“A violência contra as mulheres já não se esconde. Está online. Ri-se em público. E tem fãs. O que devia chocar, diverte. O que devia ser crime, viraliza. O que devia ser punição, é conteúdo.”
Há uma violência que cresce em silêncio, mas à vista de todos. Não se ouve nos tribunais, não deixa nódoas negras, não chega à esquadra. Vive dentro de um ecrã. Respira em comentários. Propaga-se em partilhas e vídeos que se tornam virais.
É o ódio digital. E o mais assustador é que já não se esconde. Ri-se, tem público, faz likes.
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Os novos agressores já não usam força física. Usam palavras, câmaras e redes. Usam o telemóvel como arma e a internet como plateia.
São miúdos. Alguns ainda nem são adultos. Crescem a ouvir que ser homem é dominar e ser mulher é provocar. Aprendem em fóruns escondidos que o problema não é a violência, é a recusa. Que o corpo das mulheres é uma dívida, não um limite.
Chamam-se incels, um nome que parece inofensivo mas que carrega raiva. São jovens que se dizem celibatários involuntários e que culpam as mulheres por isso. Transformam a frustração em ideologia e a rejeição em discurso de ódio. Entre memes, vídeos e piadas, normalizam a ideia de que as mulheres merecem castigo.
E há quem ache que isto é exagero. Não é. Há fóruns inteiros dedicados a ensinar rapazes a controlar, a humilhar, a vingar. Há vídeos com milhões de visualizações onde se explica que elas pedem respeito mas não o merecem. Há adolescentes que acham que filmar, partilhar e expor é apenas uma brincadeira. Não é. É crime. O artigo 199º do Código Penal é claro. Divulgar imagens íntimas sem consentimento é punido com prisão até cinco anos. Mas quando o autor tem dezasseis ou dezassete anos, o sistema hesita. A lei tutelar educativa fala em reeducação, em reintegração, em proteção. Mas quem protege as vítimas? Quem apaga os vídeos? Quem limpa a vergonha de uma rapariga cuja intimidade foi vista por toda a escola?
A imaturidade pode explicar, mas não absolve. Um miúdo que grava e partilha sabe o que faz. Sabe que humilha. Sabe que destrói. E mesmo assim faz.
E quando o tribunal decide, já passou tempo demais. O vídeo já circulou. O dano já se tornou permanente. A justiça chega tarde e chega fria. E a vítima fica sozinha a tentar continuar uma vida que nunca mais será a mesma.
Vivemos num país onde a lei é exemplar, mas a prática é tímida. Onde o crime é punido, mas o sofrimento é esquecido. Onde o sistema trata a violência digital como se fosse menos grave por não deixar sangue. Mas há feridas que o corpo não mostra.
As redes correm à velocidade da luz. A justiça move-se à velocidade do papel. Enquanto o processo anda, a dor multiplica-se em partilhas. O vídeo nunca desaparece. O insulto nunca é esquecido. E o silêncio ganha espaço.
As escolas não ensinam empatia digital. Os pais acham que são coisas de internet. O Estado continua a olhar para o lado. E as plataformas fingem que não veem. Entretanto, cresce uma geração inteira a acreditar que o respeito é opcional.
O Direito tem de acordar. Tem de reagir com firmeza e com pressa. Tem de proteger antes que destrua. Tem de punir sem hesitar. E tem de ensinar o que parece esquecido, que a dignidade não se negoceia.
A violência contra as mulheres já não se esconde. Está online. Ri-se em público. E tem fãs.
O que devia chocar, diverte. O que devia ser crime, viraliza. O que devia ser punição, é conteúdo.
Não é a violência que aumentou. É a vergonha que desapareceu. E quando a vergonha desaparece, o que vem depois já não é sociedade. É sobrevivência.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.
A encomenda ao Copilot, ferramenta da Inteligência Artificial, era simples: quero um poema romântico sobre a liberdade e a IA nos próximos anos.
A resposta chegou de pronto:
“No sopro elétrico do tempo que avança,ergue-se a promessa, frágil esperança.Circuitos sonham, frios, mas tão profundos,tecendo destinos, moldando os mundos.
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Democracia, flor de voz e escolha,dança ao vento que a tecnologia acolha.Mas quem guia o código, quem guarda a razão,quando a máquina sussurra ao coração?
Se o amor é humano, feito de imperfeição,pode a IA aprender a compaixão?Ou será que, no cálculo exato e preciso,perdemos o riso, o toque, o improviso?
Que os próximos cinquenta anos sejam luz,onde a ética, como estrela, nos conduz.Que a inteligência não roube, mas inspire,um mundo onde a liberdade nunca expire.”
Circuitos tecem destino? Perdemos “o riso, o toque, o improviso”?
Apesar do pobre versejar, segura de si, a IA não se esconde. O ChatGPT admite que em 50 anos “a tecnologia concentre o poder: Estados e megacorporações controlam dados, comunicação e decisões políticas” e a “opinião pública é gerida por sistemas de algoritmos de propaganda”.
Verdade que este é o cenário mais desfavorável que o ChatGPT admite, pois a “tendência provável” é que “as democracias formais continuem a existir, mas com forte influência tecnológica e económica”. Note-se o “forte”.
Se houvesse dúvidas sobre a ameaça que já por cá anda, estas confissões serviriam de sobreaviso.
Há dias, um apoiante de Noronha Lopes à presidência do Benfica contava a um defensor de Rui Costa que tinha estado certo da vitória, por só lhe terem chegado boas notícias, e muitas, sobre o seu apoiado. Riu-se o interlocutor: a ele só chegaram novas sobre o favoritismo de Rui Costa.
Já passaram anos suficientes para se saber que os algoritmos não mostram a verdade, exibem o que sabem que gostamos de ler. É experimentar perguntar ao Google se as facas de cerâmica são boas e ver como nos dias seguintes se multiplicam anúncios e propostas de desconto sobre estes utensílios.
Todas as novas tecnologias assustam. No Paleolítico, quando os nossos antepassados começaram a usar o fogo (a Wikipedia assegura que foi há 1,7 milhões de anos, mas não consegui confirmar nas velhas enciclopédias de papel e muitos volumes) que medo devem ter sentido daquelas chamas. A fissão nuclear, que aterrorizou o mundo em Hiroshima e Nagasaki, também é hoje essencial na medicina e na engenharia. Sabe-se: o que o conhecimento traz de novo pode ter bom ou mau uso.
O perigo acrescido da IA é que nos manipula, seleciona os dados e condiciona o pensamento. Nenhum dos anteriores avanços tecnológicos ambicionou ultrapassar a Humanidade. É este o perigo novo.
“E o mais preocupante é que, à medida que estes modelos se tornam mais fluentes, mais acessíveis e mais integrados nos nossos hábitos quotidianos, torna-se cada vez mais improvável desconfiar”, alerta Adolfo Mesquita Nunes, no seu Algoritmocracia.
E quanto mais se usam, mais dados obtêm, alimentando-se vorazmente. Como a mitológica Hidra, por cada cabeça cortada, crescem duas.
Pior do que estar mal informado é ser enganado. Acreditar na verdade única quase sempre leva à maior das mentiras.
“A mentira já não gera vergonha: gera cliques, partilhas, convites para programas. O que antes destruía reputações, agora rende dividendos políticos”, escreveu Mesquita Nunes. Como diz, a informação sempre teve viés. A diferença – grande – é que sabíamos de onde vinha o enviesamento e sabíamos onde procurar o contraponto. Sabíamos quem responsabilizar e podíamos fazê-lo. Agora desconhecemos o que está por detrás do ecrã juntando letras e criando ilusões.
