Ignorando-o, alheios à passagem da data. Recusando as cumplicidades dos patriotismos nostálgicos, a comemoração desprovida de sentido de uma data biográfica irrelevante, a distração do que realmente importa, aqui, agora, para nós. Não porque a história não interesse; pelo contrário, porque a História importa. Mas as comemorações históricas não são apenas, nem principalmente, uma questão de História e de historiografia. As comemorações são acima de tudo as histórias que nos contamos sobre nós próprios e o nosso mundo, e como ele veio a ser como é, estruturado pelas desigualdades de poder e de privilégio, e pela representação e o reconhecimento diferencial que condicionam desiguais oportunidades de vida e de morte, quer na nossa sociedade imediata quer globalmente. O que comemoramos diz-nos o que valorizamos e como: que vidas celebramos, que mortes lamentamos, e que vidas e que mortes esquecemos e negligenciamos.
As comemorações históricas têm também elas história. Fazem parte integrante da era da construção do Estado-Nação no século XIX, acompanham a inscrição política do espaço público monumental, a escrita de novas narrativas históricas e novas genealogias nacionais, e a nacionalização das massas ao serviço de novas ideologias e comunidades imaginadas, formatadas, todas elas, no contexto do novo imperialismo colonial. Levar a História a sério significa também historicizar o que é fazer história e pensar criticamente sobre o papel da memória coletiva e das comemorações, dos monumentos públicos e dos museus, e as histórias que eles instituem e legitimam, e as que marginalizam e silenciam. Ao contrário do que proclamam os novos cruzados da velha História nacionalista, isto não é uma questão de wokeness; é, isso sim, questão de desaprender a ideologia que passa por História, dando voz a uma visão mais plural e por isso mesmo mais rigorosa e verdadeira do passado, e com ela, a uma maior literacia histórica e a uma cidadania mais crítica, que melhor espelha o Portugal de hoje, e a mais justa, democrática e inclusiva sociedade que aspiramos construir.
O ano de 1998 assistiu a importantes avanços na compreensão histórica, quer de Vasco da Gama, biograficamente, quer das suas viagens marítimas e do seu enquadramento e impacto histórico à escala de uma história do mundo e suas múltiplas perspetivas. Historiograficamente, as comemorações foram marcadas sobretudo pela viragem reflexiva da disciplina, à época muito marcada pela voga dos estudos sobre memória e património e da história da História.
O mundo de 2024 não é o mundo de 1998. A euforia utópica de uma nova Ordem Mundial pós-Guerra Fria jaz soterrada sob as cinzas de um quarto de século da Guerra contra o Terror, da viragem securitária dos Estados liberais, incluindo as questões da identidade cultural, e da voragem depredatória do neoliberalismo, exploradas para seu benefício eleitoral pelos nacionalismos populistas e as extremas-direitas ressurgentes. Em lugar de ajudar a assumir coletivamente a complexidade e a natureza estrutural e histórica dos problemas e desafios reais das nossas sociedades e do planeta, para melhor compreender os movimentos migratórios globais, e que não há paz nem prosperidade sem justiça, Trump e os seus epígonos, incluindo os de trazer por casa, só nos oferecem a distração das guerras culturais e a anti-imigração como fantasia do retomar o controlo.
Também o Portugal de 2024 não é o Portugal de 1998. A instrumentalização ideologizada da História e do seu ensino, do cânone literário, das questões de género, e a politização da multiculturalização irreversível das sociedades contemporâneas pela direita, não é um sinal da sua força, mas da sua fraqueza. Uma patética batalha de retaguarda contra os avanços de uma leitura mais crítica do mundo e das relações de poder que estrutura, o espaço representacional que nos rodeia, do património aos currículos escolares, dos media às instituições que nos governam.
Se quisermos um exemplo de uma comemoração histórica que em 2024 nos deixou lição de pedagogia para uma cidadania crítica, contribuindo para a formação da consciência histórica da sociedade portuguesa de hoje e do porvir, temo-la. A Marxa Cabral, que descendo a Avenida da Liberdade em Lisboa, em celebração do centenário do nascimento de Amílcar Cabral, lembrou que o 25 de Abril também é Cabral, que a democracia portuguesa nasceu também em África, das lutas de libertação nacionais africanas, e que o colonialismo continua vivo ainda no racismo. Houve capa da VISÃO para esta comemoração histórica? Porque não? E porque sim para Vasco da Gama?
* Professor de História Portuguesa Contemporânea no Departamento de Estudos Portugueses e Brasileiros do King’s College, Londres. Em 1998, publicou o livro O Centenário da Índia: 1898 e a Memória da Viagem de Vasco da Gama
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Comemorar o quê e para quê?
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