Visão
Os dois agentes da PSP envolvidos na morte de Odair Moniz terão reconhecido à investigação que não foram ameaçados pela vítima com uma arma branca em punho, avança a CNN Portugal.
As declarações contrariam o primeiro comunicado da PSP sobre os acontecimentos ocorridos na madrugada da passada segunda-feira, na Cova da Moura, Amadora. Na nota publicada horas depois da morte de Odair Moniz, a polícia referia que a vítima teria “tentado agredi-los [aos dois polícias] com recurso a arma branca, tendo um dos polícias, esgotados outros meios e esforços, recorrido à arma de fogo e atingido o suspeito”.
Esta não é, aliás, a primeira vez neste caso que surgem informações que se confirmam falsas. A primeira notícia sobre o caso contava que Odair Moniz era suspeito de furto da viatura em que seguia, mas a VISÃO confirmou, junto de familiares, que o carro em que a vítima seguia quando foi parado pela polícia era dele; informação que a PSP confirmou, esta quarta-feira, em conferência de imprensa.
O primeiro comunicado da PSP também garantia que a vítima tinha sido “prontamente assistida no local”, mas um vídeo divulgado, esta quarta-feira, pela VISÃO, mostra que, após os disparos, e durante vários minutos, nenhum dos polícias se aproximou do corpo de Odair Moniz para qualquer manobra de salvamento. Apenas, após alguma insistência dos homens que estão a filmar a cena do alto de um prédio, os agentes verificam o pulso da vítima.
De acordo com a notícia desta noite da CNN Portugal, terá havido “um confronto físico” entre os dois polícias e Odair Moniz, “com o suspeito a reagir à tentativa de detenção” – o que já constava do primeiro comunicado da PSP –, “mas sem que este tivesse empunhado uma faca, que estaria dentro de uma bolsa e que foi encontrada mais tarde junto à mesma”.
“No calor das agressões um dos agentes admite ter feito três disparos, um para o ar e dois que atingiram a vítima, na zona da axila e no abdómen”, lê-se na notícia. A CNN Portugal também apurou que a vítima tinha cadastro por tráfico de droga e crimes violentos, tendo chegado a estar preso. Odair Moniz, 43 anos, foi declarado morto, às 06h20, no Hospital São Francisco Xavier. Deixa três filhos.
O PSP autor do disparo que matou Odair Moniz já foi constituído arguido, depois de ter sido ouvido pela Polícia Judiciária. O jovem agente, na casa dos 20 anos, entregou a arma aos investigadores e saiu em liberdade. Estará a receber acompanhamento psicológico e meteu um período de férias, alegadamente por ordem superior, confirmou a VISÃO.
O Ministério da Administração Interna também determinou à Inspeção-Geral da Administração Interna (IGAI) a abertura de um inquérito “com caráter de urgente” para apurar o que aconteceu. Além deste inquérito na IGAI, a PSP já tinha anunciado a abertura de um inquérito interno junto dos polícias e de testemunhas para apurar as circunstâncias que originaram esta ocorrência – como é habitual nestes casos.
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Odair Moniz morreu devido a um tiro disparado por um agente da PSP, algo que nunca deveria ter acontecido. A família apresentou queixa, e as autoridades estão a investigar o caso. Esta morte trágica gerou indignação, revolta e distúrbios que se espalharam pela área metropolitana de Lisboa.
A revolta e a indignação são formas de protesto que fazem parte dos direitos e liberdades nos Estados democráticos, mas distúrbios e violência são inadmissíveis e injustificáveis. O Governo está a acompanhar de perto esta situação, e todas as forças policiais estão preparadas para travar atos violentos que possam causar novas tragédias.
A melhor forma de atenuar esta fúria é explicar de forma transparente o que aconteceu, bem como as medidas que estão a ser aplicadas e reforçadas para evitar mais mortes e distúrbios. Nenhuma das duas situações é aceitável. Em nenhuma circunstância.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.
A Motorola anunciou nesta quarta-feira o regresso ao mercado português, num momento em que a marca regista um crescimento internacional impulsionado pelas vendas de modelos de gamas de preço mais altas. A Lenovo, que detém o negócio de smartphones da Motorola desde que adquiriu a empresa americana em 2014, registou um aumento de 30% nas receitas anuais no primeiro trimestre do ano fiscal de 2024/2025

A decisão de voltar a Portugal faz parte da estratégia de expansão da Motorola na Europa, Médio Oriente e África, com o objetivo de aumentar a quota de mercado. A marca pretende disponibilizar uma gama diversificada de produtos, que inclui os smartphones das séries Moto G e Moto E, bem como as séries mais avançadas, Motorola Edge e Motorola Razr.
“A expansão para o mercado português é um passo importante para nós”, afirmou Andrea Monleon, diretora-geral da Motorola Iberia, em comunicado de imprensa. “A nossa presença reforçada na Península Ibérica demonstra o valor único que a Motorola pode oferecer tanto aos clientes como aos parceiros locais, enquanto apoiamos as nossas ambições comerciais globais”.