A questão não é proibir telemóveis, é ensinar a usá-los, é explicar truques e técnicas que nos defendam das artimanhas. É fazer destas matérias verdadeiras e exigentes áreas de ensino
Daniel Innerarity, em O Novo Espaço Público, já em 2010, dizia que “sem a adequada representação, isto é, sem o trabalho de mediação institucional [de jornalistas, entre outros] que concretiza e integra o diverso num espaço público, a sociedade encontra grandes dificuldades para se ver, para decifrar e tornar operativa a multiplicidade”.
O problema que os algoritmos trouxeram é que, “como em tantas coisas, também à política se aplica o aviso de que a profusão de dados não substitui a necessidade de formar uma ideia geral e de se organizar coerentemente”, reforça o mesmo autor. E o algoritmo dá-nos sempre mais do mesmo.
Daqui nascem bolhas, discute-se e lê-se sobre o que se concorda, estreita-se o conhecimento, conversa-se em pequenas comunidades que se autoalimentam. Como o apoiante de Noronha Lopes…
Mesquita Nunes propõe a regulação dos algoritmos. O problema da regulação é que, por norma, quando é aceite, já minou o terreno. Vejam-se os tratados para o desarmamento nuclear. Quando conseguiram fixar uma meta, já havia ogivas mais do que suficientes para destruir toda a vida humana.
Karen Hao, uma das pioneiras da IA e agora feroz adversária das grandes tecnológicas, em Empire of AI, veio alertar para que “a forma de dissolver o império [das grandes tecnológicas] exige uma redistribuição dos seus poderes”, através da criação de uma rede de investigadores independentes das corporações.
Agora, “qualquer gigante tecnológico está na corrida para deixar os adversários fora de prova, em prol de um novo desenvolvimento da IA”. Karen Hao quer dividir, para reinar.
Yuval Noah Harari, sem deixar de parte as questões políticas e cívicas, alerta em Nexus que “IA e automação serão um desafio ainda maior para os países em desenvolvimento”. Sem capacidade para entrarem na corrida, vão ver os produtos que tradicionalmente fabricavam passarem a ser produzidos por autómatos nos países em que são consumidos. A mão de obra barata daqueles países será mais cara do que os robots. “O que lhes acontecerá quando for mais barato produzir têxteis na Europa?”, interroga.
Mesquita Nunes não se fica pela necessidade de regular, como a Europa tem tibiamente tentado. Ele aborda a questão da educação e do ensino das novas gerações: “A primeira condição é simples: reconhecer que existe. Não como um detalhe técnico, não como uma curiosidade de especialistas, mas como um problema central para as democracias liberais.”
Voltemos às previsões do Copilot: daqui por 50 anos, “a IA não será apenas uma ferramenta tecnológica; será um fator estruturante da política global. Sem governança robusta e cooperação internacional, os riscos de erosão democrática são elevados. Por outro lado, se bem regulada, a IA pode ser um catalisador para sistemas mais transparentes, inclusivos e resilientes”. Fica o alerta. Alguém acredita que esta seja uma bandeira dos que influenciam a sociedade?
Harari, que não dá tréguas à IA, nas suas 21 Lições Para o Século XXI, defende a teoria dos quatro C, com origem em alguns pedagogos: pensamento crítico, comunicação, colaboração e criatividade. “As escolas devem dar menos atenção às aptidões técnicas e colocar a ênfase nas aptidões de vida polivalente. Acima de tudo estará a capacidade de lidar com a mudança.”
Eis-nos chegados ao que dificilmente se fará: perceber que, mais do que ensinar que um ácido e uma base dão um sal e água, ou mesmo quem era o pai de D. Sancho I, o núcleo do conhecimento terá de caminhar para o ensino das novas tecnologias, dos seus proveitos e dos seus perigos. A questão não é proibir telemóveis, é ensinar a usá-los, é explicar truques e técnicas que nos defendam das artimanhas. É fazer destas matérias verdadeiras e exigentes áreas de ensino.
Há coisas simples de explicar: numa fotografia gerada pela IA é usual que as sombras não batam certo, assim como a iluminação dos objetos. Ensinar a ser crítico, com a importância e o empenho com que se ensina a ler.
Ou corremos o risco de termos académicos a gritar que vem aí o lobo, quando já está no meio do rebanho e só não queremos vê-lo.
Chegamos sempre tarde.
Há qualquer coisa de tragicamente cómico numa sala de cinema vazia. É a imagem de um País que vai trocando cada vez mais o ecrã grande pelo pequeno, o ritual pela pressa e o bilhete pelo login, o cinema pelas séries de televisão. Desde janeiro, Portugal perdeu 37 ecrãs e mais nove estão prestes a apagar-se: 46 no total. Maia, Viseu, Tavira, Guia, Seixal, Funchal, Gaia. Cada uma destas cidades perdeu mais do que salas, perdeu, seja como for, um ponto de encontro, um pedaço de vida coletiva, mesmo que relativa.
O Governo acordou tarde e a más horas e anunciou um “grupo de trabalho” para estudar a crise da exibição cinematográfica. Na prática, trata-se de uma espécie de terapia de casal entre os exibidores e distribuidores e os espectadores, entre o Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA) e o Ministério da Cultura, agora com a pasta Juventude e Desporto pelo meio, talvez porque ver e exibir cinema em Portugal já é, de facto, um desporto de resistência.
A ministra Margarida Balseiro Lopes garantiu que “a desafetação de salas está no topo das prioridades”. O problema é que, em política, o topo das prioridades costuma ser o fim da lista das soluções. É o mesmo que dizer que não é uma prioridade imediata.
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Não é de agora que a exibição de cinema em Portugal vive entre o desalento e o déjà-vu. As grandes cadeias – NOS, UCI, Cineplace – abandonam as cidades médias, e os centros comerciais, outrora templos da cultura pop e do consumo, preferem agora lojas de roupa, hamburguerias e praças de alimentação.
A equação “shopping + cinema + pipocas” esgotou-se. A pandemia deu o golpe final, o streaming ocupou o trono e o público aprendeu a ficar em casa, com ecrãs 4K, som surround e a Netflix a perguntar: “Ainda está aí?” Está, claro. Já não sai para ir ao cinema.
E quando se sai, exige-se mais. Já não se toleram projeções baças a meio gás; quer-se som calibrado, cadeiras limpas, legendas legíveis e uma sala sem cheiro de manteiga sintética das pipocas. Espera-se sentir que a sala foi feita para os espectadores e não apenas para vender entretenimento, pipocas e refrigerantes a oito euros o balde.
Os espectadores querem ser surpreendidos: ciclos, clássicos, filmes portugueses, estreias discretas que os levem a descobrir o inesperado. Querem que a ida ao cinema volte a ser um acontecimento, e não um passatempo.
Os exibidores falam de “experiência” como quem repete um slogan gasto. Experiência? Não é pôr música antes do filme ou encher a plateia com trailers de super-heróis durante 20 minutos. É tratar o espectador como alguém que merece respeito e isso começa na curadoria. O que funciona em Almada não tem de funcionar em Vila Real. Mas em Portugal tudo é igual: os mesmos filmes, à mesma hora, nos mesmos shoppings. É o copy-paste cultural a que chamam “rede de exibição”.
A pergunta certa não é se o País precisa de mais salas. Precisa, isso sim, de melhores salas. A resposta é simples: sim. Salas menores, bem geridas, com programação cuidada, preços acessíveis e uma boa dose de paixão. Espaços que conheçam o seu público e se adaptem a ele. Salas que saibam que o cinema não é uma linha de montagem, mas uma experiência coletiva. E que percebam que o verdadeiro inimigo não é o sofá nem o streaming, mas a indiferença dos grandes exibidores.
