Não chovia na manhã em que Marta Francisco foi até à casa de Mário, a uma hora de bicicleta de Panjim. Uma sorte, porque era o início da estação das monções e ela estava com vontade de pedalar para longe da capital do estado de Goa e ir estrada fora por aquela paisagem povoada de cruzes, tão diferente doutros sítios da Índia.

Uns dias antes, telefonara-lhe a combinar esse segundo encontro entre ambos e tremera ao ouvi-lo dizer que não se recordava de a ter conhecido dois anos antes. “Mas, aos 92, lembrava-se de cada pequeno aspeto da sua existência”, perceberia ela rapidamente.

Heranças As casas indo-portuguesase as lojas como a Pedro Fernandes & Co., que vende instrumentos musicais há mais de 85 anos, ainda resistem na Goa atual

“O meu pai era jornalista. Era secretário do editor do jornal Ultramar. Quando Salazar fechou o jornal depois de censurar um artigo polémico, regressámos à nossa casa ancestral em 1938”, contou-lhe o velho goês, entre tantas outras coisas, rápido a enumerar as datas mais importantes da sua vida.

Na sala de estar da casa de família onde sempre morara, uma sala espaçosa e cheia de luz natural graças a grandes janelas, Mário ia-se levantando da poltrona para lhe mostrar um livro autografado por um investigador português a quem ajudara num estudo sobre a antiga arquitetura goesa, um exemplar de um texto com a história da sua aldeia, um artigo de jornal com uma entrevista que concedera sobre o dia da libertação de Goa ou uns velhinhos Lusíadas que o seu avô usara na escola.

No final, quando Marta lhe perguntou se gostaria de adicionar alguma reflexão, Mário resumiu o ambiente, dizendo: “Tudo é nostalgia!” E riu-se brevemente, concluindo: “A história chega ao fim. A minha geração é a única capaz de se lembrar.”

A INCERTEZA DO PRESENTE

Estávamos no verão de 2023. A queda do chamado Estado Português da Índia, pressentida como o princípio do fim do último “império” colonial europeu, tinha acontecido há mais de seis décadas, mas Mário e os outros goeses que Marta Francisco andava a ouvir lembravam-se bem do antes e depois da noite de 17 para 18 de dezembro de 1961, em que a União Indiana atacou por terra, ar e mar os territórios de Goa, Damão e Diu. Para eles, tinha sido uma invasão, para os seus concidadãos hindus, uma libertação.

As suas memórias são a base da tese de mestrado em Antropologia Social e Cultural em que Marta defende que as memórias do colonialismo português influenciam as práticas quotidianas dos católicos goeses, servindo de mecanismo para lidar com as incertezas da vida numa Goa em rápida transformação. “Tem que ver com a incerteza que vivem no presente – a política está dominada pela extrema-direita e sentem-se ameaçados por causa da sua filiação religiosa. Mas sabiam que viviam em ditadura e não querem voltar a ela.”

Presença portuguesa Ruínas da Igrejade Nossa Senhorada Saúde,em Sancoale,e rua nas Fontainhas,em Panjim, onde Marta sentiu que “é quase como ir ao Bairro Alto e, de repente, estar em casa num bar qualquer”

A então futura antropóloga portuguesa começou por explorar as manifestações de nostalgia dos seus entrevistados. Com vários deles, passou muito tempo no Mr. Baker, uma cafetaria onde os católicos goeses se encontravam todos os dias, antes do almoço, a conversar em português, a beber café em vez de chai e a comer rissóis, croquetes de vaca, chops (uns deliciosos salgados de batata e carne picada) e a doce bebinca. O Mr. Baker era, no fundo, um lugar de memória (conceito proposto pelo historiador francês Pierre Nora), por isso excelente para ela fazer trabalho de campo. “Era um dos exemplos de onde a memória se constrói no presente.”

Dali, partiria a visitar outros goeses, com frequência nas suas casas em Panjim, nos arredores e mesmo em Margão, a segunda maior cidade de Goa, famosa pelas enormes mansões de estilo colonial português. E, além dos católicos, haveria de ouvir hindus que ainda sabiam palavras em português e guardavam antigos passaporte, embora sendo naturalmente críticos dos tempos coloniais.

Por fim, debruçou-se sobre as várias autobiografias escritas por goeses. A maioria deles tiveram vidas normalíssimas, analisa, mas sentiram necessidade de escrever o que lhes aconteceu no passado, coisas banais, por exemplo, sobre as festas. “É um ato de futuro”, sublinha, “que os ajuda a ganhar certeza em relação ao passado”.

AS MESMAS EMOÇÕES

Nada disto é chato, hermético nem académico, como se percebe ao espreitar o seu site (martafrancisco.org) e mais ainda ao ver a exposição L(ea)iving the Past, patente até dia 7, na Casa do Comum, em Lisboa.

Entre fotografias, registos de som e vídeos, instalados numa salinha junto à sala de cinema dessa casa para a cultura situada no Bairro Alto, Marta oferece-nos um olhar contemporâneo sobre como a memória colonial se manifesta no presente. “Seria uma pena deixar este material enterrado num disco rígido”, já tínhamos lido no seu site.

L(ea)iving the Past é assumidamente um projeto sobre memória, em que a antropóloga enfrenta a sua própria nostalgia por um lugar que mal conhecia.

Em 2021, a sua primeira vez em Goa não era a sua primeira vez na Índia. Tinha-se estreado dois anos antes, a dar aulas de Inglês como voluntária em Chennai, cidade que até há 20 anos conhecíamos como Madras (ou Madrasta, para os portugueses), na região do golfo de Bengala. Fazer uma grande viagem estava nos seus projetos desde que chegara a Lisboa, vinda de Castelo Branco.

Reviver o passado Na cafetaria Mr. Baker, ponto de encontro dos goeses católicos de Panjim, Marta recolheu memórias dos tempos da chamada Índia portuguesa que estavam sobretudo registadasem autobiografias

Acabada da se licenciar em Ciência Política e Relações Internacionais, aterrara em Pangim em pleno confinamento, para fazer um estágio profissional no Consulado de Portugal em Goa e foi o então cônsul-geral de Portugal em Goa, António Chrystêllo Tavares, quem lhe sugeriu ouvir goeses católicos do tempo colonial.

“Gostei logo muito de Goa”, recorda. “Nunca senti choque cultural, nem nessa primeira vez. Precisamos todos das mesmas coisas, as emoções são as mesmas. Nunca senti: ‘Isto é tão diferente de Portugal.’”

Durante esses primeiros contactos que foi estabelecendo ao longo de 2021, viu-se numa posição quase diplomática, como se estivesse em representação de Portugal. Pensou, então, que também tinha de ouvir hindus. E foi nessa altura que começou a gravar as entrevistas, já na ideia de estudar Antropologia, mais especificamente o sub-ramo da Antropologia Visual, em que se usam imagens para a investigação e para a apresentação dos resultados finais. Um dos seus objetivos era sair da bolha académica.