Os produtos da Motorola voltam assim a estar disponíveis nas principais lojas em Portugal, como Worten, Fnac, Radio Popular, Media Markt, MEO, Vodafone e NOS. Em breve, os consumidores poderão também adquirir os dispositivos através do site oficial da marca em Portugal.
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Numa TED Talk que ficou famosa, proferida há pouco mais de um ano e que já leva milhões de visualizações na net, o cientista político Ian Bremmer soube logo captar a atenção do público com o título da conferência: A Próxima Superpotência Global não Será Aquela em que Está a Pensar. Para desfazer o mistério, aquele que é um dos mais requisitados consultores sobre geopolítica avisa a audiência para não concentrar as atenções apenas no confronto entre a China e os EUA pelo controlo ou a partilha da ordem mundial. E aconselha a que se passe a olhar antes para uma nova realidade em formação e que pode ser a mais importante de todas: uma ordem digital que, ao contrário das outras, já não será administrada por governos – sejam eles democraticamente eleitos ou ditaduras –, mas por empresas de tecnologia.
O aviso de Ian Bremmer não deve ser catalogado no domínio da ficção científica. Os sinais são todos coincidentes e, a cada dia que passa, mais se vai percebendo como o poder global das grandes tecnológicas é superior ao da maior parte dos governos.
Com uma influência por vezes quase sufocante no comportamento das pessoas, já estamos no momento em que a identidade de cada um não é construída unicamente com base na genética familiar e na educação, mas também passou a ser formatada e até modificada pelo poder dos algoritmos, que determinam a informação que recebemos e os estímulos sensoriais que vão moldando a nossa personalidade. E à medida que essa tendência vai crescendo e os governos abdicam da sua autoridade reguladora ou até do seu poder, as empresas de tecnologia tornam-se dominantes. Os seus líderes estão a um pequeno passo de acumular um poder jamais visto anteriormente e que, ainda por cima, não precisa de ser sufragado em eleições nem de obedecer à narrativa de que deriva do povo ou de uma escolha divina. Mais: ao contrário dos Estados, nem sequer estão obrigados a repartir a imensa riqueza que vão acumulando.
Ver o atual homem mais rico do mundo a dar tudo por tudo – até prémios de um milhão de dólares por dia para angariar eleitores – na campanha de Donald Trump não pode ser visto, neste contexto, como apenas um imperativo moral ou ideológico que Elon Musk achou agora por bem adotar. Por mais que ele repita que está ao lado de Trump para defender a “liberdade de expressão” – nas redes sociais, em oposição à imprensa livre e independente…– e o direito ao porte individual de arma (!), é por demais evidente que, caso o seu candidato regresse à Casa Branca, Musk passará a estar muito mais perto de alcançar um poder sem paralelo na História. E poderá passar a exercê-lo a seu bel-prazer, definindo ele próprio as regras e os limites.
Elon Musk não é, no entanto, o primeiro super-rico a procurar obter relevância política e a usar um candidato para tentar alargar o seu domínio e a sua sede de poder. Apesar de ser agora o homem mais rico do mundo, ele não é o mais rico de sempre. A sua fortuna imensa ainda é, em termos comparativos, inferior à do primeiro bilionário americano, o magnata do petróleo John D. Rockefeller Sr. E embora o fundador da Tesla seja um revolucionário da indústria automóvel, o seu peso e a sua importância ainda não se comparam com os de Henry Ford, que criou e dominou o mercado dos carros durante décadas. Estas comparações são hoje de extrema pertinência e atualidade, porque os dois titãs do passado acabaram por ser dominados e postos na ordem pelos poderes democráticos do país: Rockefeller foi obrigado a dividir o seu império petrolífero, por força das leis antimonopolistas dos EUA, e Henry Ford, que chegou a tentar concorrer ao Senado, acabou por ser ostracizado devido às suas simpatias nazis (foi inclusivamente condecorado por Hitler) e por ser um dos principais instigadores do ódio antissemita.
Desde meados do século XIX que sabemos que “o poder tende a corromper, e o poder absoluto corrompe absolutamente”, conforme a frase atribuída ao historiador e filósofo britânico Lord Acton, que lhe acrescentou uma conclusão já menos consensual, mas que ficou, desde então, como um lembrete que não deve ser descurado: “… de modo que os grandes homens são quase sempre homens maus.” É por isso que as próximas eleições americanas não interessam apenas aos americanos – desta vez, as suas consequências podem atingir todo o mundo.
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D. João V exibia virtudes públicas assentes numa religiosidade extremada, mas tinha vícios privados perversos, como o assédio a jovens freiras. Torrou o ouro do Brasil em luxos e despesismos, sem obra que se visse, enquanto o povo mal conseguia sobreviver. Até que ponto é justo este retrato?
Foi esse o meu ponto de partida, o retrato de um rei beatão com “energias estranhas”. Mas é preciso olhá-lo dentro de diversos contextos. Sim, não deixou obra que se visse, mas grande parte dos seus investimentos foram feitos em coisas invisíveis. D. João V tinha uma academia para artistas portugueses estudarem em Roma, é um precursor das bolsas que hoje conhecemos, de investigação e de estudos, comprou bibliotecas inteiras e a do Paço era considerada a maior e a melhor da Europa. Olhamos muito para a figura do rei autoritário e senhor absoluto, e para os seus vícios privados, que obnubilaram por completo todas as outras realizações, que são pré-iluministas, que vêm abrir o caminho ao marquês de Pombal em muitos aspetos.