O público não é ingénuo. Percebe quando está a ser maltratado. Quando paga caro para ver mal, ouvir pior e ainda levar com um quarto de hora de publicidade. Quando não se sente respeitado, responde com silêncio e com o streaming, porque é mais cómodo e, por vezes, é melhor ficar em casa. O sofá ganha porque o cinema desistiu de lutar. E o sofá é um adversário temível: não fala alto, não mastiga pipocas e não atende o telemóvel a meio do filme.
O Estado, por sua vez, assiste à tragédia em poltrona VIP. O ICA fala em “estratégias” e “planos”, mas há 174 concelhos sem uma única sessão regular de cinema. Chama-se a isso desertificação cultural e não é uma metáfora. Há câmaras que investem milhões em rotundas luminosas e em equipamentos culturais que são autênticos elefantes brancos, mas que não gastam um euro em projetores digitais decentes nem em técnicos que saibam operá-los. Depois espantam-se por as pessoas já nem saberem o que é ver um filme numa sala.
Ainda assim, há resistência. Além de Lisboa, Porto e Coimbra, noutras cidades do País sobrevivem pequenas salas independentes, auditórios municipais e cineclubes teimosos que continuam a projetar o que importa, mesmo sem lucro. São as últimas trincheiras do cinema enquanto espaço vivo, de encontro e de discussão. A verdadeira resistência não é ideológica; é logística. É conseguir projetar um filme quando tudo à volta parece querer apagar a luz.
O cinema não morre porque o público o abandona. Morre quando as suas salas se tornam irrelevantes. Quando a ida ao cinema deixa de ser um evento e passa a ser um gesto inútil. Quando o “grande ecrã” já não é maior do que a indiferença coletiva.
Portugal não precisa de mais salas de cinema. Precisa de melhores salas, de curadores curiosos e exigentes, técnicos respeitados e espectadores tratados como cúmplices. Precisa de menos parques de diversões e mais templos de atenção. De lugares onde o cinema ainda tenha alma e não apenas wi-fi, blockbusters e super-heróis reciclados.
Enquanto isso não acontece, o sofá e o streaming continuarão a ganhar. Não porque sejam os inimigos das salas, mas porque são a alternativa mais confortável a um cinema que se esqueceu de ser cinema. E o mais triste é isto: quando a última sala fechar, não haverá ninguém a bater palmas. Apenas o reflexo azul de um televisor a perguntar, com frieza pixelada: “Ainda está aí?”
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.
A banda alemã celebra quatro décadas como referência maior do power metal com uma digressão especial aniversário. Desde 1984, os Helloween construíram uma carreira lendária, com 15 álbuns, milhões de discos vendidos e clássicos como Keeper of the Seven Keys, agora condensada neste espetáculo, no qual prometem revisitar momentos marcantes, revelar surpresas e reafirmar o estatuto que os tornou ícones do heavy metal.
A digressão passou pelo Campo Pequeno na passada quinta-feira.
Enquanto líderes políticos discutem a necessidade de travar o colapso climático, os processos internos da conferência expõem contradições profundas: decisões pouco ancoradas na ciência, prioridades desalinhadas com as recomendações internacionais e uma organização logística que limita a participação plena de quem está no terreno.
Um dos episódios mais evidentes aconteceu quando o órgão subsidiário de consulta científica e técnica, presidido pelos Emirados Árabes Unidos, voltou a defender a inclusão dos combustíveis fósseis nos textos negociais, contrariando décadas de alertas do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC) e colocando em causa a meta de 1,5ºC — considerada pela comunidade científica como o limite vital para evitar impactos catastróficos e assente como meta no Acordo de Paris assinado por 195 países em 2015. Tudo isto foi apresentado sob o pretexto de “defender as populações locais”, promover “decisões de baixo para cima” e proteger “direitos humanos”. Na prática, porém, as principais conclusões sustentam uma só prioridade: manter o fluxo financeiro ligado aos combustíveis fósseis. Para quem acompanha estas reuniões há anos, não é surpresa que grupos com forte dependência petrolífera tentem influenciar o texto final. Mas o contraste entre a retórica humanitária e a insistência nos combustíveis fósseis tornou-se especialmente evidente neste arranque de conferência — deixando claro que nem todas as mesas técnicas são, de facto, orientadas pela ciência.
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A falta de coerência entre discurso e prática também se revelou no funcionamento da conferência. Já no dia da abertura, eventos fundamentais — sobretudo os ligados a bancos, financiamento climático e gestão de fundos — decorreram enquanto milhares de participantes estavam retidos em filas gigantescas de credenciação. Muitos perderam sessões consideradas essenciais para a transparência das negociações. No dia seguinte, a situação repetiu-se à entrada da Blue Zone, obrigando à abertura improvisada de portas suplentes. Pouco depois, uma chuva torrencial inundou a Green Zone, expondo fragilidades na infraestrutura e forçando cancelamentos e rearranjos de última hora. O resultado é claro: decisões importantes são tomadas com salas meio vazias, não pela falta de interesse, mas porque a organização não permite que a maioria chegue a tempo, saiba onde ir ou consiga circular entre espaços num recinto complexo e mal sinalizado.
O movimento Sem Terra avançou até à porta da Blue Zone, protestando contra a proteção institucional dada ao agronegócio dentro da COP, e parte do grupo acabou por ultrapassar o perímetro de segurança, denunciando a incoerência de negociar o futuro do clima enquanto se protege um dos setores mais responsáveis pela desflorestação da Amazónia e pelas emissões no Brasil. Poucas horas depois, foi a vez dos índios Tapajó entrarem pela conferência adentro, exigindo que a Amazónia seja vista não como “mercadoria”, mas como território vivo, habitado e ameaçado por decisões tomadas em gabinetes longe da realidade da floresta. Ambos os episódios expõem uma tensão estrutural: a distância entre a diplomacia climática e quem vive a crise todos os dias.
A oferta de alimentação dentro do recinto da COP também se tornou tema de debate e motivo de protesto: num espaço onde se discute a urgência de reduzir emissões e proteger a Amazónia, o principal restaurante serve refeições centradas na carne, uma das indústrias que mais contribui para a destruição das florestas e da biodiversidade e para o aquecimento global. Além de incoerente, a opção revelou-se impraticável: os preços elevados e as filas longas tornam a refeição um luxo temporizado. Muitos participantes são obrigados a escolher entre comer ou chegar a tempo das sessões.
Os relatos a partir de Belém fazem um retrato claro: a COP30 é uma conferência que proclama ciência e justiça climática, mas que começa por relativizar as metas científicas, que diz defender direitos humanos, mas empurra povos indígenas para fora das decisões. Os sinais dos primeiros dias deixam um alerta difícil de ignorar: sem coerência interna, sem ciência no centro e sem organização capaz de garantir participação plena, qualquer avanço político corre o risco de ser apenas discursivo. A Amazónia merece mais — e o clima exige muito mais.
Imagens: Abel Rodrigues, Pedro Moura e Sílvia Moutinho | Direção Editorial: Joana Guerra Tadeu | Produção em parceria com Don’t Skip Humanity
As Pringles são batatas? São deliciosas, bonitas e viciantes como todos os alimentos ultraprocessados. É, de facto, difícil resistir. E, como diz o slogan de 25 anos, “Once you pop, you can’t stop” (qualquer coisa como… uma vez aberto, não consegues parar). E, no entanto, a Procter & Gamble (P&G), a empresa que fabrica as Pringles, alegou, em tribunal, que não se tratavam de batatas. Afinal, apenas 42% da sua composição é batata, reduzida a uma massa que é depois cortada em fatias iguais. A P&G não visava esclarecer o consumidor que as Pringles são gordura, sal, açúcar e aditivos, mas evitar pagar IVA (os snacks eram isentos, as batatas estavam sujeitas a IVA).