A RUÍNA DE UM PASSADO

De início, pensou documentar e compreender como aquela geração – agora com 80 e 90 anos – vivia o quotidiano: como iam à escola, o que estudavam, o que comiam ou como passavam os seus tempos livres. Mas, à medida que avançava na pesquisa, o seu trabalho começou a parecer-lhe fútil, “talvez até colonial em si”, diz, “como se estivesse inconscientemente a ser impulsionada por aquilo a que Bissell chama ‘nostalgia não reconhecida’”, que é a tendência dentro da Antropologia para “resgatar mundos inteiros dos estragos do tempo, para dar sentido a formas sociais que estão a desaparecer rapidamente”.

O regresso, em 2023, seria mais curto no tempo (três meses), mas ganhara entretanto um outro olhar e o apoio do seu namorado, o goês Yash Sawant, realizador e diretor de fotografia. São, aliás, suas muitas das imagens que ilustram este artigo.

Enquanto andava a fazer trabalho de campo, Marta foi partilhando no Instagram fotografias e descrições que nos levam até uma Goa onde ainda se vai falando português e em que a arquitetura lembra outros tempos.

EXPOSIÇÃO
L(ea)iving the Past
Até domingo, 7 de dezembro, há fotografias, registos de som e vídeos para ver e ouvir numa salinha da Casa do Comum
R. da Rosa, 285, Lisboa, qua-dom 15h

“É uma casa portuguesa, com certeza”, comenta numa visita a Camorlim (também conhecida por Ambora), uma aldeia do distrito de Salcete, situada a apenas dez quilómetros de Margão, a quase 30 da capital do estado, Panaji, e a 45 de Mapusa, uma cidade que se anima particularmente à sexta-feira, graças ao seu concorrido mercado semanal.

“As casas indo-portuguesas têm madrepérolas nas janelas para que a luz se difunda com toda a intensidade no seu interior. Diria que não é necessário, já que o tempo criou o hábito de estas permanecerem sempre abertas. De dia e, às vezes, de noite. Vê-se o interior e ninguém se importa com os mosquitos”, escreve. “O clima, a falta de dinheiro e a imigração levam à ruína de um passado por elas contado. Aquelas que ainda são habitadas alojam famílias inteiras, geração atrás de geração. São poucas. A regra é que os telhados desabem, que se roubem as madrepérolas ou que se ocupem as terras de quem já vive longe. Desapoiados por um governo de extrema-direita que, em vez de imigrantes, molda o discurso em torno da religião, quem quer proteger Goa não encontra maneira.”

E, nós, ao vermos uma casa indo-portuguesa que já foi vermelha, entretanto arruinada e rodeada de vegetação, é como se também estivéssemos com ela em Salcete, a ler uma lápide que atesta que a família Peixoto viveu na vizinhança. Quase 64 anos depois da libertação de Goa, vale a pena acompanhar este exercício de memória que tanto nos diz sobre o nosso passado. Com ou sem nostalgia.

Tenho de começar este texto com uma admissão de culpa. Estava lançadíssimo para bater na Rosalía. É tanto o louvor à volta de LUX, o seu último disco, que esperavam o quê? Já tinha o tricórnio de velho do Restelo posto na cabeça. Já estava preparado para mais um capítulo da profusa tradição de artistas — Madonna à cabeça — que dispuseram do imaginário religioso como ocasião de erotização gratuita. A capa, com a artista em pose simultaneamente frágil e lânguida num figurino de freira pós-cristã, estava mesmo a pedi-las.

Fui então ouvir o disco e ouvi rápido. Não me detive em nada em particular; limitei-me a procurar algum espalhafato bufo ou engenhoso que confirmasse os meus preconceitos vagos sobre a catalã. Uma pequena busca para que pudesse elaborar um discurso rápido sobre o assunto.

Por causa de terceiros — bons amigos que insistiram, quase me ameaçaram — lá fui ouvir o disco outra vez. Depois ouvi-os a falar dele. E pronto: o meu pequeno teatro de indignação ficou sem fundamento. Aquilo não é pose, não é paródia, nem tampouco artesanato vanguardista para encher o olho aos guardiões do bom gosto. É uma sede antiga, pré-terapêutica; a sede de quem a sente de verdade, e não um projecto estético sobre a secura.

Não me levem a mal o instinto cínico. Rosalía é um puzzle pós-moderno, um labirinto de tradição com ironia, capaz de misturar na mesma solução Patti Smith, reggaeton, Tarkovsky ou vídeos de dez segundos com gatos a rebolar. Por isso, qualquer gesto seu poderia sofrer dessa lógica horizontal tão propícia ao mundo do espectáculo. Na melhor das hipóteses, o disco padeceria do dilema entre o uso de iconografia religiosa e a presença de Deus dentro do texto; o que já seria uma pequena vitória. Um exercício de heterodoxia provocador e estimulante, reservado aos sábios inocentes que sabem que em todo o homem cabe sempre tudo e o seu contrário; como Rosalía sabe.

O que acontece, afinal, é que a artista catalã chegou àquela conclusão agostiniana de que o vazio que temos dentro de nós é, afinal, o molde com os entalhes negativos do Criador. Um buraco que, por mais que lhe despejemos bilhetes de avião, redes sociais, comida, álcool, namoros ou o que houver, nunca deixará de se sentir faminto a menos que receba o positivo que lhe dá forma. Como um daqueles vasos com furos no fundo por onde todos os líquidos seguem o seu caminho.

Assim, ao descobrir que precisava de Deus como quem se apercebe que é preciso água num deserto, Rosalía desarmou qualquer projecto de velho do Restelo que pudesse haver em mim. Ou em doctorfhernandez1, um utilizador do Youtube que partilhou a seguinte confissão na caixa de comentários do teledisco de Berghain, uma das mais pungentes canções do disco: “Soy de Colombia… y soy metalero… y nunca en la vida pensé escuchar un disco de Rosalía… y ahora mismo lo meto en mi playlist”.

Por isso é que LUX, mais do que um bom disco — até mais que uma “obra-prima”, como muitos lhe chamam — é a ponta de um iceberg espiritual do qual Rosalía é a protagonista mais mediática. Mesmo quando se entrega ao kitsch. O disco vale não apenas pelo que alcança, mas pelo que revela, tornando-se num marco involuntário sobre a insuficiência do próprio código musical com que se tece.

A ideia de que Deus é um intruso na cultura pope não é uma ideia nova. Ele anda por lá desde o princípio. Dylan não fez outra coisa; Cohen escreveu duas dúzias de salmos disfarçados de canções; o Nick Cave transformou palcos em híbridos de púlpitos, confessionários e câmaras ardentes. Mas o que está a acontecer com Rosalía — e com John Maus, e, se me permitem a nota autobiográfica, comigo desde Os Perdedores, de 2022 — é outra coisa. É uma divergência.