É uma figura que o fascinou?
Sem dúvida. Mas é uma figura que não consigo ainda compreender. Uma das surpresas é que D. João V não parava. Foi um homem que se consumiu. Consumiu-se a tomar drogas para ter mais sexo, consumiu-se em espetáculos para impressionar as freiras com quem queria dormir, consumiu-se a gastar dinheiro para criar grandes espetáculos. Mas, ao mesmo tempo, numa parte importante da sua vida, consumiu-se a trabalhar. Tanto era capaz de dar instruções precisas aos capitães das frotas como mandar fazer compras no estrangeiro ou dedicar-se com minúcia à administração do Estado ou às questões de Direito. Por ser rico na sua personalidade e nas suas ações, foi muito fácil reduzi-lo ao rei beatão, obcecado por freiras, mas era muito mais do que isso. Essa redução esconde um homem brilhante e variado.
O bem-estar do povo preocupava-o?
Temos de ver a conceção de sociedade da época, mas encontramos, da parte dele, exemplos da atenção ao povo. Durante a guerra, escreve numa carta: “Coitados dos súbditos que se estão matando.” Tem a noção de que o povo está a morrer. Pensa neles. Tendemos só a olhar para o ouro que chegava do Brasil, mas D. João V começou a governar numa das alturas mais difíceis da História de Portugal, quando estava em curso a Guerra da Sucessão Espanhola. A guerra envolvia reinos do Norte da Europa, mas passou-se no nosso território. No Alentejo houve praças tomadas, e isso durante mais de uma década. Isso leva a que o reinado de D. João V fique logo marcado pela penúria. Faltava tudo, e havia milhares de bocas de soldados para alimentar. Além de que, no caso dele, a visão da ajuda ao povo era muito mais um enriquecimento através da cultura. Nesse sentido, está um pouco à frente demais. Não viu que era preciso tomar algumas medidas antes, que ajudassem mais a vida de todos os dias dos cidadãos. Essa foi talvez uma das falhas do reinado e do homem.
Quando ele está com as amantes, despe a pele de rei?
Ele quer ser com essas mulheres apenas um homem. Chega a dizer a uma amante: “Isso é com o homem que mora no Terreiro do Paço, não é comigo.” Com aquelas mulheres distancia-se do rei, é apenas um amante, é apenas um homem. Outra coisa são as grandes amizades, que tornam D. João V muito particular. Tem grandes amigos e não tem problema em mostrar essas amizades e a sua afeição a elas. Diz ao cardeal, com quem reunia todos os dias, que tem saudades dele. Quando morre um meio-irmão, D. Miguel, que era filho bastardo de D. Pedro, fica devastado. Durante uma semana não fala com ninguém. É um homem de afetos grandes e fortes. Quando o irmão D. Manuel fugiu, ele fechou-se a chorar, de impotência, claro, porque era o chefe da família e não podia conceber isso. Ficou doente quando a mãe morreu. Ou seja, temos uma imagem de alguém extremamente afetivo, que, no entanto, não passa. Já o seu sucessor, o filho D. José, será um homem extremamente distante.
O reinado acaba mal. É uma das razões para o título El-Rei Eclipse?
Gostava que o título tivesse várias portas de abertura. Em primeiro lugar, que fosse a negação da ideia de que D. João V é o Rei-Sol português, essa velha ideia de que ele construiu a autoridade real, a imagem do rei e o poder real decalcando Luís XIV. Há pontos de contacto e até uma admiração expressa. Mas, apesar disso, quis mostrar que D. João V não é apenas Sol, é também eclipse.
Estamos em 1697. “O ano do juramento de D. João como herdeiro termina com toque de Midas: pela primeira vez, chega a Lisboa uma nau carregada de ouro do Brasil”, nota o escritor Pedro Sena-Lino, autor de uma nova biografia de D. João V, em breve nas livrarias, intitulada El-Rei Eclipse (ed. Contraponto, 704 págs., €24,90). Mas a narrativa, como o título logo avisa, entrará por sombras e luzes da trepidante intimidade de um soberano que reinou durante quase meio século, oscilações permitidas pela profunda investigação que o autor fez.

Para começar, encontramos um rapaz atípico, educado e protegido pela mãe, a rainha D. Maria Sofia, antes princesa alemã, enquanto o pai, o rei D. Pedro II, se entretinha “a perseguir criadas e a fazer pegas de touros”, descreve, à VISÃO, Pedro Sena-Lino. Com sete anos, o príncipe dispensava as brincadeiras que seriam próprias da sua idade, e a sua educação não era apenas religiosa. Como atestam contemporâneos, empenhava-se nas “lições de escrever” com um padre, “veio a ter pleno conhecimento da língua latina, e da italiana, francesa e espanhola”, e um outro clérigo ensinou-lhe Matemática, disciplina que parecia ser a sua preferida. O embaixador de Luís XIV em Lisboa enviaria mesmo ao rei francês exemplos dos exercícios de caligrafia do príncipe, notando que “é tão avançado tanto de espírito e de razão como na escrita”.
