Nascido há quatro meses na ala pediátrica do hospital Nasser, em Khan Yunis, no Sul da Faixa de Gaza, Yousef al Najjar nunca conheceu uma vida normal. Um bebé com a sua idade deveria pesar entre cinco e seis quilos. A mãe, num depoimento recente à revista online Al Majalla, explica por que motivo o seu filho, de apenas quilo e meio, é só pele e osso: “Não consigo arranjar nada para comer. Não o posso amamentar ou alimentar em condições (…). Ele está a piorar e as costelas estão cada vez mais salientes (…). Os médicos dizem-me, todos os dias, que ele dificilmente pode sobreviver se não começarem a chegar leite e medicamentos.”

Ruínas Cerca de 92% dos edifícios de Gaza foram destruídos (160 mil) ou tornaram-se inabitáveis (276 mil). Maioria da população não tem onde abrigar-se Foto: LUSA

Para Yousef al Najjar, após um implacável bloqueio das autoridades israelitas ao enclave de 365 quilómetros quadrados, desde o início de março, a chegada de nove camiões com ajuda humanitária, esta segunda-feira, 19, de pouco serviu. O menino morreu esfaimado. Como ele, muitos outros tiveram o mesmo destino nas últimas semanas. E, no dia seguinte, de acordo com uma lancinante advertência das Nações Unidas, “nas próximas 48 horas” 14 mil bebés e menores de tenra idade habilitam-se a que lhes aconteça o mesmo.

Tom Fletcher, vice-secretário da ONU e coordenador do apoio de emergência, considera “inaceitável” que haja 160 mil paletes com bens essenciais distribuídos por quatro mil camiões em fila de espera para entrar em Gaza. Para este responsável, a parca quantidade de víveres e de medicamentos que começou a chegar aos palestinianos é “uma gota de água num oceano de necessidades”. Um recado para as autoridades hebraicas, em particular para os falcões ultranacionalistas e religiosos que ocupam cargos-chave, caso de Bezalel Smotrich. Este último, ministro das Finanças e conhecido pelas suas tiradas e posições radicais, insiste que a população de Gaza só deve ter direito a uma ração mínima diária para se alimentar: “Os civis recebem um pão pita e um prato de comida. E chega”. Na prática, diz, na maior das impunidades, que o seu país pode e deve ser intransigente na defesa dos seus interesses: esmagar o Hamas e, se for preciso, matar à fome o povo cuja existência ele nem reconhece. Será que não receia ser acusado de cumplicidade em eventuais crimes de guerra, limpeza étnica e genocídio?

TRAFICÂNCIAS

A 6 de maio, ao ser anunciada a operação Carros de Gedeão, que passa por intensos bombardeamentos e por uma nova invasão terrestre do enclave nos próximos dias, Smotrich vaticinou o seguinte: “Dentro de um ano, Gaza estará completamente destruída, os civis serão enviados para sul, para zonas humanitárias, e, a partir daí, vão começar a sair em grande número para países terceiros.”

Será que as declarações deste colono e dirigente sionista podem ser levadas a sério? A 16 de maio, a estação norte-americana NBC revelou que a Administração de Donald Trump não tem apenas o desejo de converter Gaza numa estância balnear com muitos arranha-céus junto ao Mediterrâneo e uma gigantesca estátua dourada do 47º Presidente dos EUA (o próprio publicou na sua rede social, Truth Social, no final de fevereiro, um vídeo com este cenário, realizado através de Inteligência Artificial). De acordo com a NBC, a Casa Branca está a “preparar um plano para levar um milhão de palestinianos para a Líbia”, encontrando-se a negociar com as autoridades deste país. A ser verdade, não se percebe quem podem ser os intermediários de Washington neste processo, uma vez que o país outrora dirigido pelo coronel Muammar Kadhafi está em guerra civil há mais de uma década. Pior. Além das permanentes pelejas entre milícias e grupos jihadistas, tem um governo em Trípoli, reconhecido pela comunidade internacional, e um outro em Benghazi, chefiado pelo “marechal” Khalifa Haftar, um senhor da guerra que já colaborou com a CIA e agora merece a simpatia da Rússia de Vladimir Putin e, entre outros, de alguns monarcas e autocratas árabes.

Apesar dos desmentidos pouco convincentes da embaixada americana na capital líbia sobre este assunto, a NBC destaca também a possibilidade de os EUA quererem deportar palestinianos para a Síria. Como se sabe, o novo regime de Damasco é desde dezembro liderado por um ex-dirigente da Al-Qaeda, Ahmed al-Sharaa, personagem que se encontrou, a 14 de maio, com Donald Trump em Riade, capital da Arábia Saudita. Terão falado sobre os que ainda habitam na futura “Riviera do Médio Oriente” ou limitaram-se a discutir o levantamento das sanções norte-americanas a Damasco e a surpreendente disponibilidade de Washington para ajudar um governo de antigos terroristas? Com o rei da diplomacia mercantilista nunca se sabe o que pode acontecer e o inquilino da Casa Branca já manifestou, por diversas vezes, a vontade de “tomar conta” do território “inabitável” em que mais de 90 por cento dos edifícios estão destruídos ou danificados. Mais uma vez, recorde-se o que ele escreveu a 6 de fevereiro, na sua rede social, após ter surpreendido meio mundo com uma proposta que os adeptos do “Grande Israel” adoraram: “A população de Gaza pode ser reinstalada em comunidades muito mais seguras e bonitas, com casas novas e modernas, na região, onde viveria feliz, em segurança e em liberdade.” Este projeto para inviabilizar um Estado palestiniano e redesenhar os mapas do Médio Oriente, à custa das populações de Gaza e da Cisjordânia, não é exatamente original.