Atente-se no seguinte episódio.

Em conversa com críticos do New York Times, a certa altura, Rosalía entusiasma-se a falar de Ryonen Gensō — a bela nobre japonesa que, para entrar num mosteiro zen, mutilou o rosto para acabar com a vaidade — e os entrevistadores ficam a apanhar do ar, sem saber o que fazer com aquilo. A dessincronização dos comprimentos de onda é tal que se torna cómica. Não são ainda adversários, mas já são dois blocos inconciliáveis. Mais à frente, noutro momento (que é uma ode à dissonância cognitiva), a propósito da participação de Björk em Berghain, o crítico americano que a está a entrevistar, entusiasma-se e tenta explicar a sensação:

— “Quando ela surge na música e canta ‘This is divine intervention’, é como se estivesse a atravessar o espaço e o tempo, estendendo o braço e…”

Rosalía interrompe-o, radiante, com aqueles olhos arregalados de eterna miúda de 15 anos — apesar dos proverbiais 33 que já soma:

— “Exacto! É como se estivesse a dividir o mar em dois!”

O jornalista, sem perceber que mudou o livro, termina a frase:

—“…e a passar a tocha.”

Rosalía lá acenou, com a resignação e a esperteza aguçada de quem já topa o desfasamento ontológico em curso: quando, no seu espírito, já mora o Apocalipse, o mundo dá-lhe metáforas desportivas. É como se estivesse já num plano completamente distinto do seu próprio ecossistema cultural. Na outra margem.

Porém, Rosalia não está a liderar um regresso ao sagrado. Esse tipo de chefia revolucionária não tem lugar no místico e no profeta, é demasiado consciente. O que ela faz — e nisso é absolutamente contemporânea — é revelar que a pop, depois de ter esgotado o hedonismo, o niilismo, a pornografia emocional ou o narcisismo transmutado no mais recente activismo em voga, chegou ao seu limite espiritual e entrou num regime escatológico involuntário. Daí que a própria Rosalía lamente que muita gente, como a sua irmã por exemplo, não considere este álbum um disco pop, mas outra coisa por definir.

Eu posso ajudar nisso: é pop, claro que é pop. Mas, como estou a tentar explicar, é pop na sua estação terminal.

Agora, depois de ter passado três anos a ler hagiografias e a canalizá-las em estúdio como quem, sem dar por isso, vai abrindo a porta ao Anjo da Guarda, Rosalía chegou àquele minuto tremendo em que já não é ela que canta. Não exagero: há artistas que interpretam canções, mas há outros, raríssimos, quase nenhuns, que são cantados por algo maior. É um grupo de gente no qual ninguém entra ileso.

Tomando o que escreveu nos termos vertiginosos em que está escrito, só lhe resta um passo. Não é um passo que se dê com o pé; é um daqueles que mexem com a geografia secreta de uma vida. Ninguém o dá sozinho; é dado em nós, apesar de nós. Poderíamos chamar-lhe, roubando o título a um livro da Cristina Campo, o passo do adeus, ou o avanço para o lugar inicial, onde a vida começa.

Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.
Manuel Marbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

O INE publicou ontem um importante estudo sobre os custos de contexto das empresas, com base num inquérito a quase 5 mil empresas de todas as dimensões e setores de atividade, relativo a 2024, que permite comparar com estudos anteriores feitos em 2014, 2017 e 2021.

É chocante verificar como as preocupações das empresas se afastam totalmente da agenda ideológica do Governo, concertada com a extrema-direita, assente na redução da tributação sobre os lucros das grandes empresas, na desregulação do mercado de trabalho e na diabolização da imigração.

Para os empresários inquiridos, que apontam para uma degradação da situação relativamente a 2021, os maiores custos de contexto têm a ver com o mau funcionamento do sistema judicial, com destaque para a duração dos processos administrativos e fiscais, as regras de licenciamento, aqui com especial preocupação com os licenciamentos ambientais, e um desconforto genérico que não se agravou com a carga fiscal.

Curiosamente, na avaliação dos custos de contexto provocados pelo sistema judicial, que se deteriorou significativamente relativamente a 2021, a justiça laboral é a que menos preocupa os empresários que destacam antes os problemas com os processos tributários e a resolução de conflitos comerciais. Mas sobre tudo isto não se conhecem ações de Rita Júdice, mas apenas vagas declarações de intenções de Gonçalo Matias sobre a justiça administrativa.

Igualmente em matéria de licenciamentos, área genericamente considerada como crítica, as áreas mais penosas para a indústria, superando todos os restantes custos de contexto, são as do licenciamento ambiental e das certificações ambientais. Mas também nesta área talvez Gonçalo Matias esteja distraído a mudar o mundo e não tenha reparado que o seu Governo veio aumentar as exigências burocráticas com o novo regime de renovação das licenças ambientais.

De facto, o Decreto-Lei nº89/2025, de 12 de agosto, representou um grave retrocesso relativamente ao Simplex ambiental de 2023, ao exigir a renovação a cada 7 anos das licenças ambientais que recaem sobre as emissões industriais. Enquanto, em 2023, o governo de António Costa tinha eliminado o prazo de validade das licenças ambientais, o governo de Luís Montenegro e Gonçalo Matias reintroduziu este encargo que envolve cerca de três meses de trabalho de um técnico qualificado da APA para cada processo, com a gravidade dos prazos de validade das licenças serem ainda mais curtos do que os 10 anos exigidos até 2023. A APA não estava impedida de atuar sempre que fosse necessário, mas o governo Montenegro veio aumentar os custos de contexto para as empresas e acrescer burocracia ao já pesado funcionamento da APA.

Finalmente, o estudo relativo a 2024 indica uma nova área em que as empresas têm uma preocupação crescente: a dos recursos humanos. Mas também nesta área, para eventual surpresa de Rosário Palma Ramalho e de Leitão Amaro, a preocupação essencial dos empresários não tem a ver com as dificuldades nos despedimentos ou as perturbações provocadas pela imigração.

A área em que os custos de contexto mais crescem, aproximando-se mesmo das queixas sobre a Justiça ou os licenciamentos, é a relativa às dificuldades de contratação de trabalhadores. Mais de 51% das empresas inquiridas dizem ter dificuldade em encontrar trabalhadores qualificados e 46% referem problemas genéricos com o recrutamento de mão-de-obra. Provavelmente sobretudo relativamente a trabalhadores estrangeiros, é igualmente referida a dificuldade com a certificação das qualificações dos trabalhadores, com as consequências indignas como as dos médicos especialistas luso-venezuelanos a trabalhar como auxiliares nos hospitais ou os engenheiros ucranianos a ocupar lugares de pedreiros.

Para os cidadãos, a Reforma do Estado é uma bandeira estranha que não se compadece com o desmoronar do IRN, agora libertado das renovações das autorizações de residência, a falta de médicos de família ou os 3300 estudantes do 1º ciclo ainda sem professor à beira do Natal.

