Não chovia na manhã em que Marta Francisco foi até à casa de Mário, a uma hora de bicicleta de Panjim. Uma sorte, porque era o início da estação das monções e ela estava com vontade de pedalar para longe da capital do estado de Goa e ir estrada fora por aquela paisagem povoada de cruzes, tão diferente doutros sítios da Índia.
Uns dias antes, telefonara-lhe a combinar esse segundo encontro entre ambos e tremera ao ouvi-lo dizer que não se recordava de a ter conhecido dois anos antes. “Mas, aos 92, lembrava-se de cada pequeno aspeto da sua existência”, perceberia ela rapidamente.

“O meu pai era jornalista. Era secretário do editor do jornal Ultramar. Quando Salazar fechou o jornal depois de censurar um artigo polémico, regressámos à nossa casa ancestral em 1938”, contou-lhe o velho goês, entre tantas outras coisas, rápido a enumerar as datas mais importantes da sua vida.
Na sala de estar da casa de família onde sempre morara, uma sala espaçosa e cheia de luz natural graças a grandes janelas, Mário ia-se levantando da poltrona para lhe mostrar um livro autografado por um investigador português a quem ajudara num estudo sobre a antiga arquitetura goesa, um exemplar de um texto com a história da sua aldeia, um artigo de jornal com uma entrevista que concedera sobre o dia da libertação de Goa ou uns velhinhos Lusíadas que o seu avô usara na escola.
No final, quando Marta lhe perguntou se gostaria de adicionar alguma reflexão, Mário resumiu o ambiente, dizendo: “Tudo é nostalgia!” E riu-se brevemente, concluindo: “A história chega ao fim. A minha geração é a única capaz de se lembrar.”
A INCERTEZA DO PRESENTE
Estávamos no verão de 2023. A queda do chamado Estado Português da Índia, pressentida como o princípio do fim do último “império” colonial europeu, tinha acontecido há mais de seis décadas, mas Mário e os outros goeses que Marta Francisco andava a ouvir lembravam-se bem do antes e depois da noite de 17 para 18 de dezembro de 1961, em que a União Indiana atacou por terra, ar e mar os territórios de Goa, Damão e Diu. Para eles, tinha sido uma invasão, para os seus concidadãos hindus, uma libertação.
As suas memórias são a base da tese de mestrado em Antropologia Social e Cultural em que Marta defende que as memórias do colonialismo português influenciam as práticas quotidianas dos católicos goeses, servindo de mecanismo para lidar com as incertezas da vida numa Goa em rápida transformação. “Tem que ver com a incerteza que vivem no presente – a política está dominada pela extrema-direita e sentem-se ameaçados por causa da sua filiação religiosa. Mas sabiam que viviam em ditadura e não querem voltar a ela.”

A então futura antropóloga portuguesa começou por explorar as manifestações de nostalgia dos seus entrevistados. Com vários deles, passou muito tempo no Mr. Baker, uma cafetaria onde os católicos goeses se encontravam todos os dias, antes do almoço, a conversar em português, a beber café em vez de chai e a comer rissóis, croquetes de vaca, chops (uns deliciosos salgados de batata e carne picada) e a doce bebinca. O Mr. Baker era, no fundo, um lugar de memória (conceito proposto pelo historiador francês Pierre Nora), por isso excelente para ela fazer trabalho de campo. “Era um dos exemplos de onde a memória se constrói no presente.”
Dali, partiria a visitar outros goeses, com frequência nas suas casas em Panjim, nos arredores e mesmo em Margão, a segunda maior cidade de Goa, famosa pelas enormes mansões de estilo colonial português. E, além dos católicos, haveria de ouvir hindus que ainda sabiam palavras em português e guardavam antigos passaporte, embora sendo naturalmente críticos dos tempos coloniais.
Por fim, debruçou-se sobre as várias autobiografias escritas por goeses. A maioria deles tiveram vidas normalíssimas, analisa, mas sentiram necessidade de escrever o que lhes aconteceu no passado, coisas banais, por exemplo, sobre as festas. “É um ato de futuro”, sublinha, “que os ajuda a ganhar certeza em relação ao passado”.
AS MESMAS EMOÇÕES
Nada disto é chato, hermético nem académico, como se percebe ao espreitar o seu site (martafrancisco.org) e mais ainda ao ver a exposição L(ea)iving the Past, patente até dia 7, na Casa do Comum, em Lisboa.
Entre fotografias, registos de som e vídeos, instalados numa salinha junto à sala de cinema dessa casa para a cultura situada no Bairro Alto, Marta oferece-nos um olhar contemporâneo sobre como a memória colonial se manifesta no presente. “Seria uma pena deixar este material enterrado num disco rígido”, já tínhamos lido no seu site.
L(ea)iving the Past é assumidamente um projeto sobre memória, em que a antropóloga enfrenta a sua própria nostalgia por um lugar que mal conhecia.
Em 2021, a sua primeira vez em Goa não era a sua primeira vez na Índia. Tinha-se estreado dois anos antes, a dar aulas de Inglês como voluntária em Chennai, cidade que até há 20 anos conhecíamos como Madras (ou Madrasta, para os portugueses), na região do golfo de Bengala. Fazer uma grande viagem estava nos seus projetos desde que chegara a Lisboa, vinda de Castelo Branco.