Nos anos 60 do século passado, o governo do trabalhista Levi Eshkol colocou a hipótese de oferecer dinheiro aos residentes do enclave que aceitassem voluntariamente emigrar para os países árabes e, em maio de 2024, Netanyahu divulgou um documento intitulado Gaza 2035 que previa, por exemplo, a instalação de comunidades palestinianas no Norte do Sinai (Egito) e a criação de infraestruturas ‒ rodoviárias e ferroviárias ‒ entre o território que se “normalizou” como a maior prisão a céu aberto do mundo e aquela que pretende ser a cidade tecnologicamente mais avançada do planeta, Neom, na Arábia Saudita. Não é, pois, de estranhar que, depois das afirmações de Trump, Israel tenha formalmente criado, logo a seguir, uma agência especial para os palestinianos de Gaza que aceitem emigrar para a Jordânia ou o Egito, sob a tutela do Ministério da Defesa. Aliás, o titular desta pasta, Israel Katz, já sugeriu que alguns dos estados europeus com posições críticas em relação ao seu país ‒ nomeadamente a Noruega, a Espanha e a Irlanda ‒ acolham uma parte significativa da população de Gaza e não esconde o seu desejo de afastar a ONU das operações de assistência às vítimas do conflito em Gaza. Para tal, com a anuência de Netanyahu e da Administração Trump, foi criada uma misteriosa fundação com sede na Suíça para distribuir a ajuda em Gaza, através da concessão dessas tarefas a empresas privadas. Uma solução que António Guterres rejeita liminarmente, invocando a “lei internacional e os princípios humanitários de imparcialidade, independência e neutralidade”. Uma posição corajosa do antigo primeiro-ministro português, numa altura em que as Nações Unidas se debatem com uma séria crise financeira que obrigará a um corte de 600 milhões de dólares até dezembro e ao despedimento de milhares de funcionários. A explicação para esta cura de austeridade deve-se ao facto de muitos Estados-membros, sobretudo os EUA (responsáveis por 22% do orçamento da ONU), estarem a cancelar ou a reduzir de forma drástica os seus contributos para agências como a OMS, o Programa Alimentar Mundial, a Organização Internacional das Migrações ou o Alto Comissariado para os Refugiados.

INFERNOS

A catástrofe de Gaza atingiu proporções tais que o assunto já divide Israel como nunca se viu desde os ataques terroristas do Hamas a 7 de outubro de 2023. Na manhã desta terça-feira, 20, Yair Golan, presidente do Partido Democrata e um dos principais dirigentes da oposição ao governo liderado por Benjamin Netanyahu, disse o que poucos esperavam ouvir na rádio pública: “Israel está prestes a tornar-se um Estado pária (…) Um país sadio de espírito não se bate contra civis, não assassina crianças como passatempo e não apresenta como objetivo expulsar populações em larga escala.” Como se não bastasse, acusou o Executivo de Telavive de ser constituído por “pessoas vingativas e sem moral”, que põem em causa a “existência” do Estado judaico. Claro que alguns dos visados, a começar por Bibi Netanyahu, reagiram de imediato e com o argumento da praxe: antissemitismo. Uma acusação absurda contra Golan, militar que serviu durante quase quatro décadas as Forças Armadas (as Tsahal, de que foi vice-chefe-general), além de ser visto como um herói nacional por ter sido dos primeiros indivíduos a prestar auxílio às vítimas dos atentados perpetrados pelo Movimento de Resistência Islâmica (vulgo Hamas), há 19 meses, que provocaram mais de um milhar de mortos e o sequestro de duas centenas e meia de cidadãos israelitas e de outras nacionalidades (dos quais se presume apenas uns 20 permaneçam vivos).

Os países da UE, o Reino Unido ou o Canadá acusam Israel de se comportar de forma “inaceitável”. Netanyahu diz que não abdica de controlar Gaza

As críticas à decisão de Netanyahu de “tomar o controlo” do território que Israel descolonizou há duas décadas, por vontade de um dos seus antecessores mais polémicos e que sempre lutou contra a existência de um Estado soberano palestiniano (Ariel Sharon), são agora mais que muitas. Vários países da União Europeia defendem a aplicação de sanções ao regime de Telavive, a suspensão imediata do acordo de associação com Bruxelas (29% das exportações israelitas têm o espaço comunitário como destino) e, claro, um embargo de material bélico. França, Reino Unido e Canadá admitem vir a reconhecer a Palestina como Estado independente ‒ 147 dos 193 Estados-membros da ONU já o fizeram ‒, enquanto a Suécia, por intermédio da sua ministra dos Negócios Estrangeiros, Maria Stenergard, admite adotar medidas especiais contra todos os dirigentes israelitas responsáveis pela atual vaga de violência e porque “o território de Gaza não pode ser modificado nem reduzido”. Em declarações por telefone à alemã Deutsche Welle, Alaa Moein, 35 anos, um antigo residente de Jabalia, revela estar farto de promessas: “Nós vivemos num inferno. A segurança e a vida aqui já não fazem sentido. Todos os dias receio vir a morrer com a minha mulher e os nossos três filhos. À noite, quando conseguimos adormecer, sabemos que poderemos não voltar a acordar”.

Estatísticas

Terror

Alguns números da catástrofe iniciada a 7 de outubro de 2023

55 000
Total de mortos palestinianos de Gaza (53 mil) e israelitas (1500), desde os ataque do Hamas, há 19 meses

125 000
Feridos, militares e civis, do conflito

6 500
Estimativa de palestinianos de Gaza que ficaram estropiados e necessitam de próteses

71 000
Número de crianças palestinianas, com menos de cinco anos, que já sofrem de subnutrição aguda, segundo a OMS

57
Crianças palestinianas que morreram de fome desde março, quando Israel proibiu a entrada de água, comida e medicamentos em Gaza

470 000
Palestinianos que estão já numa situação de insegurança alimentar crítica (nível 5, o mais grave). Toda a população do enclave (2,1 milhões) perdeu o acesso regular e diário a comida

Palavras-chave:

“As eleições para a Assembleia da República constituíram um sério e grave revés para o Partido Socialista.” Assim começa a resolução aprovada pela Federação Distrital de Setúbal do PS, a exigir à direção nacional do partido que reconheça “uma responsabilidade coletiva do Partido e dos militantes, que impõe uma reflexão crítica ao que ocorreu e suas consequências”.

O documento, aprovado em reunião da Comissão Política Distrital e do Conselho Estratégico, sublinha a necessidade urgente de reencontrar a relevância política da esquerda face ao crescimento dos populismos de direita, mas exorta o partido a focar-se nas causas em vez de responsabilizar figuras. “Que se privilegie a análise política não fulanizada, ou seja, não centrada em pessoas, mas sim em causas, não se perdendo de vista a razão do progressivo crescimento dos populismos de direita e do simultâneo definhamento dos partidos e mensagem de esquerda.”