Mas, para as empresas, estes retrocessos por opção política, como em matéria de licenciamento ambiental ou os resultados pífios da Via Verde para os vistos de trabalho, ou por mera degradação dos serviços, como sucede com a “Empresa na Hora”, são sinais de uma deliquescência dos serviços públicos que não se compadece com a gritaria eufórica sobre IA do ministro na Web Summit.

Pela total desconexão entre os verdadeiros custos de contexto das empresas e as prioridades ideológicas do Governo, o prémio Laranja Amarga de hoje vai para o pregoeiro das reformas anunciadas Gonçalo Matias.

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Teve início esta semana um novo ciclo para o Centro de Estudos Judiciários, enquanto instituição responsável pela formação inicial de futuros magistrados em Portugal. Marcando o arranque do 42.º Curso de Formação de Magistrados para os Tribunais Judiciais e do 12.º Curso de Formação de Juízes para os Tribunais Administrativos e Fiscais, este ano de 2025 fica também marcado na história do CEJ pela abertura do novo polo instalado em Vila do Conde. Depois de mais de quatro décadas de funcionamento exclusivamente em Lisboa, no histórico edifício do Largo do Limoeiro, a instituição dá agora um passo exemplar de adaptação da formação às realidades geográficas, sociológicas e estruturais do país.

Com efeito, desde a fundação do CEJ, em 1979, todas as gerações de juízes e procuradores receberam a sua formação inicial no mesmo local, o emblemático “Limoeiro”. Trata-se de um local histórico, com toda a dignidade para a função a que se destina e que, ao longo de décadas, foi acolhendo e formando, com manifesto e reconhecido mérito, milhares de auditores de justiça, acompanhando-os até à fase em que iniciam, por si, funções nos tribunais portugueses, sem prejuízo da formação contínua ao longo da carreira. Assim continuará a ser, e bem.

Contudo, a concentração total da formação na cidade de Lisboa foi ficando progressivamente desfasada da evolução do perfil dos próprios candidatos. Os estudos sociográficos realizados entre 2004 e 2024 são inequívocos, apontando que a maioria dos auditores de justiça é natural e residente na zona Norte do país. Este dado, que se manteve estável durante duas décadas, levantava uma questão fundamental de equidade territorial, pois que o sistema previsto obrigava dezenas de candidatos, ano após ano, a deslocarem-se a Lisboa, enfrentando custos elevados, pressão imobiliária cada vez mais forte e uma deslocalização prolongada no âmbito suas vidas pessoais. Dito de outra forma, logo a formação inicial — que deveria ser um período de dedicação, concentração e estabilidade — começava frequentemente sob o signo da dificuldade logística e até económica.

A decisão de criar um novo polo do CEJ não resulta, portanto, de critérios subjetivos ou de motivações identitárias. Ao invés, consiste, objetivamente, numa resposta para uma necessidade nacional há muito identificada, tendo por base a proveniência de uma fatia muito relevante dos candidatos, bem como a disponibilidade de infraestruturas e da possibilidade de reabilitar o Convento de Nossa Senhora do Carmo, sito junto ao Largo do Laranjal em Vila do Conde, criando condições permanentes e adequadas para uma escola moderna de formação de magistrados.

Mesmo com a mudança de Governo em 2024, a orientação manteve-se. O executivo seguinte não só não interrompeu o projeto como o reforçou, alterando a Lei do CEJ para permitir a formação em mais do que um local. A abertura do polo, primeiro em instalações provisórias e depois no espaço reabilitado, mostra que a decisão é, antes de mais, estrutural e institucional — e não circunstancial. Nesta ótica, afigura-se relevante olhar também para os resultados já conhecidos. Em 2024, apenas 380 candidatos haviam sido admitidos a concurso, num resultado historicamente baixo. Já em 2025, esse número subiu para cerca de 825. A quantidade de candidatos que escolheu o Porto para realizar as provas duplicou e entre os 30 melhores classificados, 18 optaram por fazer a formação em Vila do Conde, numa clara demonstração de que a localização corresponde aos interesses reais e objetivos dos formandos.

Trata-se, por isso, de uma opção assente em critérios de plena racionalidade. Mantendo a operacionalidade plena do CEJ instalado na sua sede em Lisboa, o novo polo permitirá a muitos candidatos, especialmente do Norte e do Centro, a possibilidade de se poderem formar mais perto da sua área de residência, com a consequente redução de custos pessoais e diminuição da pressão familiar. Esta é ainda uma solução boa para o sistema de justiça, garantindo que serão menos os candidatos que deixarão de se candidatar por dificuldades económicas ou logísticas e, por outro lado, assegurando a possibilidade de mais jovens saídos das Universidades poderem ponderar a magistratura como uma opção de futuro. Por outro lado, esta opção permite a formação, em simultâneo e sem perdas de qualidade, de um maior número de magistrados, sendo as carências do sistema nesta matéria de todos conhecidas, com a progressiva diminuição de juízes e procuradores no ativo a constituir um fator de entropia na organização do sistema de justiça.

No fundo, o novo polo não representa um fator de favorecimento territorial, mas antes um fator de justiça territorial. Ao permitir a formação em Lisboa e Vila do Conde, o CEJ não se torna mais pequeno, mas verdadeiramente maior, porque chega mais longe, reduz assimetrias e aproxima-se das populações. Para os futuros magistrados, melhora as condições de acesso; para a instituição, aumenta a capacidade formativa; para o país, reforça a coesão e a eficácia do sistema judicial.

A nomeação do novo diretor do CEJ reforça também a esperança de que esta solução seja verdadeiramente acarinhada e desenvolvida, sendo inegável e absolutamente consensual o reconhecimento das vastas capacidades e experiência desta equipa diretiva para liderar um modelo descentralizado com absoluta garantia de que a qualidade e uniformidade da formação se manterão intocáveis, independentemente da localização física.

A descentralização, nesta como noutras áreas onde teimosamente vai tardando, não pode constituir apenas um gesto simbólico, mas antes deve ser o espelho de uma decisão estratégica tendo em vista uma resposta objetiva para problemas reais. Neste caso, os problemas foram assinalados pela comunidade judiciária e reconhecidos por governos distintos e com orientações políticas diferentes, num raro gesto de continuidade política e estratégica para o País, não se resumindo esta nova solução apenas à criação de uma mera infraestrutura, mas antes constituindo um passo de modernidade para a Justiça portuguesa. Por tudo isso, está de parabéns o CEJ.

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A menina de quatro meses, que foi entregue na quinta-feira retirada pela mãe do internamento de Pediatria do Hospital de Gaia foi entregue quinta-feira, ao final da tarde, no Posto da GNR dos Carvalhos, em Vila Nova de Gaia. Fonte da GNR adiantou à Lusa que a bebé foi levado novamente para o hospital para ser avaliada. Já esta sexta-feira, fonte hospitalar indicou à agência de notícias que a menina já está numa instituição e que processo de entrega decorreu entre as 20h00 e as 22h00 de quinta-feira.