As Pringles são um bom exemplo de como a comida ultraprocessada é engenhosamente desenhada para se tornar irresistível. Do paladar ao som, da textura à imagem, tudo é otimizado para reduzir as nossas defesas. De acordo com estudos recentes, nos Estados Unidos da América, mais de metade da dose diária de calorias é proveniente de comida ultraprocessada. Em Portugal, o valor não é tão alto, mas 34,8% da população portuguesa já é pré-obesa e 22,3% obesa. Não é uma questão estética, mas de qualidade de vida e dos enormes custos que implica para o Sistema Nacional de Saúde.
Perante os custos, o Estado promove campanhas de consciencialização, timidamente tributa alimentos açucarados e tenta regular a publicidade (em Portugal, apenas no caso de menores). Produtores promovem o discurso de que estas medidas são paternalistas, afinal, a vida privada é de cada um, e, se o indivíduo não sabe controlar-se, a culpa do excesso de peso é sua. Melhor esgrimir o argumento de que o Estado tudo quer regular e invadir a esfera da liberdade individual. Mas será assim? Há que reconhecer que somos vulneráveis a alimentos especialmente desenhados para nos darem satisfação imediata, mas sem valor nutritivo. E que o peso financeiro de tratar as doenças decorrentes de uma dieta rica em ultraprocessados recai sobre todos e não sobre quem os produz. Acreditar que a indústria se autorregula é ingénuo.
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Em 1999, os funcionários da Kraft, preocupados com o impacto dos alimentos ultraprocessados na saúde pública, tentaram promover a autorregulação e, inclusive, a Kraft, temporariamente, limitou nos seus produtos os níveis de açúcar e divulgou, nas embalagens, a quantidade total de calorias. No entanto, tais esforços não surtiram efeitos. Perante a constatação que tal afetaria os resultados financeiros, nos anos seguintes, a opacidade dos rótulos acentuou-se e o nível de açúcar e sal aumentou em todos os produtos (e não apenas nos doces).
A vida online é, como os alimentos ultraprocessados, desenhada para capturar atenção e manter o consumo ininterrupto. A comunicação online é standard, frequentemente supérflua, imediata. Uma velocidade vertiginosa, que não permite reflexão. A linguagem escrita é reduzida a contrações, anglicismos, ortografias não convencionais, que reduzem a qualidade do discurso. Nas plataformas, publicidade e propaganda confundem-se com conteúdos originais. Sem guarda, reduzimos o nosso sentido crítico e muitas vezes somos, inadvertidamente, parte da disseminação de mensagens falsas ou enganadoras.
Estamos desarmados no mundo físico e virtual, vulneráveis à tecnologia.
Reconhecermos a nossa vulnerabilidade é essencial para, individual e coletivamente, reconhecermos que sem regulação nos tornaremos uma sociedade obesa e manipulável.
PS: Em recurso, o tribunal decidiu que as Pringles eram batatas, porque o consumidor assim as percecionava. A P&G pagou 100 milhões de libras, em impostos passados. Em 2024 foram vendidos mais de 2,3 mil milhões de embalagens Pringles.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.
Olga Mariano hesita em falar. “Não quero dar mais palha a André Ventura. Ele quer usar-nos como uma escada para subir.” Mas o seu testemunho é importante. Aos 75 anos, poeta publicada, Olga confunde os últimos 27 anos da sua vida com o associativismo cigano e com a defesa da igualdade de género “para ciganos e não ciganos”. E é também por isso que o seu nome está entre as oito testemunhas indicadas pelo advogado Ricardo Sá Fernandes, na ação especial de tutela de personalidade, interposta por seis ciganos que querem obrigar Ventura a retirar os cartazes em que diz que “os ciganos devem cumprir a lei”, deixando claro que a liberdade de expressão não serve para promover a discriminação. “Como portuguesa que sou, sinto-me vandalizada na minha portugalidade. Ser cigano é uma cultura. Não admito a ninguém que deite abaixo a minha nacionalidade. A minha bandeira é a portuguesa. Dou voz a milhares de portugueses com uma cultura chamada cigana”, concede finalmente Olga.
Cartaz maldito Ação especial de tutela de personalidade chegou ao tribunal. Seis ciganos enfrentam André Ventura
Na verdade, não há muitos ciganos em Portugal. Estima-se que sejam entre 50 e 70 mil, e quem pertence à etnia que chegou a Portugal por volta de 1462 garante que não se deve falar em “comunidade cigana”, mas sim em “povo cigano”. “Não somos uma comunidade. Somos diferentes comunidades que fazem parte de um povo. É preciso conhecer”, diz Paulo Domingos, um dos autores da ação e presidente da Plataforma Nacional para os Direitos dos Ciganos. Mas voltemos a Olga Mariano para perceber como dentro deste povo há percursos e vidas diferentes, ainda que com uma cultura em comum. “Eu posso ser tudo o que eu quiser sem deixar de ser quem sou”, diz Olga, que foi a primeira mulher cigana a ter carta de condução em Portugal, ainda nos anos 1960, com o País mergulhado em ditadura e os direitos das mulheres longe de estarem garantidos.
A primeira cigana a ter carta
Olga nasceu numa família que, por ter casa própria no Alentejo, conseguiu escapar ao nomadismo forçado, incentivado por uma lei que só deixou de estar em vigor em 1985 e que decretava que a GNR devia manter uma vigilância apertada aos nómadas, leia-se ciganos, que, apesar de terem obtido a cidadania portuguesa em 1822, foram perseguidos em Portugal ao longo dos séculos. Não ser nómada permitiu a Olga Mariano, às suas duas irmãs e ao seu irmão fazerem a quarta classe. “Os meus pais sempre lutaram para que os filhos tivessem o quarto ano.” Ir além disso era economicamente impossível, mas depois de o pai deixar o Alentejo, onde era tratador de equídeos, e rumar ao Fogueteiro em busca de trabalho, Olga deu por si a ser fundamental para a família. Como foi a primeira a concluir os estudos, era a única que podia ter a carta de condução e, por isso, aquela que podia guiar a carrinha da família até às feiras em Cascais, onde vendiam nessa altura.
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Paulo Domingos, 58 anos Presidente da Plataforma Nacional para os Direitos dos Ciganos, é um dos seis autores da ação judicial para retirar os cartazes. No dia 6, encheu um auditório, em Carnide, Lisboa, para o I Congresso do Povo Cigano. O seu primeiro emprego foi como vendedor numa empresa de produtos químicos. Foto: Lucília Monteiro
“Sempre fui de trabalho”, diz a cigana que garante nunca ter visto o pai discriminar as filhas ou tratar mal a mulher. “A minha mãe, que nasceu em 1917, e o meu pai, que nasceu em 1912, nunca fizeram distinção entre homem e mulher. A minha mãe sempre acompanhou o meu pai em tudo.” Os pais casaram-se quando ambos tinham mais de 20 anos e Olga casou-se também já depois dessa idade. “Isso de que os ciganos se casam em crianças são ideias preconcebidas. Tenho um filho que se casou aos 19, outro aos 30, com uma noiva que tinha 29, e são os dois ciganos. E a minha filha casou-se com 30.” E os casamentos arranjados? “Existe aquela fábula de pedir os miúdos quando são jovens, como no tempo dos reis. Isso existe. Mas os miúdos só casam se quiserem. Casamentos arranjados não existem”, garante, dando o exemplo do neto que estava “prometido” a uma prima desde bebé, mas acabou por se casar com outra rapariga cigana, “que não tem nada a ver”.
