Quando George Orwell escreveu 1984, o mesmo ficcionou uma comunidade à qual era exibido um programa televisivo intitulado Dois Minutos de Ódio. A ideia fundamental era a de criar momentos propagandísticos em que se exibiam os inimigos do Partido, fomentando a raiva coletiva e canalizando-a para uma entidade externa. A convicção da existência de um terceiro responsável pelos males próprios fomentava de forma eficaz o desprezo pelos supostos opositores, ao mesmo tempo que cultivava o crescimento de um sentimento de pertença ao grupo. No fundo, o que Orwell pretende destacar é o quanto a necessidade de um inimigo externo consubstancia uma ferramenta essencial para o controlo político e social das populações.
Apesar de escrita na década de 40 do século XX, esta ideia não é nova. Já no século XVI, Maquiavel, em O Príncipe, escrevia que os governantes se tornam grandes quando superam as dificuldades e as oposições que lhes são feitas, pelo que a sua maior fortuna é que lhe apareçam inimigos e que estes se movam contra ele. Nas palavras lapidares de Hannah Arendt, “o maior perigo da manipulação moderna dos factos está na possibilidade da mentira completa”.
A este propósito, assistiu-se esta semana a mais um episódio de ataques sem precedentes ao poder judicial em países que constituem, historicamente, esteios da democracia, do Estado de Direito e dos Direitos Humanos. Na verdade, começam a ser tantos os exemplos em que líderes políticos de diversas latitudes optam por justificar determinados acontecimentos atirando responsabilidades e apontando interesses obscuros ao judiciário que, na verdade, estamos em crer que as comunidades mais moderadas e ponderadas não deixarão de começar a sentir o desconforto da manipulação.
Esta semana, na sequência da sentença proferida pelo Tribunal Correcional de Paris que condenou Marine Le Pen por desvio de fundos públicos em penas de multa e de prisão, em parte, efetiva, bem como na pena de inelegibilidade por cinco anos, com execução imediata, logo vozes se levantaram no sentido da constatação de uma Justiça politizada que mina a democracia. Le Pen foi até mais longe afirmando que uma “bomba nuclear” havia sido lançada pelo sistema judicial, a quem acusa de lhe terem “roubado” as eleições presidenciais, o que constitui um verdadeiro escândalo democrático.
No dia em que quisermos viver num mundo em que as regras basilares não sejam estas, em que a lei aprovada pelos representantes do povo e aplicada pelos tribunais de forma independente apenas tenha como destinatários certos cidadãos e não outros, ou em que o poder se concentre, sem quaisquer outros pontos de equilíbrio, nas mãos de apenas um dos pilares do Estado, podemos chamar-lhe o que quisermos, mas já não estaremos mais a viver em democracia
Simples e eficaz. Os responsáveis por todos os males estão encontrados. Os juízes têm poder a mais e o Povo é o principal prejudicado porque não pode escolher em quem quer votar. Tiremos então dois minutos para vociferar contra esses inimigos da democracia e, já agora, convoquemos manifestações, bem como o apoio de alguns reconhecidos “democratas” da cena internacional para darem eco à nossa indignação.
Convém puxar um pouco a fita da história para trás. O caso em apreço reporta-se a uma investigação criminal iniciada em 2015, pelo então presidente do Parlamento Europeu, Martin Schulz, que o encaminhou para o Organismo Europeu de Luta Antifraude (OLAF) e que consiste num organismo criado para proteger os interesses financeiros da União Europeia (UE). Posteriormente, o tribunal considerou provado que cerca de 2,9 milhões de euros de fundos públicos europeus foram desviados pela Frente Nacional durante mais de onze anos, entre 2004 e 2016, tendo sido usados para remunerar assistentes parlamentares de deputados europeus que, na realidade, trabalhavam para o partido.
Esta, como a generalidade das decisões judiciais, é passível de recurso. Contudo, a lei francesa prevê que, no que se refere à pena de inelegibilidade, o recurso não tenha efeito suspensivo, o que determina que a mesma passe a vigorar de imediato até que o tribunal de recurso decida se a mantém ou se a revoga. Do mesmo modo, esta como outras leis não foram elaboradas e aprovadas pelo poder judicial que as aplica, mas pelo poder legislativo francês. De resto, em tempos, a própria visada defendeu publicamente a inelegibilidade definitiva, entre outros, para casos de corrupção, fraude fiscal ou desvio de fundos públicos, tendo inscrito a defesa de tal ideia no respetivo programa eleitoral.
Não é possível defender-se a democracia só na parte que nos interessa. A democracia é um bloco incindível. Um sistema que só em parte é democrático, passa a ser coisa distinta. Aceitar a democracia é querer conviver numa organização social em que os poderes legislativo, executivo e judicial se encontram em pé de igualdade na arquitetura do Estado, atuando separadamente. É perceber que ninguém pode ficar imune à aplicação das leis que o Parlamento aprova e que os tribunais aplicam, sejam eles figuras mediáticas ou cidadãos anónimos. É conviver numa estrutura constitucional em que são conferidos direitos aos cidadãos, em que esses direitos podem entrar em colisão e em que o sistema tem o dever de ponderar qual dos direitos deve prevalecer. É perceber que estamos perante uma estrutura em que as decisões judiciais têm que ponderar e decidir sobre interesses conflituantes, mas em que aquelas são recorríveis, corrigíveis ou alteráveis nos termos exatos em que a lei definir. E é, sobretudo, um sistema em que a Justiça jamais pode ser feita pelas próprias mãos.
Nesta sequência e na sequência de ameaças feitas aos juízes, o Conselho Superior da Magistratura Francês veio manifestar preocupação face às “reações violentas suscitadas pela decisão proferida”, sublinhando que “essas reações são suscetíveis de colocar gravemente em causa a independência da autoridade judicial, que é um dos pilares do Estado de direito e da qual o Conselho Superior da Magistratura é o garante constitucional”. Aliás, num verdadeiro exercício de defesa democrática, aquele Conselho Superior explica que a preservação da independência judicial exige que os debates judiciais decorram em clima sereno, sendo que as ameaças dirigidas pessoalmente aos magistrados responsáveis são inadmissíveis numa sociedade democrática. Mais explica que as penas aplicadas pelos tribunais são as que constam da lei, aprovadas pela representação nacional, e que o respeito pelo princípio da legalidade é assegurado pelo exercício dos meios de recurso.
No dia em que quisermos viver num mundo em que as regras basilares não sejam estas, em que a lei aprovada pelos representantes do povo e aplicada pelos tribunais de forma independente apenas tenha como destinatários certos cidadãos e não outros, ou em que o poder se concentre, sem quaisquer outros pontos de equilíbrio, nas mãos de apenas um dos pilares do Estado, podemos chamar-lhe o que quisermos, mas já não estaremos mais a viver em democracia. A democracia não é vivência seletiva em torno das conveniências de setores da sociedade, mas antes um compromisso coletivo que só se mantém intacto quando aceite em bloco.
Sabemos que à nossa volta existe perigo quando se proclama aos sete ventos a existência de um inimigo externo. E se esse inimigo fictício representar um poder independente, constitucionalmente encarregue de dizer o direito e de dirimir os conflitos, como é o caso dos tribunais, então sabemos que o núcleo do Estado de Direito está já sob ameaça direta, remetendo-nos diretamente para uma frase que, por estes dias, também tem circulado pela internet: Make Orwell Fiction Again.
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