A mãe retirou a filha de quatro meses do hospital, no distrito do Porto, durante a tarde, “após ter sido informada pelo tribunal, durante a manhã, de que a criança seria entregue a uma família de acolhimento” ainda durante o dia de quarta-feira, referiu a mesma fonte.

O caso foi avançado pelo Jornal de Notícias (JN), que refere que, de imediato, o hospital comunicou o desaparecimento da bebé à PSP e ao tribunal.

A pulseira eletrónica foi encontrada intacta no caixote do lixo da casa de banho do quarto onde a criança estava internada.

“Temos de retirar daqui uma aprendizagem para que isto não se repita, isto não pode voltar a acontecer, nós não vamos deixar que isto volte a acontecer e, por isso, vamos retirar daqui todos os ensinamentos”, referiu.

Luís da Cruz Matos insistiu que o hospital está a avaliar tudo aquilo que se passou e como é que a mãe conseguiu tirar a pulseira da bebé.


Foram analisados 65 produtos de cereais adquiridos em 16 países europeus, incluindo cereais de pequeno-almoço, doces populares, massas, ‘croissants’, pão integral e refinado e farinha.

De acordo com o estudo, o alimento mais contaminado eram os cereais de pequeno-almoço, com concentrações médias do TFA 100 vezes superiores às da água da torneira.

“Todos estão expostos ao TFA por diversas vias, incluindo alimentos e água potável. Os nossos resultados sublinham a necessidade urgente de proibir imediatamente os pesticidas PFAS para impedir a contaminação da cadeia alimentar”, afirmou Salomé Roynel, responsável da PAN Europe, em comunicado, citado pela agência noticiosa espanhola EFE.

Os PFAS são um grupo de aproximadamente 4.000 substâncias químicas sintéticas perfluoroalquiladas e polifluoroalquiladas, que não se decompõem facilmente no meio ambiente, sendo por isso designadas de “químicos eternos”.


O TFA foi detetado em 81,5% das amostras (53 das 65), sendo que os produtos à base de trigo apresentavam níveis mais elevados de contaminação do que os de outros cereais.

Segundo a EFE, os níveis mais elevados foram encontrados nuns cereais de pequeno-almoço irlandeses, seguidos de um pão integral belga, um pão integral alemão e uma baguete francesa, mas a substância foi descoberta numa grande variedade de produtos, desde esparguete a ‘scones’ de queijo e pão de gengibre.

“O TFA, um produto da decomposição dos pesticidas PFAS e dos gases fluorados, é extremamente persistente, móvel e tóxico para a reprodução. Estudos da indústria associam-no também à redução da qualidade do esperma e a efeitos adversos na tiroide, no fígado e na função imunitária”, observou a PAN Europe.

Este composto químico hidrossolúvel acumula-se na água e no solo, onde é absorvido pelas plantas, o que poderá explicar as elevadas concentrações encontradas em produtos como o pão, a massa e as bolachas para crianças.

“Todas as amostras ultrapassaram o limite máximo de resíduos predeterminado. Não podemos expor as crianças a substâncias químicas tóxicas para a reprodução. Isto exige uma ação imediata”, sublinhou a organização ambientalista, que apela à Comissão Europeia e aos Estados-Membros para proibirem os pesticidas PFAS e monitorizarem o teor de TFA nos alimentos.

Enquanto presidia, na quinta-feira, à assinatura do acordo de paz entre o Ruanda e a República Democrática do Congo (RD Congo), um dos oito conflitos que afirma ter resolvido desde a sua tomada de posse em janeiro, Donald Trump dirigiu-se ao chefe da diplomacia americana, Marco Rubio, presente na cerimónia: “Obrigado por colocar um certo nome no edifício. Quando cheguei, pensei ‘Oh, isso é bonito’. (…) É uma grande honra.”

O Departamento de Estado tinha anunciado no dia anterior a decisão de atribuir o nome de Donald Trump àquele instituto mediante uma mensagem na rede social X, explicando que queria “homenagear o melhor negociador da história do nosso país”.

O edifício, localizado no coração de Washington, ostenta agora em relevo e com letras prateadas o nome “Donald J. Trump”, acima do seu nome original: “United States Institute of Peace [Instituto da Paz dos Estados Unidos]”.

O presidente americano também se mostrou muito entusiasmado com o próprio edifício, que descreveu como “magnífico e novinho em folha”.

A construção da sede desta instituição terminou, na realidade, em 2011.

Mas foi este mesmo instituto, criado em 1984 sob a presidência de Ronald Reagan, que o atual presidente americano tentou desmantelar nos primeiros meses do seu segundo mandato, tal como outros organismos federais, demitindo a maior parte dos seus dirigentes.

Financiada pelo Congresso, esta organização independente sem fins lucrativos procurava sobretudo prevenir e resolver conflitos internacionais, e contava, até ao início deste ano, com investigadores especialistas em questões internacionais, funcionando como um think tank.

Donald Trump acredita que os seus esforços para terminar com vários conflitos no mundo – Gaza, Índia-Paquistão, Camboja-Tailândia, etc – deveriam valer para lhe atribuírem o Prémio Nobel da Paz.

Os especialistas realçam, no entanto, como lembra a agência Lusa, que a sua intervenção em alguns destes conflitos foi muito limitada ou mesmo inexistente.

Há uma mulher que se aproxima de mim. Vem de sorriso aberto e faz o gesto de começar um abraço. “Obrigada. Obrigada por dizer sempre a verdade”, diz-me, enquanto me explica que gosta de me ouvir falar na televisão. Desconfiada, a minha filha franze o sobrolho, dá um passo atrás. Espera que a mulher se afaste. E, então, do alto da sabedoria de quem interroga o mundo, pergunta-me, muito séria: “Como é que ela sabe que tu dizes sempre a verdade?”

A pergunta é muito boa, como quase todas as que fazemos aos 8 anos, como quase todas as que, depois da infância, calamos, por medo, vergonha ou simplesmente – pela pior razão de todas – por acharmos que já sabemos todas as respostas. Respondi de forma honesta. “A senhora acha que eu digo a verdade, porque concorda com o que digo.” Dito assim, em voz alta, é quase uma confissão de desqualificação. Minha, claro. Mas da própria verdade também. Como se fosse impossível que aqueles com quem não concordamos pudessem dizer a verdade. Pior: como se a verdade fosse matéria de opinião. E, não, a verdade não é opinião. A opinião é aquilo que pomos em cima da verdade, o ângulo que escolhemos para ver aquilo que existe.