O seu lado de “amador de mulheres”, como lhe chama o biógrafo, também se manifestou cedo. Apaixonou-se por uma dama da corte, sete anos mais velha, D. Filipa de Noronha, que seduziu com galanteios, joias e, sobretudo, uma promessa de casamento. Sentindo-se traída, a dama iria para um convento, e, ainda assim, teria um filho de D. João V, já rei e casado com D. Maria Ana, arquiduquesa austríaca feita rainha de Portugal. O bebé foi levado para lugar incerto e D. Filipa de Noronha escreveu uma violenta carta ao rei, cujas cópias circularam com profusão por Lisboa.
Voltemos atrás, ao soberano que, com apenas 17 anos, ascende ao trono, em 1706, por morte do pai. “É um rapaz extremamente preparado”, diz Pedro Sena-Lino. “Nos arquivos do Vaticano li as descrições que o núncio, o representante do Papa em Lisboa, mandou para Roma do primeiro contacto que teve com ele, como D. João V. O núncio não podia acreditar. Aquele muito jovem soberano já sabia tudo o que queria fazer. Tinha tudo definido, com um conhecimento detalhado dos dossiês.”
O esforço de guerra faz com que o início do reinado fique marcado pela penúria. Nada que impedisse D. João V de recorrer aos melhores alfaiates de Paris
Farpelas de Paris
Por mais bem preparado que estivesse, D. João V não consegue mostrar os projetos que tem, o que quer fazer. “Começou a governar numa das alturas mais difíceis da História de Portugal”, nota o biógrafo. Estava em curso a Guerra da Sucessão espanhola, que duraria até 1714, na qual Portugal apoiou a pretensão ao trono de Castela de um Habsburgo, arquiduque Carlos, contra Filipe de Anjou, Bourbon e neto de Luís XIV. “Ingleses, Habsburgo, com sede em Viena, e holandeses, aos quais Portugal estava aliado, numa coligação já de si estranha, lutavam sobretudo no nosso território e em Espanha pelos direitos ao trono de Madrid do candidato Carlos”, diz Pedro Sena-Lino.
“E a guerra fez Portugal sofrer muitíssimo. Os ingleses, por exemplo, não tiveram invasões no seu território. Perturbou-se um pouco o comércio entre eles e os holandeses, e nem houve grandes problemas para os Habsburgo, tirando umas invasões em Itália. A guerra envolvia reinos do Norte da Europa, mas passou-se no nosso território – no Alentejo houve praças tomadas, e isso durante mais de uma década. A situação tornou-se extremamente instável no País, que nunca tinha tido uma guerra tão violenta, com grandes exércitos e com grandes destruições.”

O esforço de guerra faz com que o início do reinado fique marcado pela penúria. Nada que impedisse que uma das primeiras ordens executivas de D. João V fosse a de dar “instruções precisas” aos embaixadores Cunha Brochado e D. Luís da Cunha para que mandassem os “melhores alfaiates de Paris traçar e coser as mais finas peças de vestuário para o rei”, escreve o biógrafo. Luís XIV é inimigo, mas o negócio suplanta sempre a guerra. “Desde jovem, mandava vir tudo de Paris, em caixas enormes”, diz Pedro Sena-Lino. Um diplomata francês até alvitrou que D. João V “tinha o maior guarda roupa do universo”, acrescenta. “Outro embaixador dizia que se faziam melhores perucas em Lisboa, mas ele não as queria porque eram muito baratas”, anota ainda. Preferia, claro, as produzidas em Paris. Vestido de magnificência, é “tradução visual e mesmo tátil de um poder cuja força (…) se pressente no momento em que se torna sensível”, sublinha o historiador António Filipe Pimentel, citado por Pedro Sena-Lino.
“A sua visão da ajuda ao povo era muito mais um enriquecimento através da cultura. Não viu que era preciso ajudar mais a vida de todos os dias dos cidadãos”
Também as procissões, quase diárias, com o rei sempre presente, são a “manifestação por excelência do Portugal barroco”, escreve aquele académico, “microcosmos que resume o próprio macrocosmos cultural”. Aduz o biógrafo: “Festa e percurso, encenação e cântico, a procissão é corpo e faz corpo; para D. João (…) é símbolo do povo a caminho divino sob sua orientação.”
Mas o País arde com carências de toda a ordem. Em 1710, “começam a acumular-se notícias dispersas de manifestações e até de motins, muitos deles regionais, certamente espontâneos, de que serão apenas uma pequena parte do que terá acontecido”, escreve Pedro Sena-Lino.
Soldados à fome
Na Ribeira, logo em janeiro daquele ano, ocorreu um dos incidentes mais violentos conhecidos. Quando soldados esfomeados se preparavam, mais uma vez, para tirar sem pagar peixe de barcos atracados, os donos das embarcações já estavam prevenidos com cestos cheios de pedras. “Choveu por muito tempo muita pedrada, e saíram feridos alguns soldados e outros com as cabeças rachadas, sendo a pedrada tanta que fez afastar muitas mulheres da Ribeira”, escreve o biógrafo, citando relatos da época.