Os signatários, que incluem quatro deputados (André Pinotes Batista, o ex-ministro da Educação João Costa, Eurídice Pereira e Clarisse Campos) e a presidente da Câmara de Almada, Inês Medeiros, além de várias outras figuras de topo do PS, pedem ao Secretariado Nacional do PS e aos Presidentes de Federação que essa análise seja acompanhada de uma “revisão programática” da Declaração de Princípios do PS (revista pela última vez há mais de 20 anos) e de uma “revisão programática” que vá de encontro às “preocupações da sociedade”, abrindo a discussão “a outros agentes cívicos, académicos, entidades representantes dos trabalhadores, associações e profissionais de diferentes setores”.

A resolução apela ainda ao diagnóstico racional das “políticas e formas de comunicação que geraram o desencontro vigente do PS com a sociedade portuguesa” e recomenda que “os processos eleitorais internos sejam respeitadores das exigências dos atos eleitorais próximos, desde logo das eleições autárquicas”.

Palavras-chave:

Dizia-vos eu, aqui há uns tempos, que vi dois miúdos no metropolitano. Duas flores da nossa juventude. Falavam altíssimo, como toda a criança bem nutrida exigindo a atenção das câmaras. Discutiam o voto em branco. O rapaz, tenaz e ingénuo como os mais empenhados, argumentava com o que podia a favor da eficácia revolucionária do vazio. Como se o papel, por estar em bruto, pudesse ser o estandarte puro de uma nova ordem. A saber, mandar isto tudo abaixo.

Mas a rapariga, claro, sabia. Sabem sempre. Nós somos uns tontos, divertidos com o efeito das frases e dos pensamentos. Elas têm uma inteligência superior, mais ampliada às relações inesperadas entre todas as coisas. Dizia que não. Era um disparate. Um boletim desperdiçado: e, pior, uma oportunidade para algum malfeitor, ali mesmo na mesa de voto, desenhar uma cruz no quadradinho que queria ver encaixado no hemiciclo. O melhor a fazer, concedia, era mesmo votar no Partido Socialista.

E assim se foi o Bloco de Esquerda. Ali mesmo naquela carruagem da linha verde, o Bloco acabou. Eles votaram em branco. Elas votaram no PS. Fim. Tão iniludível quanto natural.

Lisboa faz-se de metro, e bem. Mas também se faz de Uber. Uber Black. Não suporto o cheiro a baunilha industrial. Antigamente, no tempo dos táxis, cada viagem era um comício. Em cada condutor, uma solução. E em cada solução, a solução final. Havia filosofia, havia fúria, havia grandes projectos para este país. Se o taxista era um Pinochet de palito na boca e blusão de cabedal, o condutor de Uber é um monge zen. Um buda com GPS. Não fala. Não respira. Espera. Só abre a boca se for convocada audiência (a cortesia é uma opção de interface). Mas quando o faz, fala como os oráculos. (Exagero, admito. Mas sou um papalvo por frases de efeito). Cada fragmento de cada resposta traz consigo a sabedoria dos séculos. Por isso faço perguntas.

Como nesta Segunda-feira:

— “Então, votou em quem?”,

— “No Chega, claro.”

— “Claro.”

Era claro. Despejou, com método e resignação, um saco de lixo na mesa do pequeno-almoço: a reforma, um processo contra o Estado, indemnizações prometidas que nunca chegaram, etc., etc..

Mais tarde, na mesma Segunda:

— “Então, votou em quem?”,

— “Sou brasileiro. Não posso votar. Mas se pudesse, era Chega.”

— “Então?”

— “É como no Brasil com o Bolsonaro. Os caras são meio xucros, mas isso aí está mau.”

Xucros: assim nasce uma estrela! Uma palavra nova. Uma palavra feia. Uma palavra, enfim, reveladora.

Portugal está xucro. Há um delírio que domina os jornais, as televisões e o resto. Fala-se do país como se o país fosse uma tertúlia. Um seminário de diversidade. Não é. Nunca foi: a Maluda já não é a artista oficial do regime, mas o regime ainda observa o país debruçado nos parapeitos fúlgidos daquelas janelas monocórdicas.

Mas Portugal é Paula Rego, amigos. Uma mulher de socas, avental sujo e faca na mão. Rútilo e boçal. Sombrio e impaciente. Não quer democracia, quer sossego. E quando não lhe dão sossego, faz guerra. É isso que está a acontecer. A abstenção acabou. Agora é a Maria da Fonte a votar de dentes cerrados e olhos a arder. É o Minho de Camilo, seco e descabelado, que marcha sobre Lisboa. Possa ou não possa votar. Daqui ou do Brasil. Não interessa.

Fui a Coimbra. Bela como uma doença sem cura. Aprendi a amá-la, como quem ganha gosto a um xarope fora do prazo. Não há trotinetes. Nem carros eléctricos. Não há pressa. Não há futuro: uma dádiva. É um prazer lá ir, quando calha. Mas até a Coimbra chegou a peste folclórica: descolonizações, restituições, penitências, “patrimónios sensíveis”. No altar da Universidade puseram-se a inventar culpas que não são de ninguém. É difícil saber o que pensam os professores. Ou se pensam os professores.

Em todo o caso, a ideia é xucra. A Maria da Fonte não parou este Domingo nas eleições. Continua o seu caminho. Algures entre o mito e a ameaça. Ao volante de um Uber. Com sangue nos dentes e boletim de voto no bolso. À espera.

Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.

Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

A recente aprovação da Lei n.º 37/2025, que possibilita que familiares e pessoas candidatas à adoção possam ser famílias de acolhimento e reforça os direitos das crianças e jovens em acolhimento, representa um marco histórico em Portugal. Estas alterações legislativas vêm responder a lacunas há muito identificadas pelos profissionais que trabalham diariamente com crianças em situação de vulnerabilidade.

A nova lei traz modificações substanciais que colocam, finalmente, o superior interesse da criança como verdadeira prioridade no nosso ordenamento jurídico, alinhando-se com as melhores práticas internacionais e as recomendações da Convenção sobre os Direitos da Criança.

Um dos pontos mais relevantes desta reforma é, sem dúvida, a clara priorização do acolhimento familiar sobre o acolhimento residencial. Durante demasiado tempo, Portugal manteve um sistema de proteção infantil excessivamente dependente da institucionalização. Os números falam por si: enquanto noutros países europeus o acolhimento familiar é a resposta predominante, em Portugal a grande maioria das crianças e jovens continua em acolhimento residencial.