Constato que a minha resposta honesta contém em si doses consideráveis de cinismo. Mesmo quando procuramos ser honestos não estamos imunes à doença que nos faz dividir o mundo entre bons e maus, preto e branco. Li a simpatia da senhora como concordância.

Mas podia ter dado outra explicação para o agradecimento por dizer “sempre a verdade”. Não sei se essa segunda explicação é a verdadeira, mas é aquela que eu gostava que fosse pelo menos parte da verdade. Talvez – arrisco apenas um “talvez” quando me afasto do cinismo – a senhora que me falou na rua veja em mim o esforço de continuar a comportar-me como uma jornalista, mesmo quando me pedem a opinião. Talvez me reconheça o método, de procurar o máximo de informação, antes de escolher o ângulo para fazer o comentário. Talvez intua que existe um método jornalístico de que não abdico e que atua como um filtro, a peneirar-me o pensamento, a impedir-me de entrar nas guerras de claques e de fações.

Mas regressemos à pergunta da criança, regressemos sempre a ela quando vemos o mundo. E pensemos, por um instante, na forma como este mundo transformou a “verdade” numa mercadoria, pronta a adaptar-se a cada mercado. “Eu tenho a minha verdade”, dizem uns. “É a verdade dele”, encolhem-se outros. E o resultado é um conjunto de gente incomunicável. Um amontado de indivíduos que não chega a ser a soma das partes, que é só feito de fragmentos isolados. Cada um na sua. “Levem lá a bicicleta”, como se dizia antes, quando se queria acabar uma discussão, por enfado, sem abdicar do ponto em que se tinha começado.

Está, assim, cada um em cima da sua bicicleta. Muito contentes consigo próprios. Sem perceber que pedalam aceleradamente para o abismo, antes de uma passagem pela rotunda dos seus convencidos umbigos, cheios de nada e cotão.

Precisava de falar outra vez com aquela senhora, agradecer-lhe, sim, mas explicar-lhe que o que lhe ofereço não é “a verdade” e muito menos “a minha verdade”, mas apenas uma tentativa honesta de trazer para discussão elementos que me parecem fundamentais para que possamos voltar a pensar em conjunto.

Num momento em que basta bloquear nas redes sociais aqueles com quem não concordamos, em que as discussões se ficam pelo “gosto/não gosto”, em que somos constantemente inundados pelas ideias de quem acha isto ou aquilo, cheio de certezas absolutas para afirmar verdades relativas que são vendidas como definitivas, como poderemos voltar a ouvir aqueles com quem não concordamos? Como poderemos voltar a aceitar entrar na dança dos argumentos sem lhes pisarmos os pés, puxando-os para nós pelo ritmo das nossas razões, mas seguindo-lhes a coreografia do pensamento?

O facto é que estamos cansados. A sociedade da informação a toda a hora, das solicitações incessantes, do algoritmo da indignação que nos corrói, das tarefas que se fazem ao mesmo tempo, da exigência da produtividade e da perfeição está a afastar-nos da humanidade e da empatia. Lembram-se de como Elon Musk perorou contra a empatia? Para quem tem do mundo e dos outros uma visão utilitária, só a eficácia fria importa. E a eficácia pode ser um buldózer a esmagar os ossos dos mais fracos. Não importa. Não importa ser bom ou justo. Importa ter mais e arrasar tudo à nossa frente.

Ora, eu acho que a empatia é o início da construção de um dos mais importantes tijolos da civilização: a comunidade. Termos a disponibilidade de reconhecer o outro como igual é o ingrediente que faz de nós verdadeiramente humanos. Mais: é a única coisa que pode salvar o mundo das nossas pulsões de destruição. E é a única forma de sermos todos mais felizes.

É capaz de ser muito pretensioso dizer que o jornalismo é um pouco da cola que pode voltar a unir-nos. Correrei o risco de ser pretensiosa. E correrei também o risco (ainda maior) de parecer ingénua, porque me recuso a desistir. Já sei que me chegarão mensagens cheias de escárnio, comentários desdenhosos, dedos a apontar-me o lirismo incurável e a falta de realismo prático. Prefiro ver as coisas de outra forma: não há nada mais realista e pragmático do que procurar a salvação da espécie. E essa salvação só poderá vir pela reconstrução da ideia de comunidade. Não uma comunidade fechada sobre si mesma, bafienta, que afaste todos os que não são parecidos. Mas uma comunidade aberta à ideia de que podemos ser todos mais iguais nas nossas diferenças.

O que é que isso tem a ver com o jornalismo? Tudo. Porque o jornalismo dá-nos as ferramentas para perceber o mundo, ajuda-nos a entender os outros, mostra-nos o que alguns preferem esconder, revela o que não é óbvio e, acima de tudo, faz-nos pensar.

O ódio convive mal com o pensamento. O ódio é automático. O ódio é uma víscera em espasmos que se retrai e encolhe quando abrimos os olhos. Porque quando conseguimos ver o outro, o ódio começa a esfarelar-se. O ódio é uma coisa abstrata que vive mal com o concreto. E é por isso que tantos dos que odeiam “até” têm um amigo “que é preto ou cigano ou gay”. Porque é muito mais difícil odiar aqueles que conhecemos de perto e, vistos assim, são afinal tão humanos como nós.

Comecemos pelo básico: aceitar que a verdade existe, para lá da opinião, mas que ela é uma coisa complexa, a que se acede como quem monta um puzzle, com a paciência de encontrar os fragmentos e de os encaixar, com a disponibilidade para perceber que o que nos parece evidente pode estar errado. Sim, é difícil. Mas é fundamental.

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Há momentos na História em que a diplomacia parece uma arte séria, construída com rigor, paciência e um entendimento profundo da fragilidade da paz. E depois há momentos que recordam Brest-Litovsk e Tilsit, não pela grandeza das negociações, mas pela violência subtil com que tratados são impostos a países exaustos.

Em Brest-Litovsk, a Rússia bolchevique assinou porque já não tinha Estado que se aguentasse de pé. Em Tilsit, Napoleão e o czar Alexandre I, sentados sozinhos num barco no meio do Niemen, decidiram, quase a sós, o destino de outros povos como quem distribui terras num testamento improvisado. Há algo dessa sombra histórica na proposta que hoje se tenta impor à Ucrânia. Não se trata de diplomacia. Trata-se de dois atores externos a discutir o futuro de um país que não lhes pertence.

O plano dos 28 pontos não nasceu de um processo estruturado. Não houve conversas formais, grupos de trabalho nem negociações multilaterais. Nasceu do improviso. Um telefonema de poucos minutos entre Steve Witkoff, empresário americano promovido à pressa a emissário político de Donald Trump, e Yuri Ushakov, o veterano conselheiro de política externa do Kremlin. Witkoff, embriagado pelo suposto sucesso de um acordo frágil em Gaza, decidiu que a mesma fórmula podia ser aplicada à Ucrânia. E o que começou como um exercício quase amador transformou-se, de repente, num documento que Moscovo passou a tratar como se fosse um texto diplomático com validade real.