E continua: “As mulheres, correndo, vão deparar-se com D. João V, que ‘passava para a festa de Santa Engrácia’. (…) As regateiras intervêm, dando conta do sofrimento e da carestia que o povo passava. Neste caso, ainda mais, já que os prevaricadores são soldados, aqueles que deveriam manter a ordem. D. João V ‘ouviu das regateiras, por vozes altas, que lhe disseram mandasse pagar aos soldados, que andavam morrendo de fome’.”

Se os aliados na guerra tendiam a falhar as compensações que tinham prometido pagar a Portugal, com o ouro do Brasil, de que a economia do reino dependia, as coisas não corriam melhor. José da Cunha Brochado, juiz e diplomata, citado por Pedro Sena-Lino, escrevia que, chegando um navio pejado de ouro, se gastava “com mão larga”, e o “mesmo caminho leva o mais que tem vindo, que não escapa à casa da moeda, de onde se tira o próprio e o alheio em dano do interesse e da fé pública”.
O certo é que não havia problema nenhum que afetasse o perfil libidinoso de D. João V. A rainha terá exclamado que “uma ou duas amantes ainda aguentava, mas quatro, cinco e seis eram por demais”, lê-se. “O confessor falou-lhe, mas foi muito mal recebido, ao ponto de ser ameaçado pelo rei e despedido”, nota o biógrafo. “O rei preservava a sua esfera privada de absolutamente todos, considerando-se acima dos restantes.”
De lua a sol
O fim da guerra, em 1714, “permitirá a D. João V abrir uma nova fase do seu multiforme reinado, que a historiografia tem erradamente considerado ‘monolítico’”, escreve Pedro Sena-Lino. “Depois do eclipse forçado da guerra, lua escondendo o sol, o rei começa a emitir o seu brilho”, acrescenta. E a rainha, que lhe deu seis filhos, “parece tê-lo incentivado a tomar as decisões em mãos, para que marcasse o seu reinado com reformas”.
Fazia questão de marcar presença nos autos de fé da Inquisição, incluindo quando a condenação redunda em suplício pelo fogo, uma morte de extrema violência
Além do arranque das obras do Real Convento de Mafra e do Aqueduto das Águas Livres, criou a “Academia Real da História, onde eram pagas bolsas para que os académicos fizessem investigações em História de Portugal, e que depois eram publicadas, para o que chamava os melhores impressores com os melhores materiais, e os melhores gravadores para essas obras verem a luz do dia”, diz o biógrafo à VISÃO. Para lá de a Biblioteca do Paço ser à época “considerada a maior e a melhor da Europa”, fruto das aquisições internacionais impulsionadas pelo rei.
Foi ainda no tempo de D. João V que “nasceu o primeiro dicionário português, feito por um oratoriano francês, o padre Rafael Bluteau”, lembra. Por outro lado, “D. João V teve contra ele o Terramoto de 1755, cerca de cinco anos após a sua morte”, diz. “Ele mexeu na cidade, com o Paço Real, a Sé Patriarcal, uma basílica à sua medida, mas também com um pequeno teatro de ópera. Mudou a cidade, rasgou-lhe ruas. Há muita da ação de D. João V que desapareceu, porque as suas raízes são longas e essa é uma das coisas que quero mostrar com este livro”, acrescenta.
O rei não escondia alguma admiração por Luís XIV, mas, como escreve e salvaguarda Pedro Sena-Lino, essa “paixão francesa era pele e programa: exterior, moda e modelos, imitação centralista solar”. A “construção da identidade real como a vê passa por um braço de ferro com a nobreza; tenta controlá-la com uma ‘avara política de benesses’, aproveitando-se dos fracos recursos daquela”, explica. Como diz o historiador António Filipe Pimentel, outra vez citado pelo biógrafo, sublima “nos conflitos de etiqueta a batalha perdida do poder”. A este propósito, lê-se, o rei teria dito: “Meu avô [D. João IV] deveu e temeu; meu pai [D. Pedro II] temeu; eu não devo nem temo.”
Os súbditos e os autos de fé
Nada temendo, portanto, duas vezes por semana o rei recebe pessoalmente os súbditos no Terreiro do Paço. Ouve-lhes os pedidos e os lamentos, além de disponibilizar no palácio uma espécie de caixa postal para se depositarem queixas anónimas. O ritual faz parte da imagem que D. João V quer projetar, tal como as inúmeras cerimónias religiosas e ações piedosas em que participa a família real, sabiamente coreografadas, são descritas na imprensa da época segundo os ditames do soberano. Com exceções, ele “controlava não apenas a mensagem mas as notícias”, escreve Sena-Lino.
O povo ama-o e teme-o ao mesmo tempo, na perceção de um visitante francês que chega a Lisboa em 1729, citado na biografia. Ao longo do reinado, nunca o monarca dá mostras de recear a aplicação da Justiça pelas próprias mãos, fazendo questão de marcar presença nos autos de fé conduzidos pela Inquisição, incluindo quando a condenação redunda em suplício pelo fogo, uma morte de extrema violência.