Acabada da se licenciar em Ciência Política e Relações Internacionais, aterrara em Pangim em pleno confinamento, para fazer um estágio profissional no Consulado de Portugal em Goa e foi o então cônsul-geral de Portugal em Goa, António Chrystêllo Tavares, quem lhe sugeriu ouvir goeses católicos do tempo colonial.
“Gostei logo muito de Goa”, recorda. “Nunca senti choque cultural, nem nessa primeira vez. Precisamos todos das mesmas coisas, as emoções são as mesmas. Nunca senti: ‘Isto é tão diferente de Portugal.’”
Durante esses primeiros contactos que foi estabelecendo ao longo de 2021, viu-se numa posição quase diplomática, como se estivesse em representação de Portugal. Pensou, então, que também tinha de ouvir hindus. E foi nessa altura que começou a gravar as entrevistas, já na ideia de estudar Antropologia, mais especificamente o sub-ramo da Antropologia Visual, em que se usam imagens para a investigação e para a apresentação dos resultados finais. Um dos seus objetivos era sair da bolha académica.
A RUÍNA DE UM PASSADO
De início, pensou documentar e compreender como aquela geração – agora com 80 e 90 anos – vivia o quotidiano: como iam à escola, o que estudavam, o que comiam ou como passavam os seus tempos livres. Mas, à medida que avançava na pesquisa, o seu trabalho começou a parecer-lhe fútil, “talvez até colonial em si”, diz, “como se estivesse inconscientemente a ser impulsionada por aquilo a que Bissell chama ‘nostalgia não reconhecida’”, que é a tendência dentro da Antropologia para “resgatar mundos inteiros dos estragos do tempo, para dar sentido a formas sociais que estão a desaparecer rapidamente”.
O regresso, em 2023, seria mais curto no tempo (três meses), mas ganhara entretanto um outro olhar e o apoio do seu namorado, o goês Yash Sawant, realizador e diretor de fotografia. São, aliás, suas muitas das imagens que ilustram este artigo.
Enquanto andava a fazer trabalho de campo, Marta foi partilhando no Instagram fotografias e descrições que nos levam até uma Goa onde ainda se vai falando português e em que a arquitetura lembra outros tempos.

L(ea)iving the Past
Até domingo, 7 de dezembro, há fotografias, registos de som e vídeos para ver e ouvir numa salinha da Casa do Comum
R. da Rosa, 285, Lisboa, qua-dom 15h
“É uma casa portuguesa, com certeza”, comenta numa visita a Camorlim (também conhecida por Ambora), uma aldeia do distrito de Salcete, situada a apenas dez quilómetros de Margão, a quase 30 da capital do estado, Panaji, e a 45 de Mapusa, uma cidade que se anima particularmente à sexta-feira, graças ao seu concorrido mercado semanal.
“As casas indo-portuguesas têm madrepérolas nas janelas para que a luz se difunda com toda a intensidade no seu interior. Diria que não é necessário, já que o tempo criou o hábito de estas permanecerem sempre abertas. De dia e, às vezes, de noite. Vê-se o interior e ninguém se importa com os mosquitos”, escreve. “O clima, a falta de dinheiro e a imigração levam à ruína de um passado por elas contado. Aquelas que ainda são habitadas alojam famílias inteiras, geração atrás de geração. São poucas. A regra é que os telhados desabem, que se roubem as madrepérolas ou que se ocupem as terras de quem já vive longe. Desapoiados por um governo de extrema-direita que, em vez de imigrantes, molda o discurso em torno da religião, quem quer proteger Goa não encontra maneira.”
E, nós, ao vermos uma casa indo-portuguesa que já foi vermelha, entretanto arruinada e rodeada de vegetação, é como se também estivéssemos com ela em Salcete, a ler uma lápide que atesta que a família Peixoto viveu na vizinhança. Quase 64 anos depois da libertação de Goa, vale a pena acompanhar este exercício de memória que tanto nos diz sobre o nosso passado. Com ou sem nostalgia.