Nada neste episódio tem a ver com paz. Tudo tem a ver com poder, controlo e narrativa. O Instituto para o Estudo da Guerra descreve com exatidão o que está por trás da posição russa: o Kremlin recusa-se a negociar de forma significativa, não mostra qualquer vontade de fazer concessões e procura prolongar indefinidamente qualquer processo para continuar a avançar no terreno. A estratégia é simples. Ganhar metros de território, amplificá-los em propaganda e criar a sensação de inevitabilidade. Uma paz justa exige compromisso. A proposta russa exige capitulação. E por isso Moscovo não prepara o país para aceitar menos do que uma vitória total.

O plano norte-americano nasce, assim, num ecossistema onde a Rússia não quer negociar e onde o trumpismo precisa de apresentar resultados rápidos que sirvam a política interna dos Estados Unidos da América. É por isso que o documento é tão perigoso. Não pretende parar a guerra, pretende precipitar uma capitulação total. Ao exigir que a Ucrânia aceite a perda formal do Donbass, reduza quase para metade o seu Exército e abdique da responsabilização pelos crimes cometidos durante a invasão, o texto cria apenas um cenário possível: forçar Zelensky a sair. Para Moscovo, ele é o último garante de que a Ucrânia não aceitará uma mutilação territorial. Para Trump, ele é o Presidente que provavelmente nunca assinará o acordo que permitiria proclamar que “a guerra acabou”. Em ambos os casos, a lógica converge. A paz, tal como apresentada, começa com a remoção do Presidente ucraniano.

Esta pressão surge precisamente no momento de maior fragilidade interna de Zelensky. A Ucrânia vive exausta. Quatro anos de guerra destroem qualquer país, corroem expectativas, desgastam lideranças e abalam o moral coletivo. As cidades vivem entre apagões e funerais. As frentes avançam lentamente e as divergências políticas multiplicam-se. Para a Rússia, este é o momento ideal para impor condições. Para certos setores de Washington, também. Quanto mais fraca a Ucrânia se sentir, mais “razoável” parecerá aceitar o inaceitável.

E no centro desta encenação política surge a Europa, tratada como espectadora, apesar de ter sido ela a pagar praticamente tudo. Financiámos salários públicos, infraestruturas, escolas, hospitais, energia, fundos de emergência, munições, defesas aéreas, corredores logísticos, treino militar. A Ucrânia não ruiu porque a Europa segurou o país nos seus braços financeiros.

Durante quatro anos, suportámos a maioria dos custos da guerra. E, no entanto, quando aparece um plano que redefine o destino de um continente inteiro, somos pura e simplesmente ignorados. É como assistir a uma peça onde comprámos os bilhetes, financiámos o cenário, pagámos os atores e ainda assim ficámos de fora do guião.

Esta exclusão revela a grande contradição europeia. Somos gigantes financeiros, mas anões estratégicos. Falamos em autonomia, mas dependemos da vontade de terceiros. Repetimos que a Ucrânia é a linha da frente da segurança europeia, mas deixamos que outros desenhem o seu futuro. A Europa fez quase tudo, exceto aquilo que realmente importa: transformar o seu poder económico em poder político e militar. E nunca apresentou o seu próprio projeto de paz. Sem capacidade de dissuasão própria, não é a Europa que molda o destino da guerra. É a Europa que paga a fatura final.

O chanceler alemão Friedrich Merz recordou recentemente que nenhuma guerra pode ser decidida por cima das nações afetadas. Ele tem razão. Mas há uma verdade paralela. Nenhuma guerra que determine o futuro da Europa pode ser decidida sem a própria Europa. E, no entanto, é exatamente isso que está a acontecer. A proposta dos 28 pontos é um lembrete violento de que o continente ainda não aprendeu a exercer poder. E enquanto não o fizer, será sempre tratado como pagador, nunca como ator decisivo.

O caso do acordo improvisado para a Ucrânia é mais do que um erro. É um sinal. Um aviso. Um espelho da ordem internacional que já aí está e nós nem sequer falámos da China. Um mundo onde atores improvisados podem interferir no destino de países soberanos, onde a Rússia tenta institucionalizar no papel aquilo que não conquistou no campo de batalha, e onde parte da política americana está disposta a sacrificar aliados para obter troféus.

A questão decisiva é: a Europa quer continuar a assistir ou quer finalmente escrever o seu próprio papel? Até agora, financiámos a peça inteira, mas não escrevemos uma única cena. E quando um plano de paz nasce como instrumento para precipitar a rendição de um país e derrubar o seu Presidente, não é um plano. É uma armadilha. A Ucrânia sabe-o. E a Europa tem de o reconhecer antes que o barco volte a partir, levando consigo, mais uma vez, o destino do continente decidido por outros.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

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Há coisas que ninguém nos ensina quando chegamos aos 60. Não há manuais, hotline nem tutorial no YouTube. Um dia acordamos, o corpo range, a memória faz pausas dramáticas e descobrimos que já temos mais aplicações médicas no telemóvel do que contactos de amigos. E, infelizmente, alguns até começam a partir, quase sempre com aquela absurda expressão: “doença prolongada”. E depois, como se já não bastasse o drama biológico, aparece George Clooney — esse homem que parece envelhecer em alta definição — a fazer um filme sobre a crise dos 60. A minha crise. A tua. A nossa. E a roubá-la com uma elegância indecente. O filme chama-se Jay Kelly, de Noah Baumbach (Ruido Branco) — estreia agora na Netflix a 4 de dezembro — mas podia chamar-se Vejam Como Eu Envelheço Melhor do Que Toda a Gente ou, usando aquele livro do Dr. Manuel Pinto Coelho, que nunca li, diga-se, mas que gosto do título, chamado Chegar Novo a Velho. É bastante estimulante. Em Jay Kelly, Clooney interpreta um ator famoso em meltdown existencial, acompanhado por Adam Sandler, numa viagem europeia que é menos sobre paisagens e mais sobre rugas interiores. E enquanto Jay Kelly tenta reencontrar a filha mais nova — porque a mais velha já a “perdeu” —, o sentido da vida e talvez um bocado de firmeza facial. Em setembro passado, sentado na Sala Darsena, na projeção de imprensa da estreia do filme no Festival de Veneza, percebi logo que até a minha crise de idade, tinha um protagonista bem mais bonito do que eu. O que é sempre bastante animador.