Cronologia
As datas-chave de um reinado de 44 anos
1699
Morre Maria Sofia de Neuburgo
O ainda príncipe D. João torna-se órfão de mãe aos 10 anos, no dia 4 de agosto, depois de ela lhe pedir para chamar o pai, o rei D. Pedro II, que o caso era grave. Ela tinha 33 anos e ficara doente após ferir-se com um brinco.
1702-1714
Guerra da Sucessão espanhola
Aclamado como rei no dia 1 de janeiro de 1707, D. João V inicia o seu reinado, com apenas 17 anos, ao lado de Áustria, Inglaterra, Holanda, Suécia e Dinamarca, numa aliança contra o bloco Bourbon de França e Espanha. A guerra entra em território português.
1714
Eis D. José
É no dia 6 de junho que o rei D. João V celebra o nascimento do seu primeiro filho com D. Maria Ana de Áustria. Será ele o seu sucessor.
1717-1737
O projeto Mafra
O Convento Real de Mafra, obra de referência do reinado, sofre sucessivos atrasos, e o rei nunca chega a mudar-se para lá com a família real, como era seu desejo. Por lá passaram militares, gente do povo e do clero.
1732-1747
Aqueduto
Arrancam as obras do Aqueduto das Águas Livres, em Lisboa, que demoram 15 anos a concluir-se. Ao longo do tempo, três arquitetos supervisionam os trabalhos, com D. João V sempre atento, embora longe da ânsia que lhe causava Mafra.
1734
Nasce D. Maria
A 17 de dezembro, a infanta D. Mariana Vitória, filha dos reis de Espanha, dá à luz a filha primogénita Maria Francisca, fruto do casamento com D. José, herdeiro do trono português. A neta de D. João V será a primeira rainha reinante de Portugal
1740-1748
Guerra da Sucessão austríaca
Divide a Europa em dois blocos, com franceses, espanhóis e prussianos de um lado e Reino Unido, Holanda e Império Habsburgo do outro. Portugal mantém-se neutro e acaba a mediar a paz entre Espanha e Reino Unido, sendo essencial a ascensão de D. Maria Bárbara, filha de D. João V, a rainha de Espanha.
1750
Morre D. João V
Ao fim de 60 anos de vida e 44 de reinado, os oito últimos acamado na sequência de (pelo menos) um AVC, João de Bragança sucumbe à doença.
“Ele não tinha qualquer problema em administrar a Justiça e, simultaneamente, gostava de reforçar a imagem de autoridade através da Justiça”, sublinha o autor, lembrando que os autos de fé eram ainda, nessa primeira metade do século XVIII, um evento social que reunia muita gente, como se de uma festa se tratasse. “As pessoas que tinham casas que davam para o Rossio alugavam as varandas por preços altíssimos”, ilustra.
O exercício do poder divino, como entendia estes atos da Igreja, é de tal maneira venerado pelo rei que, já doente e acamado, nos últimos anos de vida, hão de derrubar-se paredes para dar passagem à liteira na qual será transportado até ao local.
Não quer dizer, ainda assim, que não fosse capaz de revelar um lado mais benevolente. Nesses anos de saúde mais débil, ordena que o seu médico assista uma mulher pobre que mora perto e, ainda pleno de energias, desterra para fora de Lisboa mais de 30 nobres, por se terem revoltado contra um oficial de Justiça, para mais tarde enviar a rainha com a notícia de que estavam perdoados.

Noutro episódio contado no livro, manda o embaixador francês em Portugal tornar-se recluso em sua própria casa, durante duas horas, por não se ter levantado na presença da rainha D. Maria Ana – isto depois de se ter correspondido com o congénere gaulês e de D. Luís XV lhe ter dado o consentimento para aplicar a Justiça que achasse conveniente.
Troca de princesas
As relações com França mantinham-se agrestes, mesmo após o fim da Guerra da Sucessão espanhola. A chegada de Felipe V ao trono de Espanha, sendo ele neto de Luís XIV de França, deixava a família Bourbon à frente de duas grandes potências europeias, para desagrado da dinastia Habsburgo, à qual pertencia a rainha de Portugal, e do Reino Unido, aliado estratégico.
Um incidente diplomático com o representante português em Madrid, em 1735, é o rastilho para Felipe V equacionar bombardear Lisboa, começando pelo palácio real. Isabel Farnesio, a influente rainha espanhola, incentiva-o. Espanha faz deslocar tropas para a fronteira.
O plano de D. João V para a pacificação com o país vizinho treme. Seis anos antes, a meio do rio Caia, entre Elvas e Badajoz, havia concretizado uma troca de princesas, precisamente para evitar novos conflitos com Espanha. Na presença dos dois reis e das duas rainhas, a portuguesa D. Maria Bárbara seguira para Madrid, a fim de casar-se com D. Fernando, herdeiro ao trono espanhol, ao passo que a espanhola D. Mariana Vitória fizera o caminho inverso até Lisboa, com o intuito de se casar com D. José, o primeiro na linha de sucessão deste lado da fronteira.
Nem o facto de as filhas integrarem as cortes inimigas detém as renovadas intenções bélicas. Nem sequer o mais recente convite endereçado por D. João V à rainha Farnesio, e prontamente aceite, para ser madrinha da neta em comum, Maria Francisca, a futura D. Maria I de Portugal, serena os ânimos.