A exigência de fundamentação para a aplicação excecional da medida de acolhimento residencial é um passo decisivo para inverter esta tendência. Esta alteração obriga os tribunais e as comissões de proteção a um escrutínio mais rigoroso na escolha da medida, privilegiando soluções que garantam um ambiente familiar às crianças.

A revogação da proibição de familiares e candidatos à adoção se tornarem famílias de acolhimento é uma mudança que merece especial aplauso. Esta restrição nunca teve verdadeira justificação técnica e contrariava o princípio da prevalência da família, constituindo um obstáculo burocrático à integração de crianças em ambientes familiares adequados.

Na minha prática profissional, testemunhei inúmeros casos de avós, tios ou outros familiares com condições exemplares para acolher crianças, mas que eram impedidos por esta limitação legal. A sua eliminação representa o reconhecimento de que os laços familiares são, em regra, recursos valiosos a preservar.

Igualmente importante é a possibilidade de candidatos à adoção poderem ser famílias de acolhimento. Esta mudança poderá contribuir para aumentar significativamente o número

de famílias disponíveis, garantindo que mais crianças tenham acesso a um ambiente familiar durante períodos de transição. A exigência de uma “especial avaliação técnica” salvaguarda devidamente os riscos desta dupla condição.

O alargamento do catálogo de direitos das crianças e jovens em acolhimento merece também destaque. A introdução de direitos como a garantia de um terapeuta de referência, a frequência da escola mais próxima da residência, ou o apoio financeiro para jovens no ensino superior, vem reconhecer necessidades há muito identificadas pelos profissionais do terreno.

Particularmente inovadora é a garantia do direito a manter contacto com a família de acolhimento após a cessação da medida, sempre que tal corresponda ao superior interesse da criança. Esta previsão reconhece a importância dos vínculos afetivos formados durante o acolhimento e contraria a ideia de que estes são necessariamente temporários ou descartáveis.

A possibilidade explícita de adoção pela família de acolhimento é uma das alterações mais significativas e com maior potencial transformador. Esta previsão reconhece a realidade de que, em muitos casos, o acolhimento dá origem a vínculos profundos e duradouros, que seria artificial e prejudicial para a criança interromper.

Esta alteração poderá ter um impacto positivo na estabilidade das crianças, evitando ruturas desnecessárias e permitindo transformar em definitivas situações que já demonstraram funcionar bem na prática.

Não obstante os evidentes méritos desta reforma, alguns desafios de implementação merecem atenção. A lei prevê que o Governo altere a Portaria n.º 278-A/2020 para ajustar o processo de candidatura, o que será essencial para operacionalizar as novas possibilidades.

Será também crucial reforçar os recursos humanos e financeiros das entidades envolvidas no acolhimento familiar. Sem equipas técnicas adequadamente dimensionadas e formadas, e sem apoios económicos que tornem o acolhimento familiar sustentável, corremos o risco de ter uma excelente lei com fraca aplicação prática.

A formação específica para magistrados, técnicos das CPCJ e profissionais da área social será igualmente determinante para garantir uma correta interpretação e aplicação destas alterações.

Esta nova lei representa um avanço significativo na proteção dos direitos das crianças e jovens em Portugal, alinhando finalmente o nosso quadro legal com as melhores práticas internacionais. A priorização do acolhimento familiar, a eliminação de barreiras injustificadas à participação de familiares e candidatos à adoção, e o reforço dos direitos das crianças são alterações que poderão transformar profundamente o sistema de acolhimento.

Como advogada comprometida com a defesa dos direitos das crianças, não posso deixar de celebrar esta evolução legislativa. Contudo, tenho plena consciência de que a lei, por si só, não basta. O verdadeiro teste será a sua implementação no terreno, a alocação de recursos adequados e a mudança de mentalidades nos vários intervenientes do sistema.

O caminho para um sistema de proteção de crianças verdadeiramente centrado nos seus direitos e necessidades é longo, mas esta lei representa um passo decisivo nesse percurso. Cabe agora a todos nós – advogados, magistrados, técnicos, famílias de acolhimento e decisores políticos – garantir que estas alterações se traduzem em melhorias concretas na vida das crianças e jovens que mais precisam da nossa proteção.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

Não vivo num condomínio fechado. Ando todos os dias a pé, muitas vezes de metro. Vou às compras no supermercado do bairro ou na mercearia, que fica mesmo ao pé de casa. Falo muitas vezes com pessoas que não conheço, de todas as classes sociais. Meto conversa com taxistas e motoristas de Uber. Dou-me com pessoas que vivem em bairros sociais e com quem mora nas periferias e vou muitas vezes ao interior. Já corri Portugal de norte a sul, em férias e em trabalho. Converso muitas vezes com militantes de todos os partidos que se sentam no Parlamento. Mas não conheço o meu país.

Esta ideia atingiu-me com estrondo numa tarde de domingo em que, contra todas as minhas rotinas e por motivos que agora não vêm ao caso, tive de entrar num grande centro comercial, mesmo nas franjas de Lisboa. Olhei em volta e percebi o quão longe estava de casa. Não tinha sequer passado as fronteiras do concelho e o que via era um país estrangeiro, longe do café de especialidade onde vendem matchas latte a cinco euros, mas também da tasca onde se come um almoço por pouco mais que isso.

Nunca tive grandes dúvidas de que a classe média é uma espécie de animal político mitológico. É mais um sítio onde se quer estar do que onde se está realmente. Sobretudo, quando o salário médio líquido fica pouco acima dos mil euros, exatamente o preço que me aparece primeiro quando faço no Idealista uma pesquisa por um T2 para arrendar na Amadora.

Naquela tarde de domingo tive, contudo, a sensação de estar a ver à minha frente esse unicórnio económico que é a classe média. Pessoas com capacidade de consumo, mas não tanto que nos pareçam abastadas. Pessoas a quem provavelmente parece absurdo pagar 1,60 euros por café – como já se cobra no meu bairro – mas que parecem ter o suficiente para ter aquilo a que se chama uma vida confortável: uma casa paga sem grandes sobressaltos, férias fora de casa pelo menos uma vez por ano e um automóvel.

