É sabido que faltam magistrados do Ministério Público. Essa falta vem sendo assinalada há praticamente dez anos, sem que medidas concretas tenham sido tomadas.
Na base de tal falha estiveram as medidas de austeridade impostas pela Troika que bloquearam e limitaram o acesso a esta carreira.
Acresce que a reforma do mapa judiciário regulamentada pelo Decreto Lei n.º 49/2014, de 27 de março, veio demandar mais magistrados do Ministério Público para os lugares criados. Contudo, tal necessidade nunca foi considerada e nunca se solicitou a formação de mais magistrados do Ministério Público.
Ao longo dos últimos dez anos, os magistrados foram aguentando progressivas cargas de trabalho, acreditando que a situação haveria de ser reposta.
Chegados a 2025, deparamo-nos com uma carência extrema de magistrados para desempenhar as funções basilares, previstas na lei.
Ora, no passado dia 4 de junho o Conselho Superior do Ministério Público (CSMP) aprovou a abertura do movimento de magistrados do Ministério Público, ou seja, o procedimento através do qual os Magistrados do Ministério Público são transferidos, promovidos ou colocados (cfr. deliberação n.º 724-A/2025, de 4 de junho, publicada no Diário da República n.º 107/2025, Suplemento, Série II de 2025-06-04).
É óbvio que, havendo carência de magistrados, iriam ficar lugares por preencher ou ter-se-ia de recorrer aos instrumentos de mobilidade e gestão processual, previstos no nos artigos 76.º e seguintes do Estatuto do Ministério Público, entre outras a acumulação e a agregação.
Tais instrumentos visam melhorar o equilíbrio da carga processual e a eficiência dos serviços e destinam-se a satisfazer necessidades pontuais de serviço e devem respeitar o princípio da especialização.
Este princípio foi uma das pedras de toque do novo Estatuto do Ministério Público, aprovado, pela Lei n.º 68/2019, de 27 de agosto. Entendeu-se que a complexidade e variedade do direito imporia que os magistrados devessem estar especializados em áreas específicas como cível, criminal, família e menores, trabalho e administrativo.
Sucede que, ao arrepio do que decorre do Estatuto do Ministério Público, em clara violação da Lei, o CSMP deliberou (por uma escassa maioria) solucionar milagrosamente a falta de magistrados, passando por obrigar os magistrados a desempenhar mais funções, sem recorrer às figuras legalmente previstas no referido Estatuto.
Além de “extinguir” lugares, ou melhor, anunciar que determinados lugares não irão ser preenchidos, passou a ampliar os conteúdos funcionais previstos, obrigando os magistrados a trabalhar em áreas completamente distintas.
É falacioso dizer-se que se está a gerir melhor os quadros e que as medidas adotadas não implicam um maior volume de trabalho para os magistrados.
Se faltam magistrados e se distribuiu o mesmo serviço por menos, há mais trabalho para cada um. É pura matemática!
Dizemos isto com base em factos muitos objetivos, recolhidos do anexo B à referida deliberação (denominado: alteração de conteúdo funcionais).
Passamos a demonstrar, em concreto e por referência ao anexo B, como é que o CSMP conseguiu instituir uma magistratura do Ministério Público multifuncional e generalista, extinguindo, na prática, o princípio da especialização.
Porque não, não se trata de situações pontuais!
Vejamos.
De forma inédita, o CSMP entendeu que o magistrado que atende o cidadão no Tribunal de Família não precisaria de ser especializado na área da família e crianças.