Um incidente diplomático com o representante português em Madrid, em 1735, é o rastilho para Felipe V equacionar bombardear Lisboa
Enquanto vai reforçando um exército mal preparado e dispersado nas obras do Convento de Mafra, D. João V pede ajuda aos britânicos e pondera ameaçar com a assinatura de acordos comerciais com França se os velhos aliados ignorarem o pedido de socorro.
Demoram, mas entram pelo Tejo navios de guerra britânicos e, para compor ainda mais uma coreografia de nação destemida, armam-se “tendas de campanha militar opulentas” nos arredores de Paris, mostrando que “não era apenas com preparações, mas também com manifestações de luxo que uma pré-guerra se ganhava”, lê-se no livro.
Uma mensagem posterior do embaixador francês em Madrid, “pedindo que se acalmassem as tensões”, é o bastante para a coroa espanhola enterrar o machado de guerra e D. João V preservar uma neutralidade que haveria de levar ao reconhecimento papal, anos mais tarde, face aos esforços diplomáticos desenvolvidos para pôr fim à guerra na Europa Central, como se verá adiante.
O espelho em Mafra e o ouro do Brasil
Não fora este “contratempo” com Espanha e talvez a construção do Palácio Nacional de Mafra tivesse andado mais depressa, como era desejo do rei. Tal é a obsessão com a obra que não só os militares mas também os clérigos são chamados a meter as mãos na massa, já para não falar dos “ladrões e outros criminosos” que manda “tirar das naus da Índia” e marcar na testa com um M de Mafra.
Deslocando-se de cavalo ou de coche, ele próprio começa a acompanhar mais de perto a evolução dos trabalhos, pernoitando cada vez mais. Dá ordens para se avançar de noite e ao domingo. Quem foge é punido com três meses sem salário e os reincidentes são enviados para as galés. Chega a aparecer disfarçado para melhor compreender o que está a falhar. Certo dia, uma mulher aborda-o diretamente, para lhe dizer que tem fome, porque não pagam ao marido.
Deslocando-se de cavalo ou de coche, o próprio rei acompanha de perto os trabalhos do Palácio Nacional de Mafra. Dá ordens para se avançar de noite e ao domingo
Palácio, convento, igreja e academia de artes e ciências, religião e conhecimento de mãos dadas, um legado que queria deixar custasse o que custasse. “Tinha uma força e uma energia incontroláveis, era alguém que gostava de ver as coisas feitas. As descrições da fase final de Mafra são de uma tortura, não sei como é que ele vivia. Dorme num cantinho, vem e vai para Lisboa numa corrida louca, ansioso, acelerado”, descreve Pedro Sena-Lino. “Na história da construção de Mafra temos um espelho de quem foi D. João V.”
Apesar de não ser uma obra da sua iniciativa, D. João V também se envolve na construção do Aqueduto das Águas Livres, dando-lhe luz verde, tomando medidas para apressar os trabalhos, criando impostos para os financiar e até exigindo alterações aos planos dos arquitetos.
“Ele metia o nariz em tudo, no sentido positivo. Tudo lhe passava pelas mãos e a tudo ele dedicava atenção”, comenta o autor, quando transferimos o foco para a esfera da gestão das colónias ultramarinas, nomeadamente o Brasil e a Índia.
Do outro lado do Atlântico reside a prioridade do rei: combater o contrabando de ouro (e também de diamantes), que desaparecia sem deixar rasto através de Buenos Aires ou dos Açores. A biografia refere ainda “formas mais inventivas”, como escondê-lo em supostas caixas de açúcar e enviá-lo nos mesmos barcos nos quais era suposto seguir.
Curiosidades
Viver sob o lema do quero, posso e mando
Curioso, excêntrico e devoto, D. João V gostava de livros e de mulheres, mas não apreciou que lhe pusessem sanguessugas na cabeça, na tentativa de o curarem
Longa paixão
De todas as amantes de D. João V, a mais famosa foi a madre Paula Silva, jovem freira do convento de Odivelas. O monarca mandou construir aposentos sumptuosos para ela.
Investir na passarola
O rei acreditou na passarola de Bartolomeu de Gusmão. Deu-lhe até fundos para construir “as fábricas do tal engenho” – que nunca subiu aos céus.
Humilhada
Uma das suas amantes, D. Luísa Clara de Portugal, era dama da rainha e esta expulsa-a do palácio, ao saber da gravidez dela. O rei anula a ordem e ainda a mantém como aia da esposa.
Viagra ancestral
A romana Petronilla Trabó Basilii, cantora de ópera, é dos últimos romances conhecidos do rei e terá sido quem o levou, já nos cinquentas, a recorrer a afrodisíacos como a essência de âmbar, que um amigo lhe comprava em boticários.
Biblioteca
Entusiasta de livros de diversos saberes, o soberano reúne na biblioteca do palácio real, destruída pelo Terramoto de 1755, mais de 70 mil exemplares.