Suponho que seja isto a que se chama classe média. E o motivo por que me pareceram tão estranhos é que, nos lugares por onde ando no centro da cidade, estou mais habituada a ver os extremos da escala social, mesmo que os de baixo não sejam sempre indigentes, mas muitas vezes profissionais intelectuais, cada vez mais espremidos pelo custo de vida crescente, que se vão aguentando em Lisboa por já terem casa paga ou ajudas familiares.

As pessoas que enchiam o centro comercial naquela tarde de domingo são as mesmas que todos os dias perdem horas de vida no trânsito. E talvez isso explique o ar impaciente, fechado, irritadiço com que se moviam pelo espaço apinhado, debaixo das luzes fluorescentes.

Saem de casa de manhã cedo. Trabalham o dia todo, muitas vezes com uma pausa rápida para comer em frente ao computador ou de pé num balcão. Trabalham muito. Procuram creche para os filhos e não a encontram. Acabam por pôr os miúdos num colégio, porque acreditam que é um investimento no futuro. Quando estão doentes, não têm médico de família e veem-se obrigados a ir ao privado. E pagam. Pagam sempre. Têm a sensação de que estão sempre a pagar. Ao final do dia, vão outra vez para a fila do trânsito. Chegam tarde e cansados, sem energia para ler ou brincar com as crianças. É preciso fazer o jantar, os TPC a correr e aos berros, os banhos, a lancheira do dia seguinte. E o dia seguinte será igual. Tudo lhes parece igual, a não ser talvez aquelas férias que lá vão conseguindo pagar, mas que também acabam por lhes saber ao mesmo, porque são curtas. E a vida não avança nem muda. E, tal como todas as outras pessoas de todas as outras classes, estão esgotados, sugados pelos ecrãs, pelas solicitações constantes, pelas mensagens e notificações, pela vida dos outros que lhes aparece pelas redes sociais e parece sempre tão melhor.

Pensei muito nestas pessoas desde domingo. Não porque as veja como um bando de ressentidos, zangados. Embora acredite que muitos deles o estão. Fartos de serem olhados de alto por quem está por cima e os desdenha. E cansados de sentirem que os que estão abaixo competem consigo pelos escassos recursos públicos e que muitas vezes (pelo menos é isso que acham) acabam por ficar com uma parte maior do bolo do aquela que lhes cabe a eles, que até o estão a pagar.

Pensei muito nestas pessoas, enquanto me fui cruzando com gente cabisbaixa, de um centrão que se acha moderado e razoável, atarantado com a ideia de que o país se radicalizou. Pensei muito nestas pessoas, enquanto me fui cruzando com gente amedrontada, de uma esquerda que desce as avenidas com cravos no peito e teme uma regressão revanchista, que vê como uma ameaça existencial.

Por onde ando, há muita gente cabisbaixa e amedrontada. E o que os cabisbaixos e amedrontados têm em comum é a sensação de incompreensão. Acordaram e não reconhecem o país em que vivem.

Os outros, aqueles com quem não se cruzam, não estão cabisbaixos nem amedrontados. Estão exultantes com o murro na mesa que deram, mesmo que nem sempre calculem bem até onde podem ser abalados por esse abanão. E, acima de tudo, sentem que não têm nada de que ter medo.

E é aí que quero pôr o dedo nesta reflexão. Eles não têm medo, porque a liberdade, a fraternidade e a igualdade não lhes dizem nada. Nas suas vidas repetidas e sem horizonte, não há nenhuma liberdade que vejam como ameaçada. Sobretudo, se são homens, brancos e heterossexuais. Quem poderá vir atrás deles? Não há nenhuma fraternidade que ultrapasse as fronteiras dos seus laços familiares. Nas vidas feitas dentro de carros, não há uma comunidade que os faça sentir irmãos de estranhos, que lhes parece pesado e injusto ajudarem quando precisam. Não há nenhuma igualdade, porque a vida os levou a acreditar que só se safa quem se esforça ou é esperto e se estão a falhar é porque não se esforçam ou há bandidos que lhes passam a perna. É o velho “quem não deve não teme”. E eles acham que não devem e, por isso, não temem.

Esta incompreensão mútua é como um buraco que se abriu debaixo dos nossos pés. O país não mudou. Só tem agora um espelho que o reflete de forma mais fiel. Vamos ter de nos habituar ao que vemos, primeiro. Só depois poderemos começar a pensar numa maneira de mudar as coisas. Porque sim, há sempre uma maneira de mudar as coisas.

A Thomson, marca francesa fundada em 1893 e que pertenceu recentemente ao grupo chinês TCL, prepara-se para reforçar a sua presença em Portugal com a chegada iminente de uma nova linha de televisores ao mercado nacional.

Alicia Fernández é diretora de vendas e marketing da Thomson na Península Ibérica desde janeiro, coincidindo com o início das operações da Streamview Iberia em Espanha e Portugal. Natural de Espanha e com 39 anos, Alicia Fernández tem formação em Direito e Administração. Iniciou a sua carreira na empresa de auditoria KPMG, passou pela HP na área de impressão e esteve mais de 11 anos na TP Vision, responsável pela marca Philips TV, sempre ligada ao setor dos televisores. Em entrevista exclusiva à Exame Informática, Alicia Fernández revela os desafios e os objetivos da Thomson nos mercados português e espanhol.

Como descreve o mercado ibérico para a Thomson neste momento?

Alicia Fernández, diretora de vendas e Marketing da Thomson em Portugal e Espanha

Em Espanha é complicado, porque no ano passado houve o “switch-off” [desligamento do sinal analógico], e agora o mercado está em queda, entre 30% a 60%. Não é fácil começar num mercado em declínio. Já Portugal, como sabem, é um mercado ‘louco’. É o segundo com os preços mais baixos da Europa, muito agressivo, muito orientado para promoções. E há novos concorrentes a tentar entrar, como a TCL. Portanto, não é fácil, mas estamos motivados, porque estamos a oferecer algo que os outros concorrentes não têm.

Quais são os principais desafios e oportunidades que têm enfrentado?

O principal desafio é que este é um mercado muito consolidado, com vencedores bem definidos — coreanos, como LG e Samsung. E, nos últimos anos, apareceram marcas novas como a TCL e a Hisense, especialmente esta última em Portugal. Como disse, é muito competitivo, há muitos mais concorrentes aqui do que no resto da Europa. Mas o nosso foco, sinceramente, é que o nosso principal concorrente é a Philips — também são europeus, também têm bons produtos e têm o Ambilight. Não queremos competir com marcas que aparecem e desaparecem com promoções, como a Xiaomi. Queremos competir com os grandes.