O que a cultura condena é o namoro e Olga vê aí a explicação para muitos ciganos se juntarem ainda muito jovens. “Tenho duas tias solteiras e primas solteiras. Não somos obrigados a casar. Em 99,9%, esses casamentos jovens são porque as miúdas querem casar. Há muito choro e tristeza quando as filhas se casam mais jovens”, garante.
Enquanto esteve casada, Olga Mariano fez a vida nas feiras. “Uma vida dura, ao sol e à chuva, a montar a barraca.” E indigna-se com quem acha que essa é uma ocupação para quem foge a obrigações. “Sempre fiz os meus descontos e paguei as minhas contribuições e o espaço da banca e os artigos. Comprei a carrinha, aluguei a minha casa, depois comprei uma casa. Sempre paguei tudo, como todos os portugueses. Não é nada de mais. Diria que 50% dos ciganos têm tudo certinho. E que, entre os 50% que não têm, talvez 80% sejam crianças. Não cumprir não é coisa de ser cigano ou não cigano. É de bom ou mau carácter.”
A vida mudou há 30 anos quando o marido morreu. Na cultura cigana, a mulher, que tem direito a uma espécie de “última palavra” no casal e que – ao contrário do homem – pode pedir o divórcio por não se sentir feliz, perde estatuto social quando passa a viúva. Mas Olga não se resignou a isso. Começou aí uma vida de ativismo (é a presidente da Associação Letras Nómadas e da Agarrar Eventos) e voltou aos estudos para se formar como mediadora sociocultural e formadora. Trabalhou em escolas e na Câmara Municipal do Seixal, estudou em Estrasburgo, deu formação e é hoje trabalhadora da Junta de Freguesia da Ajuda e deputada municipal pelo PS em Almada. Diz que levou “muita pancada de todos os lados” para se afirmar, mas acredita que é hoje uma das vozes mais respeitadas no povo cigano, porque também não gosta que se diga que há uma comunidade cigana.
“Existem várias comunidades ciganas. São muito diversas, com vários meios socioeconómicos. Os ciganos só têm três pontos em comum: o luto, o casamento e as leis de apaziguamento, que servem para os homens mais velhos resolverem pequenos conflitos em comunidade.” Um dos grandes valores ciganos é o respeito pelos mais velhos, outro é a família. “Para o povo cigano, a idade é sabedoria, uma sabedoria que tem grande valor porque é vivida. E as mulheres têm um grande papel. Os maridos não fazem nada sem o aconselhamento da mulher.” Ainda assim, Olga Mariano fez da sua vida e de parte da sua poesia uma luta pela igualdade de género. “A viúva deixa de ter papel relevante na sociedade. Isso para mim não tinha lógica. Tive de me impor no meu direito de mulher. Passados estes anos, os homens já vêm pedir para eu fazer parte de projetos e reuniões. Conquistei isso para as minhas mulheres”, diz, orgulhosa.
“Andrezito tem de cumprir a lei”
Bruno Gonçalves, de 49 anos, tem sido um companheiro de luta de Olga Mariano na Associação Letras Nómadas, que se dedica a incentivar ciganos a prosseguir os estudos e já conseguiu, desde 2014, que 40 ciganos e ciganas – há sempre a preocupação da paridade – acabassem uma licenciatura e 12 fizessem o mestrado, através de um programa de bolsas. Quando começou com este projeto, Bruno só tinha o 12º ano, mas a mulher resolveu inscrevê-lo no exame de acesso ao Ensino Superior para maiores de 18 anos. Entrou no Politécnico de Coimbra e licenciou-se em Animação Socioeducativa, sem perder um ano, apesar de ter de trabalhar de dia e estudar à noite.
“Entretanto, já fiz uma pós-graduação e agora quero fazer um mestrado, mas ainda não apanhei coragem”, confessa, explicando que só as dificuldades económicas o fizeram adiar os estudos. “Sou filho de um pai analfabeto. A minha mãe estudou até ao 6º ano. O meu pai sentia muita tristeza por não poder ajudar-nos na escola. Fui voluntariamente à escola. Não havia cá RSI”, diz, notando que este ano se formou um cigano em Medicina, “com bolsa de mérito da Gulbenkian”, e que há ciganos atores – como Henrique Barbosa, protagonista do filme Entroncamento – e até “um jurista na Câmara Municipal de Coimbra, responsável pela contratação pública”. A vida das feiras é dura e “cada vez mais há famílias a apostar na escolarização como elevador social”. Mas o estigma ainda pesa.
Bruno Gonçalves, 49 anos Animador socioeducativo, trabalhou e tirou o curso universitário à noite. Na Associação Letras Nómadas, que incentiva os ciganosa prosseguir os estudos,já conseguiu, desde 2014,que 40 ciganos e ciganas concluíssem uma licenciatura.
“O anticiganismo é uma forma de racismo. Grande parte destes jovens está no mercado de trabalho, mas diria que uns 70% não podem dizer que são ciganos. Como grande parte já não tem os traços físicos, vivem numa clandestinidade étnica. Ainda ontem falei com um cigano com 40 e tal anos, que está no Exército, e só agora decidiu assumir a sua identidade”, conta Bruno, revelando que muitos jovens apagam as redes sociais quando querem encontrar um trabalho para evitar alguma publicação que os denuncie como ciganos, se o departamento de recursos humanos fizer uma pesquisa.
Segundo dados do INE de 2024, 72,6% dos ciganos fazem parte dos 20% da população com rendimentos mais baixos. A isso não deve ser alheia a discriminação no mercado de trabalho, que faz com que muitos façam vida da venda ambulante ou apenas consigam empregos através de protocolos com o IEFP, muitas vezes para Juntas de Freguesia. Bruno Gonçalves diz que o aparecimento de empresas de TVDE, como a Uber e a Bolt, veio dar outras oportunidades de trabalho, porque “o patrão é a plataforma e não discrimina”, mas há também relatos de ciganos portugueses a imigrar, por exemplo, para o Reino Unido, onde fazem trabalhos sazonais agropecuários ou ficam como trabalhadores em fábricas ou armazéns.
Bruno Gonçalves divide o País em dois quando fala do povo cigano. “No Sul as coisas são mais complicadas. Há guetos, criados por políticas de habitação horríveis. O Centro e o Norte são menos agrestes para as comunidades ciganas. Quando há guetos, as coisas são mais complicadas.” Mas, sobretudo, divide a história recente da discriminação num antes e num depois de André Ventura. “As coisas estão muito mais complicadas desde 2017.” E, para Gonçalves, isso só tem explicação no oportunismo político. “Somos perto de 70 mil. É uma comunidade muito pequenina. Espanha tem um milhão de ciganos e, por isso, o Vox não se mete muito com eles. Na Andaluzia são 8% da população, podem definir eleições”, analisa, assumindo que não teve uma hesitação em procurar a ajuda jurídica de Ricardo Sá Fernandes para interpor uma ação que obrigasse Ventura a retirar os cartazes, depois de dias a responder a chamadas e mensagens de ciganos indignados com o racismo da mensagem dos outdoors.
