder, não só a esta paisagem, como a uma nova, criada a partir da sua experiência pessoal.

Há quem encontre a cabeça e as orelhas de Disco, outros uma erupção vulcânica, um emaranhado de ramos, ou bagas a cair de uma árvore. Não importa. Das obras, cada um fará germinar o que lhe aprouver, reconhecerá nas cores, nos movimentos e nas pinceladas de VS as formas latentes que já traz dentro.

Uma luz que dança

Da abstração colorida de Suter passa-se, na Galeria 2, para as formas etéreas de Anthony McCall (AM).

Rooms, primeira exposição individual do artista britânico em Portugal, apresenta a fotografia Room with Altered Window (1973) e quatro obras, produzidas entre 2007 e 2020, que McCall designa como “Solid Light Works”: Rooms e Skylight, duas projeções verticais com som; Split Second Mirror, cujo espelho que serve de ecrã devolve o desenho volumétrico à parede onde se encontra o projetor; e You and I Horizontal III, constituída por uma enorme imagem panorâmica que surge da combinação de duas projeções.

Servindo-se de ecrãs, espelhos e fumo AM faz assim nascer da escuridão na qual a sala está mergulhada verdadeiras esculturas de luz, que flutuam no ar, num limbo entre o material e o imaterial.

As projeções atingem os visitantes, transformando-os em ecrãs que projetam novas formas de luz, enquanto observam aquelas que são projetadas pelos corpos em seu redor

Considerado um dos artistas mais singulares e inovadores desse território onde a escultura, o cinema, o desenho e a performance se cruzam, o artista radica o seu trabalho nas motivações da arte conceptual das décadas de 60 e 70 do século XX, algo que, nesta exposição, é bastante visível.

Ainda que, atualmente, recorra a processos e dispositivos digitais, as formas de “luz sólida” que McCall cria abarcam conceitos como a desmaterialização do objeto artístico, a teoria de que o destino da prática artística não tem de ter uma consumação física e a ideia de que a obra de arte ganha com a interação.

De facto, as quatro instalações fílmicas expostas oferecem ao público uma experiência cinematográfica muito diversa daquela que, normalmente, ocorre numa sala de cinema. Não há cadeiras nem lugares marcados, não se espera (apenas) uma contemplação passiva, formula-se sim um convite à interação.

“O espetador pode ir em direção ao projetor, a preocupação do artista não é com o ecrã, mas sobretudo com o que está no meio”, sublinha SM. “O que está no meio” são feixes de luz, visíveis graças ao fumo que paira no ar, os quais parecem “pedir” ao público que os atravesse, que lhes altere a forma e se confunda com eles, “entrando” na própria obra.

As projeções atingem assim os visitantes, transformando-os em ecrãs que projetam novas formas de luz, enquanto observam aquelas que são projetadas pelos corpos em seu redor.

O espetador pode ir em direção ao projetor, a preocupação do artista não é com o ecrã, mas sobretudo com o que está no meio

sérgio mah – curador

Com elementos mínimos, como a escuridão, uma fonte de luz e fumo, “o trabalho de Anthony McCall consegue ser, simultaneamente, um filme, uma escultura, um desenho e uma grande instalação imersiva”, como aponta SM.

Acrescentando um último estrato à modelação do imaterial, o artista colaborou ainda com o músico David Grubbs, o qual criou a música das duas obras com som, Rooms e Skylight, e que, no dia 23 de novembro, tocará a banda sonora ao vivo, na Galeria 2 do MAAT, enquanto o público será livre de explorar o espaço da exposição.