Sanguessugas
Fazer sangrar um doente era terapêutica adotada para curar maleitas. Quando sofreu um AVC, em 1742, o rei não apreciou ter sanguessugas na cabeça e pediu para não voltarem a repetir o método.
Esperança
O Palácio das Necessidades, em Lisboa, hoje Ministério dos Negócios Estrangeiros, nasce a partir de uma pequena capela e é mandado erguer no final do reinado de D. João V, quando o rei acredita que está a melhorar dos seus problemas de saúde.
Presentes
Antes do primeiro tratamento nas Caldas da Rainha, o rei e a sua família receberam do Mosteiro de Alcobaça 12 vitelas, 24 presuntos, 24 queijos, 24 perus e seis dúzias de galinhas, entre frutas e doçaria variada.
Durante todo o reinado, D. João V conserva o hábito de ouvir várias opiniões antes de deliberar sobre o assunto e foi adaptando a gestão do negócio do ouro, com avanços e recuos, confiando a Alexandre Gusmão, um português nascido no Brasil, a liderança no local das estratégias para minimizar as perdas.
Já em relação aos territórios na Índia, “ele tem noção de toda a dificuldade”, observa o biógrafo. “O reino local dos maratas começou a ter muita força e a atacar os portugueses, que não tinham condições para combater uma coisa dessas sem o apoio dos ingleses.” Ao contrário dos rivais holandeses e britânicos, D. João V nunca chega a avançar, por exemplo, para a criação de uma companhia comercial. “A Índia foi o seu calcanhar de Aquiles em termos de planeamento”, sentencia Sena-Lino.
Cartas da paz com a filha
Em 1740, estala a Guerra da Sucessão austríaca, que divide a Europa ao meio, enquanto Portugal se mantém à margem, numa neutralidade sempre ambicionada por D. João V. Nesse ano, o rei português é acometido, desconfia-se, por um Acidente Vascular Cerebral (AVC), não se sabe se o primeiro. Mais seguro é afirmar que, em 1742, é afetado por um outro AVC que o deixa paralisado do lado esquerdo do corpo e com “a boca à banda”, regista Sena-Lino no livro. É dia 12 de maio e, “depois das quatro horas da tarde, D. João V nunca mais será o mesmo”.
Sangrado no braço, tratamento usual naquela época, não apresenta melhoras. Mas dá sinais de lucidez. Um par de semanas depois, decreta a transferência do poder real para a “muito amada e prezada mulher”, a rainha Maria Ana, enquanto durar o seu “impedimento”.
Na prática, no entanto, será o cardeal João da Motta, homem de confiança do soberano, a manter-se como o “operacional à frente do governo”, com o rei a deliberar e a exibir-se publicamente, sobretudo em atos religiosos (e nos autos de fé anuais), mais vezes do que se suporia para alguém acamado. Naturalmente, sem o ritmo frenético a que habituara os mais próximos e os mais distantes, como os embaixadores que hão de ansiar em vão por instruções do reino, entre os quais o “londrino” Sebastião José, futuro Marquês de Pombal. O suficiente, todavia, para manter viva a chama de que, embora debilitado, continua capaz.
Deslocações às águas termais das Caldas da Rainha passam a constar das “saídas” reais, mas é a partir dos aposentos que D. João V irá mover influências e tomar decisões marcantes. Desde logo, reconhece três filhos bastardos, informação que só será transmitida a D. José I em 1752, já após a passagem da coroa entre pai e filho. Pede-lhe que trate bem os meios-irmãos.
Em 1744, arrepende-se dos pecados da sua vida íntima, na leitura de Pedro Sena-Lino, ao recomendar ao “superior do Mosteiro de Alcobaça” uma reforma da congregação e, “muito particularmente”, o castigo “com rigor das delinquentes” que frequentam “os mosteiros de religiosas”. Ainda nesse ano, engendra um casamento para D. Maria, sua neta e filha de D. José, com o seu filho D. Pedro – e, portanto, tio dela –, de modo a abrir uma nova linha de sucessão.
Passam mais dois anos e morre Felipe V de Espanha. É hora de o príncipe Fernando subir ao trono. Ostracizado durante anos pela madrasta Farnesio, logo a afasta da corte. É muito ligado à sua esposa, D. Maria Bárbara, filha de D. João V. Através dela, o rei português depressa oferece a ajuda de Portugal para mediar um acordo de paz entre espanhóis e britânicos, que lutam em blocos opostos na Guerra da Sucessão austríaca. São cartas ditadas pelo rei e redigidas a várias mãos, no círculo de confiança de D. João V, com a medição de cada palavra, para não criar mal-entendidos com Espanha. A última conhecida é datada de julho de 1747, a batalha final do conflito europeu acontece a 27 de setembro e a paz é assinada no ano seguinte.
A importância da diplomacia portuguesa é reconhecida pelo Papa, que atribui à Coroa o título de Fidelíssima, equiparando-a em estatuto, aos olhos de Roma, às de Espanha e França. Dois anos antes da morte, a 31 de julho de 1750, de el-rei eclipse, como lhe chama Sena-Lino, cumpria-se assim “um desígnio dos Bragança, de restabelecer o prestígio de Portugal e do seu multiforme império entre as cortes católicas”.
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