“O Andrezito tem de cumprir a lei. Por muito que haja um milhão e meio que votaram nele, isto não é a república das bananas. Ele tem de cumprir a lei”, afirma, indignado, consciente de que mesmo uma vitória nos tribunais não vai enterrar a discriminação nem diminuir o apoio ao Chega. “Ser anticigano vai continuar a ser popular. É o campeonato da pobreza. São os mais pobres que votam no Chega e 78% das comunidades ciganas vivem na extrema pobreza. Os ciganos vivem menos dez anos do que a média nacional. É uma competição entre pobres para ver quem não desce de divisão”, comenta.
Despertar para a política
“O Chega não é um problema nosso”, declara Paulo Domingos, 58 anos, presidente da Plataforma Nacional para os Direitos dos Ciganos e um dos seis autores da ação judicial para retirar os cartazes. “O que está em causa não é uma etnia, é a Humanidade. Hoje são os ciganos, mas amanhã podem ser as mulheres, os pobres, os judeus, os jornalistas. O que pretendemos é impor um limite moral. Não tenho nada contra André Ventura. Sou um cristão. Tenho é contra o que ele faz e diz, que é tirar a dignidade ao povo cigano”, afirma à VISÃO o homem que no dia 6 de novembro encheu um auditório em Carnide para o Primeiro Congresso do Povo Cigano em Portugal. Lá dentro havia 150 lugares sentados, mas muitos ficaram de pé e outros ainda tiveram de ficar à porta, por a lotação estar esgotada.
Paulo admite que a adesão o surpreendeu. “Achei que não ia encher a casa. Reunimo-nos em festas ou casamentos ou nas igrejas evangélicas, mas não para falar de temas políticos.” Falou durante duas horas, mas garante que no fim “falaram homens e mulheres”, num evento que tinha como propósito ajudar o povo cigano a tomar “consciência do seu papel social e político”. Apesar do objetivo, Paulo Domingos assegura que a sua plataforma não tem pretensões ligadas a partidos ou ideologias. “Não tenho uma ideologia política estruturada. A Plataforma não está agregada a nenhum partido nem pretende estar”, assegura, explicando que neste Congresso conheceu “ciganos que estão com cargos em empresas ou ligados ao Estado, com nível intelectual e formação” e que só esse encontro já pode servir de semente para uma maior intervenção social do povo cigano em Portugal no futuro. “O que nos falta é a união. Não estamos habituados culturalmente a ter esta união”, admite, defendendo uma “maior abertura à sociedade” para desconstruir mitos e ideias feitas.
Criado como “um nómada moderno, não daqueles de burro e carroça, mas que viajavam de avião e tinham os carros da moda”, passando por vários países na infância e sempre acarinhado pelos anciãos dos lugares por onde passava, Paulo Domingos não se sentou nos bancos da escola e só aprendeu a ler e a escrever já adolescente, numa altura em que lhe interessava aproximar-se de raparigas não ciganas da sua idade. “Comecei a perceber que tinha um atraso em relação a quem não era cigano, que era não saber ler. Depois, quis aprender a falar bonito. Li tudo e mais alguma coisa.” O seu percurso de vida foi atribulado, mas sempre guiado pelo valor mais importante para qualquer cigano: a liberdade.
O primeiro emprego foi como vendedor numa empresa de produtos químicos. O diretor do departamento que o contratou era o único que sabia da sua origem. O patrão, um judeu, só descobriu que Paulo era cigano quando o chamou por ser o melhor vendedor da empresa. “Aprendemos a vender no útero da mãe”, brincou. Era tão bom, que o departamento de encomendas não conseguia dar vazão às vendas angariadas por Paulo. Por isso, o patrão deu-lhe um carro para ser ele a fazer as entregas. Foi subindo na empresa, até se desinteressar. Procurava a novidade.
Quando se casou, tinha 24 anos, a mulher tinha 23 e já tinha carta de condução. Ela era de uma família de feirantes e Paulo quis experimentar essa vida. Passados uns tempos, voltou a mudar e dedicou-se à consultadoria de empresas. “O que mais gostei de fazer foi consultoria empresarial, a desenvolver produtos e serviços. Já fazia isso sem saber o nome. Era um craque na minha área. Mas também fui vendedor de automóveis e angariador de imobiliário.” A vida correu-lhe bem, fez muito dinheiro. Mas as coisas mudaram quando, há 12 anos, perdeu um filho. Entrou numa depressão profunda, não conseguia sair de casa. E a mulher teve de voltar às feiras. A forma como a comunidade cigana que o rodeava o ajudou e a conversão ao cristianismo fizeram-no começar a voltar à vida e perceber que tinha de lançar a Plataforma, na qual uma das suas filhas, Maiara Domingos (outra das autoras da queixa para a retirada dos cartazes), é vice-presidente.
“A Plataforma é um projeto nacional. Já tenho delegados regionais. E muita coisa vai mudar depois deste primeiro Congresso Cigano. Acredito verdadeiramente que este foi o princípio de algo novo. Mas este trabalho não pode ser feito só com ciganos”, argumenta. Uma das coisas que fizeram com que avançasse para a ação judicial foi, aliás, a forma como não se levantou um coro de indignação perante uma mensagem racista contra os ciganos. “Nem o poder político nem o poder judicial vieram defender a nossa honra. A liberdade de expressão não pode ser usada como arma de desumanização. O que me fez avançar foi a colocação dos cartazes e a falta de uma voz que nos defendesse.”
Ciganos que morreram por Portugal
Marcelo homenageou os ciganos heróis da restauração da independência. Governo tem estratégia de integração na gaveta
A 1 de dezembro de 2022, Marcelo Rebelo de Sousa fez algo inédito: usou o Dia da Restauração da Independência de Portugal para fazer um agradecimento histórico aos ciganos.“Ao lembrar tantos portugueses, de tantas origens, que se envolveram no movimento revolucionário, o Presidente da República quer lembrar também os portugueses de etnia cigana que, como reconheceu então o próprio rei D. João IV, deram a vida pela nossa independência nacional”, escreveu no site da Presidência. Foi a primeira homenagem pública ao “cavaleiro fidalgo” Jerónimo da Costa e a “muitos dos duzentos e cinquenta outros ciganos que serviram nas fronteiras e tombaram por Portugal”.
Este ano, Marcelo usou o Dia do Cigano, 8 de abril, para reforçar a importância da integração deste povo. Mas o Governo de Luís Montenegro deixou na gaveta a nova Estratégia Nacional para a Integração das Comunidades Ciganas, que está para consulta pública há mais de um ano.
O país venera o mito, engole o jogo e sacrifica o talento para alimentar a última epopeia de um deus cansado.
A Seleção das Quinas continua refém do último imperador de um império que já não existe e, enquanto isso, trava o futuro nos postes e nos campos de futebol. Há uma coisa que os portugueses fazem extraordinariamente bem: prolongar o que já devia ter acabado. O Império, a dívida pública, as telenovelas e, claro, Cristiano Ronaldo na Seleção Nacional. Portugal é um país que tem uma relação difícil com o “fim”. Prefere o “logo se vê”, o “mais um jogo”, o “ele ainda marca”. E enquanto esse “ele” continuar a chamar-se Cristiano Ronaldo, ninguém tem coragem de desligar a máquina.
O miúdo da Madeira que cresceu no Sporting, se fez homem em Manchester, demi-deus em Madrid, estrela global em Turim e celebridade de luxo em Riade transformou-se, com mérito, num dos maiores símbolos do País no estrangeiro. Durante anos, a pergunta “Where you from?” recebia respostas automáticas: primeiro era Figo, depois Cristiano Ronaldo. Num planeta onde poucas pessoas conheciam Portugal, muitos conhecem Cristiano e isso é, de facto, soft power puro e um orgulho nacional.