Qual tem sido a estratégia da Thomson para se diferenciar da concorrência em Portugal e Espanha? Têm um posicionamento específico nestes mercados?


O que temos feito é focar na inovação útil. Preocupamo-nos com o que as pessoas realmente precisam, em vez de pensar apenas no que podemos oferecer tecnicamente. Podemos oferecer 8K? Sim. Podemos fazer OLED de última geração? Sim. Mas faz sentido? Não creio. Temos de entender as necessidades dos mercados. Por exemplo, em Portugal, muita gente ainda usa boxes, por isso faz mais sentido ter uma televisor sem acesso à internet. Em Espanha, as pessoas precisam mais de Smart TVs para se ligarem. Portanto, adaptamo-nos às necessidades reais dos consumidores.

Que produtos ou segmentos têm registado maior crescimento na Península Ibérica? E quais têm mais potencial?
 

Em termos de polegadas, adoraria dizer que os tamanhos XL estão a crescer mais, e é verdade, mas os televisores com dimensões de 24 e 32 polegadas ainda são uma grande parte do mercado. Todos falamos de resolução Ultra HD, mas HD e Full HD ainda são fundamentais. Por isso, também oferecemos 32” HD, 24” HD, e até QLED HD.  Em termos de tecnologia o OLED continua presente, mas as pessoas começam a perceber que não é o que esperavam — é ótimo, mas requer condições ideais. Mini LED também não está a resultar como se esperava. A tecnologia QLED é a mais importante neste momento é a que mais está a crescer. E por isso estamos a apostar também em QLED em tamanhos pequenos, como 24”, o que ninguém mais tem no mercado.

Com que parceiros estão a trabalhar cá em Portugal? Worten? Fnac? MediaMarkt?
 

Sim, esperemos que em maio já estejamos na Fnac e MediaMarkt. E também estamos a tentar fechar contrato com a Worten. A Databox é um dos principais distribuidores e ajuda-nos a chegar a retalhistas que não conseguimos alcançar diretamente.

Como selecionam os parceiros e distribuidores locais?

A Worten tem 40% do mercado — é um parceiro-chave. A Fnac e a MediaMarkt, com a fusão, são o segundo maior retalhista. Mas não é só o tamanho — também o que oferecem. A Fnac é conhecida pela tecnologia, certo? Por exemplo, quando falamos de QLED, com preço mais alto, é um produto ideal para a Fnac. Para televisores com grandes volumes de vendas como de 32” ou 43” Full HD, aí sim, a Worten e a MediaMarkt são fundamentais.

Quais são as expectativas da Thomson para esta nova linha de produtos em 2025?


Em termos de quota de mercado, as reuniões que tive com os retalhistas foram boas — acreditam nos nossos produtos. E acho que os portugueses confiam na marca Thomson. É uma marca europeia, bem conhecida aqui. Espero que possamos corresponder às expectativas dos utilizadores. Mas Portugal é um mercado muito promocional, com preços muito agressivos. Temos de alinhar com esses preços, porque a marca ainda não é tão reconhecida como gostaríamos. Mesmo com um bom produto, sem preço competitivo, é difícil. Mas acredito que podemos fazer um bom trabalho aqui.

Que tendências tens observado nos hábitos de consumo tecnológico em Portugal e Espanha?


Em Espanha, os tamanhos XL — 55” e 65” — estão a crescer mais do que em Portugal. Ao mesmo tempo, os preços médios estão a cair nessas gamas. Em geral, os consumidores querem ecrãs maiores, mas mais baratos. Não procuram 8K ou algo super premium. Procuram algo “bom o suficiente” para desfrutar. E aí temos uma grande oportunidade — temos bons produtos, a bom preço. Não temos TVs topo de gama de 5.000 euros, porque isso não faz sentido. Não é o que as pessoas procuram.

O que podemos esperar da Thomson no mercado ibérico nos próximos 12 meses? Qual é o grande objetivo para o próximo ano?

Temos de estar nas lojas. Já provámos noutros países que, com as mesmas ferramentas dos concorrentes, temos bom desempenho. Em França, somos o número 3 nas vendas online. Mas para isso, precisamos de espaço nas lojas — e isso não é fácil, porque implica tirar alguém de lá. As lojas não estão a crescer. Se no final do ano tivermos televisores da Thomson ao lado das Samsung, isso significa que tivemos sucesso.

E para Portugal, o objetivo principal é fechar com a Worten este ano?

Sim. E não acho que vá ser difícil. Começámos as conversas no início do ano, estávamos prestes a fechar contrato, mas a Worten mudou toda a equipa comercial. Agora temos de recomeçar o processo. Mas o feedback sobre os nossos produtos foi muito positivo. E temos uma vantagem: não vendemos apenas televisores — também vendemos projetores e dispositivos de streaming. Há menos concorrência nesses produtos. E isso ajuda-nos a abrir portas, mesmo em retalhistas que não estejam tão interessados nos televisores.

Findas as eleições, contados os votos e os mandatos, eis que está composta a Assembleia da República para uma nova legislatura. Sempre salvaguardada a soberania do voto popular livremente expresso nas urnas, a composição final é sempre, em qualquer regime democrático, definidora da correlação de forças políticas dentro de um xadrez em que a representação de cada um dará maior ou menor sustentação aos respetivos programas que foram a sufrágio.

Todavia, nesta engrenagem, existe um conjunto de matérias em que nem a maioria absoluta que eventualmente seja conferida a um partido ou coligação bastará para que se empreendam certas alterações ou reformas. De facto, o legislador constitucional português previu de modo expresso que, para a alteração relativa a certas matérias, é exigível uma maioria de dois terços dos deputados. A intenção do legislador quanto a tais matérias é evidente. O que se pretende não é, propriamente, dificultar o processo legislativo, mas antes reforçar a legitimidade democrática, a estabilidade institucional e a proteção dos princípios fundamentais em questões de particular relevância. No fundo, sempre que o legislador exige uma maioria de dois terços, está a assegurar que certas decisões só possam ser tomadas quando existam condições para um amplo consenso entre as forças políticas representadas no parlamento, evitando precipitações ou o perigo de uma polarização excessiva.