O problema maior de Jay Kelly não é a crise. É quem a vive. Clooney, aos 64, exibe a serenidade de quem descobriu o truque supremo do envelhecimento: os óculos escuros. Ele diz que são para esconder olheiras. Suspeito que sejam para esconder o segredo da imortalidade. Porque é fácil falar da idade quando se tem aquele cabelo grisalho cinematográfico, aquela postura de estatuto universal e aquela quinta em França onde a normalidade deve ser gourmet e filhos com 8 anos de idade. Já eu tenho olheiras que não são glamour, são testemunho. E um joelho que estala sempre que penso em subir escadas. Valem-me as aulas de Pilates para fazer alongamentos. Clooney diz em entrevistas que está “demasiado velho para se importar”. Digo o mesmo, mas ninguém acha sexy. Quando Clooney brinca com as partes do corpo que mudam, toda a gente ri. Quando digo “o meu corpo está a mudar”, alguém sugere logo magnésio, fisioterapia, um nutricionista — cuidado com o glúten e não comas pão — e um reumatologista de confiança. Já me esquecia da minha cardiologista. O envelhecimento é democrático, mas a estética não.

No filme, o ator Jay Kelly revisita escolhas, erros, ex-amores, carreiras e fantasmas. Eu revisito consultas, relatórios, análises clínicas e o eterno drama de tentar apertar os atacadores sem precisar de recuperar fôlego e sentir dificuldade em baixar-me. Ele faz uma viagem interior profunda; eu faço uma viagem exterior curta: casa, farmácia, cardiologista e volta devagarinho porque os joelhos ficaram a pensar no assunto. Jay Kelly fala de legado. Eu falo de lombalgias. E não deixa de ser irónico que o cinema, quando trata do envelhecimento, o faça com a Toscana ao fundo e luz dourada. A minha crise tem luz branca de consultório e música ambiente instrumental. Mas há ali algo verdadeiro no filme: a constatação de que já não temos tempo infinito. Clooney conta que, aos 60, disse à mulher, Amal, bastante mais nova do que ele, que em 25 anos terá para lá de 85. Fiz a mesma conta e precisei de me sentar. Não por emoção; por tonturas e suores frios. A certa altura, o filme propõe uma ideia desconcertante: não é o trabalho que define o fim da linha, é o tempo que deixamos de dar aos outros. Clooney diz que ninguém chega ao leito de morte a pensar “devia ter trabalhado mais”. Aos 60, percebemos isso. Passámos décadas a correr atrás de qualquer coisa — carreira, estatuto, aplauso, relevância — e agora damos por nós a correr atrás de outra coisa mais simples: ar. E companhia. E alguém que nos diga “calma, estás vivo, senta-te”. O filme, mesmo sem dizer, lembra uma verdade cruel: há mais passado do que futuro. E isso, convenhamos, não é um pensamento para colocar no Instagram ou no Facebook. Mas também lembra outra coisa: o futuro que sobra pode ser o melhor, se pararmos de fingir que ainda temos 30. Clooney aceitou. Eu estou em fase de beta test.

Há uma dimensão particular em Jay Kelly que mexe certamente connosco: a amizade. Sandler surge como o agente do ator, mas sobretudo como aquele amigo silencioso, meio cansado, meio triste, que nos sabe ouvir, que nos segura quando tudo abana. Aos 20 queremos amigos para aventuras. Aos 40 queremos amigos para jantares. Aos 60 queremos bons amigos — as companheiras ou companheiros certos, porque os filhos estão no tempo deles, a partir para a vida, e vêm aí os netos — para nos aparar quando o mundo decide sacudir-nos. E há um conforto enorme em ver dois homens da nossa geração — sim, Clooney é da nossa geração, deixem-me sonhar — a admitir que não têm tudo resolvido. Que falharam, magoaram, erraram, perderam. Que não são deuses. Clooney sempre recusou o pedestal e talvez seja por isso que continua lá em cima. Tenta ser normal, diz ele e é verdade, posso testemunhá-lo porque já falei com ele. Também tento, mas suspeito que ser normal aos 60 é uma ilusão: ninguém se sente normal quando passa mais tempo a comparar seguros de saúde ou a contar os dias para a reforma — que a partir de 2027, vai para 66 anos e 11 meses — do que a planear férias.

E depois há as viagens pela Europa. Clooney em Veneza era quase pornográfico. Um barco no Grande Canal ou a chegar ao cais do Hotel Excelsior, telemóveis ao alto, Clooney a acenar como se a vida fosse um travelling eterno. Mas, mesmo assim, apanhou uma sinusite, que esteve quase para o impedir de ter ido à passadeira vermelha. Eu, no Lido de Veneza, como sempre estava igual: apanhei um vaporetto, acenei aos telemóveis à volta. Só que ninguém me filmou. Só que ninguém gritou o meu nome. Só que ninguém sabia quem eu era. Detalhes. Ele encontra glamour e reflexão; eu encontro dores lombares. Ele descobre prioridades novas; eu descubro que tenho de comprar palmilhas para os sapatos, por causa das cãibras na planta dos pés.

Mas a grande questão não é Clooney. Somos nós. A verdade é que, aos 60, percebemos que já não temos de provar nada a ninguém. Já não precisamos de status, likes ou medalhas. Precisamos de sossego. De tempo. De gente nossa e de alegria. E talvez por isso Clooney tenha fugido de Los Angeles para uma quinta em França. Não pela terra. Pelo silêncio. Porque, aos 60, o maior luxo é ficar quieto ou viajar. E, quando o filme nos mostra Clooney a abandonar o frenesim para escolher família, filhos, rotina simples, percebemos que é isso que todos queremos: um lugar onde ninguém nos peça para sermos extraordinários. Basta sermos.

Jay Kelly não romantiza tudo. Há arrependimentos, egos feridos, memórias que doem. E há uma pergunta latente: e se não tivermos sido assim tão brilhantes? E se tivermos falhado mais do que vencido? E se não tivermos deixado legado nenhum? A resposta, ainda bem, chega em forma de humor: não interessa. O mundo esquece tudo. Mais vale rirmos antes que ele nos esqueça. Aos 60, o humor é a última defesa contra o colapso emocional. Rimo-nos dos joelhos, da barriga, dos pneuzinhos, da memória curta, da falta de paciência. Porque, se não rimos, choramos. E chorar aos 60 dá mau jeito no maxilar.

No fim do filme, Clooney assiste a um reel da sua carreira. Eu assisto ao reel da minha: fotos antigas, amores falhados, sonhos adiados, pequenas vitórias, grandes trapalhadas. E percebo que, apesar de tudo, estou vivo. Essa é a glória possível. Clooney tem Oscars e quintas. Eu tenho consultas e histórias ainda por contar. E talvez isso baste. Porque envelhecer não é perder. É filtrar. Fica o essencial. Ficam as pessoas. Fica o riso. E, se Clooney é o “sexyagenário” oficial da humanidade, eu aceito ser suplente. Não tenho o charme dele, mas acho que tenho um bocadinho de sentido de humor e, aos 60, são praticamente a mesma coisa. E, se não dá para ser Clooney, dá pelo menos para ser feliz. E isso, meus amigos, já é meio caminho para um final digno de cinema. Mesmo que o meu seja em 2D, sem Dolby Atmos e com um intervalo para esticar as costas e as pernas.