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Mas uma coisa é Portugal no mundo. Outra é Portugal num campo de futebol. E aí chegou-se àquele momento embaraçoso em que o convidado ilustre já bebeu três garrafas, ocupa o sofá todo, fala alto e — pior ainda — estraga a festa. Cristiano Ronaldo já faz mais mal do que bem à Seleção Nacional. E toda a gente sabe. Mas ninguém diz. Nem o selecionador. Nem a Federação. Nem os comentadores que tremem ao pronunciar o óbvio. Nem as instâncias internacionais que o adoram ver em campo porque isso vende direitos televisivos até no Sri Lanka. Falta coragem. Sobra veneração.
O problema tem 40 anos e uma braçadeira de capitão. Portugal vive talvez a melhor geração de talentos do futebol da sua história recente: João Neves, Vitinha, Rafael Leão, Nuno Mendes, Bernardo Silva, Palhinha, António Silva, Gonçalo Inácio, Gonçalo Ramos, entre outros. Jogadores que brilham nas melhores ligas do mundo. Mas quando vestem a camisola das quinas, o País inteiro parece reduzir-se a uma equipa de voluntários encarregada de empurrar um altar ambulante chamado CR7. E isso mina tudo.
É duro afirmar? É. Mas mais duro é ver Ronaldo arrastar-se 90 minutos, marcar um golo que qualquer avançado moderno — como Gonçalo Ramos ou o saudoso Diogo Jota — também marcaria, não defender, não pressionar, não correr, já não fintar, falhar penáltis decisivos, reclamar de tudo o que mexe e — como se viu em Dublin — acabar expulso por agressão a um adversário. A primeira expulsão ao fim de 226 jogos. Um capitão não pode cair assim, muito menos o CR7. Uma carreira inteira sem vermelhos pela Seleção…até ao dia em que corpo e nervos deixaram de acompanhar o mito.
Portugal perdeu 2-0 com a Irlanda. Não foi acidente: foi consequência. Cristiano Ronaldo não é o único culpado, mas é o símbolo de uma equipa que joga a passo porque mantém um rei que já não reina, mas insiste em sentar-se no trono. E Roberto Martínez, como antes Fernando Santos, continua a atuar como pajem.
É quase trágico perceber que a frente de ataque de Portugal se transformou, nos últimos tempos, numa réplica da frente de ataque do Al-Nassr, mesmo que João Félix fique no banco. Nunca na história uma seleção europeia estruturou a sua tática em função de uma equipa da Arábia Saudita. E, mesmo assim, o País finge surpresa quando isso não resulta. Tudo tem de passar por Ronaldo. Todas as bolas têm de ir para Ronaldo. Todas as decisões são condicionadas para servir Ronaldo. E os restantes? Os jovens que esperem.
A verdade é simples: Portugal joga para Ronaldo. E nenhuma seleção que joga para um jogador de 40 anos pode jogar bem. A Irlanda sabia disso. Defendeu com 11, correu quando tinha de correr, aproveitou os erros e marcou dois golos simples como água. Os portugueses correram mais para compensar a estátua viva lá na frente do que para construir jogo. E quando Ronaldo foi expulso… os outros respiraram melhor. Com ele fora, no domingo, o apuramento provavelmente chegará. Coincidência? Pois.
Outro traço muito português: a obsessão dos mil golos. A nação inteira parece investida na missão de ver Cristiano Ronaldo atingir a marca mítica, como se fosse obra do Estado Novo ou um desígnio nacional inscrito na Constituição. O objetivo deixou de ser ganhar jogos; passou a ser alimentar uma narrativa épica que interessa apenas ao protagonista e à sua máquina de comunicação. Faltam 47 golos. Aos 40 anos. Se for preciso sacrificar duas gerações para que ele chegue ao número redondo, sacrifica-se. Se for preciso perder jogos, perde-se. Se for preciso atrasar o futuro, atrasa-se.
O país futebolístico tornou-se uma extensão da mentoria motivacional de Cristiano Ronaldo e isso tem custos. Não é ingratidão. É lucidez. Ninguém apaga o que Cristiano Ronaldo fez. Ninguém questiona os títulos. Ninguém nega a grandeza. Mas a grandeza também é saber sair. E Ronaldo não sabe, e ninguém tem coragem de o ajudar a saber. É por isso que Portugal continua preso entre o passado glorioso e um presente sofrido.
Amo futebol? Não vem ao caso. O que importa é que o futebol português está, neste momento, amarrado a uma subserviência que o impede de crescer. O talento está lá. O futuro está à porta. Mas a Seleção continua condicionada porque o capitão não pode “ficar mal”. O futebol português merece um novo ciclo. Não sem Ronaldo — isso seria absurdo —, mas para lá de Ronaldo: no banco, na bancada, a apoiar os mais novos, sei lá, menos em campo e não a bloquear-lhes o caminho.
É tempo de agradecer-lhe e seguir em frente. Com elegância. Com respeito. E, sobretudo, com coragem. A coragem que falta a quem manda. E, já agora, a coragem que falta ao próprio CR7 para dizer: “basta, é hora de dar lugar aos mais novos.”
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.
Portugal vive um novo capítulo no seu debate político e social. A proposta do Governo para rever mais de uma centena de artigos do Código do Trabalho chega envolta num discurso de modernização e competitividade, prometendo simplificar contratações, flexibilizar despedimentos e redesenhar o banco de horas. Porém, por trás da retórica da eficiência, ergue-se uma interrogação que transcende a técnica legislativa: será esta uma reforma necessária para o futuro ou um retrocesso disfarçado de pragmatismo económico?
Os defensores da proposta insistem que o mercado laboral português é excessivamente rígido, travando o investimento e limitando o crescimento. Para esta corrente, “flexibilidade” é sinónimo de progresso — uma palavra talismã que, repetida à exaustão, parece conter o caminho para a prosperidade. Contudo, a fronteira entre flexibilidade e precariedade é tão ténue quanto perigosa. As medidas que facilitam despedimentos ou expandem o outsourcing — a subcontratação de serviços a terceiros — podem reforçar o poder patronal e fragilizar a segurança dos trabalhadores, reduzindo o emprego a um elemento descartável da equação económica.
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O discurso da modernização, tantas vezes evocado, corre o risco de ocultar o essencial: o trabalho não é apenas um custo de produção, mas a base da dignidade humana e da coesão social. Quando o trabalhador vive em permanente incerteza, o que se perde não é apenas o rendimento — é a confiança no futuro, o sentido de pertença e a capacidade de planear a própria vida.
Para o trabalhador comum, as consequências são imediatas e tangíveis. O regresso do banco de horas individual permite às empresas concentrar períodos de trabalho sem necessidade de negociação colectiva, corroendo o já frágil equilíbrio entre vida profissional e pessoal. A flexibilização dos vínculos contratuais cria relações laborais mais curtas, imprevisíveis e, invariavelmente, menos bem remuneradas. Num país onde mais de metade dos trabalhadores aufere menos de mil euros mensais, qualquer redução de direitos transcende o debate técnico: é uma ameaça à estabilidade das famílias e à própria noção de justiça social.
A experiência recente demonstra que a precariedade não é sinónimo de progresso. Economias que apostam em vínculos frágeis acabam por colher desmotivação, baixa produtividade e fuga de talento. O trabalhador inseguro não investe na sua formação, não consome com confiança e não se sente parte de um projecto colectivo. O crescimento sustentável nasce de carreiras previsíveis, de relações laborais de longo prazo e de empresas que reconhecem o valor do capital humano como activo estratégico — e não como custo variável.