De entre tais matérias conta-se, à cabeça, a própria revisão constitucional, cujo quórum deliberativo qualificado visa, desde logo, garantir que mudanças de caráter estrutural e que contendem com as fundações do próprio Estado de Direito, não possam ser feitas por uma momentânea maioria simples, antes reclamando sinergias e encontros de vontades que vão para além da espuma dos dias.

Mas a mesma regra tem outros pontos de coincidência ao longo da Constituição da República Portuguesa e alguns com especial relevância no que respeita ao funcionamento de outro poder do Estado, o poder judicial. Efetivamente, é exigida uma maioria de dois terços, por exemplo, no que respeita à eleição de sete vogais a indicar pela Assembleia da República para o Conselho Superior da Magistratura, para a eleição de dez juízes para o Tribunal Constitucional, do Provedor de Justiça, do Presidente do Conselho Económico e Social ou dos membros da entidade de regulação da comunicação social, e de outros órgãos constitucionais cuja designação, nos termos da lei, seja cometida à Assembleia da República.

Surge assim como evidente que quando o legislador constitucional enveredou no sentido de colocar um crivo mais apertado a este tipo decisões, o seu objetivo primordial era o de exigir um compromisso interpartidário, reforçando deste modo a confiança dos cidadãos e a imparcialidade das instituições. Na verdade, uma maioria de dois terços funciona como um verdadeiro travão institucional, salvaguardando que as questões nevrálgicas da nossa democracia, como o sistema político, judicial ou a matéria dos direitos fundamentais, assentem sempre numa base reforçada de apoio que emane do diálogo partidário, numa lógica de equilíbrio.

Não é difícil encontrar bloqueios geradores de entropias, designadamente no setor judicial, quando a conflitualidade política e a fragmentação parlamentar surgem de mãos dadas.

Recorrendo a um exemplo recente, ainda há cerca de um ano, Espanha debatia-se com um forte impasse. O Conselho Geral do Poder Judicial (correspondente ao nosso Conselho Superior da Magistratura) composto por 20 membros eleitos pelo Parlamento por um período de cinco anos, carece, nos termos da Constituição, que tais eleições se façam por recurso a uma maioria qualificada de três quintos dos deputados. Decorrido o período integral do aludido mandato, constatou-se que os principais partidos com representação parlamentar não lograram, de modo sucessivo, alcançar um acordo para proceder à renovação ou à eleição de novos membros. Naquele caso, a aritmética parlamentar conduzia a um único resultado: apenas o partido do Governo e o principal partido da oposição poderiam garantir a maioria necessária. Contudo, fruto de profundas divergências, incapacidade de diálogo e de estabelecimento de pontes numa questão de Estado, o que sucedeu foi que os membros do Conselho foram permanecendo em funções vários anos para além do término do mandato. A situação agravou-se ainda mais quando, posteriormente, foi aprovada uma lei que impedia o Conselho de efetuar nomeações para cargos jurisdicionais, o que gerou um bloqueio de três anos consecutivos sem que fossem preenchidas diversas vagas, designadamente para o Supremo Tribunal.

A situação, originada por uma falta de consenso em matérias fulcrais para o funcionamento da justiça em Espanha, num contexto em que as maiorias qualificadas exigiam uma aproximação de forças partidárias com interesses e entendimentos divergentes, levou a que a própria Comissão Europeia, nos relatórios sobre o Estado de Direito de 2022 e 2023, a Rede Europeia de Conselhos Judiciais, em declaração de 2.04.2024, e a Associação Europeia de Juízes, em resolução 26.04.2024, tivessem tido necessidade de intervir, apelando para que Espanha envidasse esforços no sentido de permitir ao Conselho Judicial que retomasse o seu pleno funcionamento e que a nomeação dos seus membros fosse feita em conformidade com os padrões europeus.

Este é, seguramente, o desafio que se coloca a todos os eleitos em democracias constitucionais, baseadas em sistemas fundamentais de controlo e de exigência de amplos consensos em tornos das matérias estruturais e que contendem com as fundações do Estado de Direito. E num cenário em que o xadrez político se desenha sem maiorias absolutas, a premência das pontes é ainda mais necessária, sobretudo num país em que, no setor da justiça, se clama pela necessidade de alterações cirúrgicas, mas fundamentais ao seu bom funcionamento.

Nesta legislatura, urge, por isso, que, com a maior brevidade, se retome o processo legislativo tendente ao fim da imposição da presença física dos magistrados no ato da distribuição de processos e que continua, há tempo demais e contra a posição avalizada de todas as profissões jurídicas, a criar entropias e ineficiências no quotidiano dos tribunais. Do mesmo modo, é fundamental dar urgente andamento à legislação tendente ao alargamento da base de recrutamento de juízes desembargadores para o Supremo Tribunal de Justiça, promovendo o seu rejuvenescimento, num tribunal onde as sucessivas jubilações têm vindo a criar uma situação de conhecida carência associada a períodos curtos de permanência dos juízes conselheiros nessas funções. Além do mais, num país onde são preocupantes os níveis de perceção para o fenómeno da corrupção, é fundamental que se promovam mais e melhores meios investigatórios, garantindo mais eficiência no que respeita a um fenómeno que mina a confiança dos cidadãos. Finalmente, urge que se olhe de frente para a tão propalada necessidade de valorização das eternamente estagnadas carreiras ligadas à justiça e que nesta legislatura não se volte a cair na tentação de se focar o setor apenas com o habitual pendor estatístico ou sob o prisma da mera modernização tecnológica, mas que se canalizem esforços, recursos e prioridades essencialmente, e de modo definitivo, para a sua vertente humana pois esta é a verdadeira base do sistema.

Com sentido de Estado, assim o xadrez o permita.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

Caso se confirme a vantagem do Chega sobre o PS, nos círculos da emigração, o desempate dá o 2.º lugar ao partido de André Ventura. Em conformidade, ele passa a ser o novo líder da oposição. Inconsciente desta realidade, ainda com o chip antigo, o PS continua a comportar-se como se tivesse ficado em segundo, e começou a fazê-lo logo na noite eleitoral, quando Pedro Nuno Santos, embora demissionário, foi avisando que, por ele, os socialistas “não devem suportar” este Governo, para que o Chega “não se transforme na alternativa”. Ora, com este resultado, o Chega, e não o PS, é a alternativa à AD. Aliás, o PSD, a partir de agora, deixa de poder apelar aos eleitores do Chega que optem pelo “voto útil”. Pelo contrário, André Ventura entrou na disputa pelo poder e pode, até, ser ele a fazê-lo, perante os eleitores do PSD. Basta argumentar que, sem maioria absoluta, os outros partidos não o deixarão governar e o País não terá um “verdadeiro governo de direita”.