Desta forma, assistimos, em praticamente todo o país, à agregação dos Juízos de Família e Menores com os Juízos Locais Cíveis. Tal irá ocorrer em: Aveiro, Estarreja, Oliveira do Bairro, Santa Maria da Feira, São João da Madeira, Beja, Barcelos, Fafe, Guimarães, Vila Nova de Famalicão, Castelo Branco, Covilhã, Coimbra, Évora, Faro, Portimão, Alcobaça, Leiria, Almada, Barreiro/Moita, Seixal, Torres Vedras, Vila Franca de Xira, Amadora, Cascais, Mafra, Sintra, Gondomar, Maia, Matosinhos, Santo Tirso, Vila do Conde, Vila Nova de Gaia, Marco de Canavezes, Paredes, Porto, Santarém, Tomar, Setúbal, Viana do Castelo, Vila Real, Lamego e Viseu.
E, de forma ainda mais inusitada, o CSMP ampliou o conteúdo funcional do Juízo de Família e Menores de Santiago do Cacém, passando a obrigar os magistrados do Ministério Público a dirigir investigações criminais!
Com esta deliberação, que repudiamos, o CSMP quer também que os magistrados sejam, simultaneamente, especialistas na área cível e na área criminal.
Vejamos, alguns exemplos:
Os Procuradores da República colocados no Juízo do Comércio do Fundão, passam a liderar investigações criminais (além de assegurar o Ministério Público nos juízos locais cíveis). Os Procuradores da República colocados nos Juízos do Comércio de Olhão e da Lagoa, passam a ter competência genérica, assumindo também a investigação criminal (inquéritos criminais).
De igual forma, os magistrados colocados no Juízo do Comércio de Leiria, passam a ter funções não só nos Juízos Central Cível, no Juízo Local Cível como também no Departamento de Investigação e Ação Penal (inquéritos criminais).
Para os cidadãos de Santarém, entendeu-se que lhes bastava o mais generalista possível, então o Ministério Público além assumir a representação do Juízo Central Cível, Juízo do Comércio e do Juízo Local Cível, ainda deverá zelar pela direção da investigações criminais e tramitação inquéritos.
Em Viseu, o Ministério Público, além de assegurar o Juízo do Comércio, Juízo Central Cível e de Juízo de Execução, terá ainda de assumir a representação do junto do Juízo de Instrução Criminal.
O CSMP desconsiderou, por completo, a importância do Ministério Público junto do Tribunais de Trabalho, no patrocínio oficioso dos trabalhadores e das suas famílias e no atendimento ao público.
Assim, e numa medida nunca antes vista, impõe que os magistrados em funções nos Juízos do Trabalho passem a acumular com funções da área cível (Juízos Locais ou Centrais Cíveis, Execução ou mesmo com o Comércio), como acontecerá em Aveiro, Beja, Barcelos, Vila Nova de Famalicão, Bragança, Castelo Branco, Coimbra, Figueira da Foz, Évora, Faro, Portimão, Guarda, Almada, Barreiro/Moita, Loures, Torres Vedras, Vila Franca de Xira, Cascais, Sintra, Portalegre, Valongo, Santarém, Tomar, Sines, Vila Real, Lamego e Viseu.
Note-se que as acumulações suprarreferidas poderão ser desempenhadas em edifícios ou mesmo em municípios distintos, obrigando o magistrado a perder tempo em deslocações.
Questiono-me:
Como se pode prestar um bom serviço ao cidadão nestas condições?
Que especialização afinal é esta que agrega tantos conteúdos e tão distintos?
Imagine-se, que sentido faria um médico dermatologista passar a acumular com consultas de cardiologia? Ou um médico ortopedista passar a tratar doentes oncológicos? Não veríamos qualquer problema, porque são todos médicos?
Parece-nos evidente que a resposta é negativa.
E na magistratura, a resposta tem de ser igualmente negativa.
Estamos seguros que o Conselho Superior do Ministério Público, que não ouviu previamente os magistrados, não terá equacionado as consequências desta deliberação, na saúde, eficácia, eficiência e produtividade dos magistrados e, consequentemente, na qualidade e tempestividade do serviço prestado ao cidadão.
Aguardemos, com esperança, pela anulação da deliberação que determinou a abertura do corrente movimento de magistrados do Ministério Público, em face da petição pública subscrita por mais de um milhar de magistrados.
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