Economicamente, o impacto da reforma é ambíguo. É verdade que mercados mais ágeis podem atrair investimento estrangeiro e permitir respostas rápidas às flutuações globais. Mas crescimento sem redistribuição é crescimento oco. Como alertou Thomas Piketty, quando a flexibilidade se sobrepõe à segurança, o resultado é o aumento estrutural da desigualdade — e, com ela, a erosão da confiança democrática. O problema de Portugal não reside em leis laborais “demasiado protectoras”, mas na persistência de um modelo produtivo assente em baixos salários e fraca inovação. Modernizar o trabalho exige repensar a economia — não fragilizar quem a mantém de pé.
Há também uma dimensão ética incontornável. A relação entre capital e trabalho é o espelho da sociedade que queremos ser. A flexibilidade pode ser virtuosa quando acompanhada de políticas activas de emprego, programas de requalificação profissional e redes de protecção sólidas. Sem essas contrapartidas, torna-se sinónimo de vulnerabilidade. O que está em causa não é apenas a competitividade empresarial, mas o próprio pacto social que emergiu da Revolução de Abril: o trabalho digno como alicerce da cidadania e da igualdade.
Politicamente, o Governo move-se num campo minado. Ao propor alterações profundas num contexto de governação minoritária, arrisca-se a enfrentar resistência da oposição, dos sindicatos e até de parte da sua própria base parlamentar. As manifestações em Lisboa e no Porto mostram que o debate ultrapassou o campo técnico e entrou no coração da disputa ideológica sobre o modelo de Estado social que o país quer preservar — ou transformar. A reforma laboral é, assim, mais do que um pacote legislativo: é um ensaio de poder, um teste à capacidade do Executivo para impor a sua narrativa e redefinir o equilíbrio entre eficiência económica e protecção social.
O desafio de implementação será colossal. Alterar o Código do Trabalho é apenas o primeiro passo. É preciso reforçar a Autoridade para as Condições do Trabalho, criar mecanismos digitais de monitorização e fomentar um verdadeiro diálogo social, que vá além das reuniões protocolares entre Governo, patrões e sindicatos. Sem fiscalização, sem recursos e sem cultura de corresponsabilidade, a reforma corre o risco de se tornar um exercício teórico, incapaz de produzir efeitos reais — ou, pior, de abrir caminho a novas formas de abuso.
Olhando para o contexto europeu, Portugal tem exemplos que não pode ignorar. A Dinamarca e a Suécia provaram que flexibilidade e protecção podem coexistir quando sustentadas por políticas públicas consistentes e por um Estado social robusto. O modelo dinamarquês de “flexigurança” combina liberdade de contratação com generosos subsídios de desemprego e programas de requalificação. Já Itália e Espanha, ao liberalizarem o mercado laboral sem reforçar as protecções, viram disparar a precariedade e a desigualdade, sem ganhos estruturais de produtividade. O caminho português não deve ser o da desregulação, mas o da coerência. Modernizar não é copiar — é construir um modelo próprio, equilibrado e sustentável.
Portugal precisa de um novo pacto salarial, de políticas activas de emprego e de incentivos à inovação que não dependam da compressão dos custos laborais. Precisa de empresas que invistam na formação, de trabalhadores com segurança para ousar e de um Estado que funcione como mediador — e não como espectador.
A reforma laboral que hoje se discute é, em última instância, uma escolha de civilização. Queremos um país que privilegie a agilidade empresarial mesmo à custa da segurança dos cidadãos, ou uma economia que veja a estabilidade e a redistribuição como motores de prosperidade? A modernização é inevitável, mas se for guiada apenas pela lógica da competitividade imediata, corre o risco de corroer o alicerce do próprio sistema democrático.
Entre o pragmatismo económico e a justiça social, o verdadeiro desafio político da próxima década será reconciliar ambos. Se falharmos nesse equilíbrio, esta reforma não será lembrada como um avanço, mas como o momento em que Portugal confundiu flexibilidade com fragilidade — e abdicou, em nome da eficiência, do valor que sempre definiu a sua identidade: a dignidade do trabalho. Um país que queira crescer não pode desvalorizar o que o sustenta — o trabalho e quem o faz.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.
A COP30 ainda agora começou, mas as contradições já se fazem sentir na Amazónia, e de forma particularmente evidente para quem tenta participar fora dos círculos mais protegidos da diplomacia.
Ainda antes da abertura oficial, o Presidente Lula anunciou o Tropical Forests Forever Fund (TFFF), apresentado como um fundo internacional e privado para financiar a proteção das florestas tropicais. Segundo o Governo brasileiro, o TFFF reunirá investimentos soberanos e capital privado, complementando mecanismos de redução de emissões. Mas a fonte inicial destes recursos expõe o primeiro paradoxo: o fundo será alimentado, em parte, por receitas provenientes da exploração petrolífera. Para as comunidades que vivem e protegem diariamente a floresta, a promessa financeira não convence. O retorno é incerto, o apoio direto é mínimo e a lógica continua a ser a mesma: financiar a preservação da Amazónia com dinheiro extraído daquilo que a ameaça. Num país que se apresenta como detentor de 90% de energia “limpa”, mas que também é o oitavo maior produtor de petróleo do mundo — prestes a subir para quinto — a incoerência tornou-se impossível de ignorar.
Os ativistas que tentaram acompanhar as sessões sobre financiamento climático foram recebidos por filas de credenciação que se prolongaram durante horas, impedindo a entrada nas reuniões mais relevantes, todas elas relacionadas com bancos, fundos e modelos financeiros para travar a crise climática. A coincidência de calendário é, no mínimo, duvidosa — sobretudo porque estas sessões ocorreram antes da abertura oficial da COP30, num momento em que a maior parte dos participantes ainda nem tinha acesso garantido ao recinto. O resultado? Decisões sobre milhões, justificações técnicas e futuros mecanismos financeiros decorreram sem observadores independentes, sem movimentos sociais na sala, sem escrutínio público. Exatamente o oposto do que deveria acontecer numa conferência que se pretende global, transparente e centrada na justiça climática.
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Logo após a credenciação, veio outra barreira inesperada: a ausência total de sinalização eficaz dentro do recinto. Na prática, encontrar salas, delegações ou eventos tornou-se uma caça ao tesouro. Voluntários tentam compensar, mas é insuficiente: vários participantes perderam sessões importantes simplesmente porque não conseguiram encontrar o local a tempo. Sair da área protegida e fortemente militarizada da conferência para aceder à cidade, comer ou comprar um simples cartão SIM pode demorar horas. Os autocarros oficiais ajudam, mas não existe informação clara sobre transportes, serviços básicos ou a própria malha urbana — elementos essenciais para qualquer pessoa que chega a Belém pela primeira vez. Estes obstáculos têm consequências reais: menos participação, menos diversidade de vozes e menos capacidade de acompanhar debates que determinam políticas globais.
Estas dificuldades expõem um padrão que tem vindo a repetir-se em diferentes COP: as decisões mais importantes são, muitas vezes, tomadas enquanto as pessoas mais interessadas ainda estão do lado de fora das salas, na fila, na chuva, perdidas dentro de pavilhões mal sinalizados, a tentar almoçar fora de horas e a preços proibitivos. A fricção não parece acidental, mas estrutural. Enquanto isso, o discurso oficial fala de inclusão, democracia climática, participação das comunidades e respeito pelos conhecimentos locais. Mas a prática mostra outra coisa: há sempre uma barreira invisível entre quem negocia e quem vive a crise climática na pele.
Imagens: Abel Rodrigues, Pedro Moura e Sílvia Moutinho | Direção Editorial: Joana Guerra Tadeu | Produção em parceria com Don’t Skip Humanity