A primeira lição deste resultado é a de que o PS andou a semear ventos, pelo que não pode queixar-se de ter colhido a tempestade. Anos a fio, o PS apostou na visibilidade e no crescimento do Chega, para confinar o PSD, que identificava como principal adversário, a um acantonamento político, entalado entre o centro, ocupado pelos socialistas, e a “extrema-direita”. Nas contas do PS, um Chega eleitoralmente robusto ia “comer” eleitorado ao PSD, limitando a sua capacidade. Além disso, o PS tentava persuadir os eleitores de que, mais tarde ou mais cedo, PSD e Chega iriam coligar-se. E isto, esperava-se, afastaria o eleitorado moderado do partido “laranja”. O resultado foi precisamente o contrário: o feitiço virou-se contra o feiticeiro e, na hora da verdade, foi o PS, ou boa parte dele, e não o PSD, que foi devorado. Isto responsabiliza diretamente António Costa e a sua estratégia, fazendo do atual presidente do Conselho Europeu um dos grandes derrotados da noite (embora seja de suspeitar que, nesta altura do campeonato, esse é o lado para o qual ele dorme melhor…). Mais, o PS cometeu os mesmos erros dos socialistas franceses. E, agora, arrisca-se a sofrer as mesmas consequências. Arrisca a irrelevância, no seguimento do que aconteceu em vários países europeus, onde a alternativa é entre a direita moderada e a direita radical e populista.

A segunda lição a tirar é a de que a estratégia do “não é não”, levada a cabo, contra tudo e contra todos, mesmo contra boa parte das bases do seu partido, deu frutos a Luís Montenegro. É graças a ela que, mau grado os evidentes problemas éticos do primeiro-ministro, a AD consegue crescer desta maneira, passando, por boa margem, a barreira psicológica dos 30 por cento. Em 2022, foi criada, com Rui Rio, a ameaça da associação com o Chega. Em 2024, os eleitores moderados e “flutuantes” duvidaram da promessa de Montenegro. Mas, este ano, não tiveram receio e votaram nele. Resta aos socialistas recuperarem terreno, através de uma cultura de responsabilidade, alinhando numa solução “à alemã”, que afaste o Chega mas sem prejudicar a autonomia estratégica do PS. Isto é, um entendimento informal. Em vez de um contrato escrito com a AD, muito menos uma coligação de Bloco Central ou mesmo um acordo de incidência parlamentar, o PS deve viabilizar o governo, e respetivos orçamentos, de forma informal, mantendo práticas de oposição, na apresentação de propostas, políticas e protagonistas alternativos. O eleitorado poderá recompensar, a longo prazo, esta postura. Até lá, os socialistas não devem querer ouvir falar em eleições legislativas. Uma nota: mesmo que tenham uma vitória nas autárquicas, isso pouco muda. Também o PS de Jorge Sampaio as ganhou, sem que impedisse a renovação da maioria absoluta de Cavaco…

O sucesso do Chega é uma onda de sul para norte e da raia para as periferias suburbanas. Na raia, ganhou em quase todos os concelhos a sul do Tejo, uma vasta área geográfica com forte presença da etnia cigana. Nas periferias, explorou as perceções sobre insegurança. No Alentejo e em Setúbal, filhos e netos de comunistas votam Chega, mas as motivações não variam muito das dos seus pais e avós, quando votavam em Álvaro Cunhal: periféricos, marginalizados, com poucas perspetivas de vida, o que eles querem é rebentar com o poder instalado e fazer a revolução.

Finalmente, André Ventura, em vez de se queixar da Comunicação Social, devia andar com ela num andor: ele é um produto criado e alimentado pela televisão, como demonstraram as prédicas diárias, livres de perguntas difíceis, todas as tardes, em direto, nos Passos Perdidos. Ou as entrevistas em loop, nos últimos meses, por todos os canais, especialmente o seu canal de origem, onde é tu cá tu lá com quem o interpela.

Golpe de vista

O pesadelo de Carlos Moedas

Quando um político recebe heróis do desporto, está a fazer um investimento na sua própria visibilidade, esperando obter dividendos de popularidade. Só que não: na receção da CML ao campeão Sporting, Moedas viu o seu discurso ser boicotado por apupos e assobios. De uma pessoa ter vontade de se enfiar num buraco… Estupidamente, o presidente da Câmara não se ficou apenas por um “viva o Sporting”, insistindo em ler a cábula até ao fim, dilatando a vaia – e a exposição ao insulto. Esqueceu-se de que um dos cânticos dos sportinguistas fala de “rulotes e cafés” – que ele, no dia do título, mandou fechar. 

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Há muitas cortinas neste novo hotel de cinco estrelas do Porto. A ocupar paredes inteiras dos quartos, ao fundo da piscina interior, multiplicadas no luminoso lobby de entrada e no restaurante Dramatics. A ideia não é, em todos estes casos, esconderem nada, antes pelo contrário; são vistosas e pesadas cortinas – azuis, verdes ou escarlates –, que estão ali para revelar o passado, as origens deste lugar.

A dois passos da Estação da Trindade e da Praça da República, esta foi, durante muitos anos, a morada da companhia teatral Grupo dos Modestos, que ali se instalou em 1906 e ali ficou, num edifício construído em 1856 para ser a sede da Associação de Socorros Mútuos das Classes Laboriosas, até ao início dos anos 80.

A fachada desse edifício histórico para o teatro popular da cidade foi-se degradando ao longo dos anos, mas pode ver-se agora, a partir da Rua de Gonçalo Cristóvão, de cara lavada, através das grandes paredes envidraçadas do Cénica Porto Hotel – que faz parte da linha Curio, uma marca dentro do grupo Hilton dedicada a unidades hoteleiras com uma identidade própria, algo que as distinga.

Fachada do antigo teatro do Grupo Os Modestos, agora no lobby do Cénica Porto Hotel

Essa ligação ao teatro encontra-se em vários pormenores, além da omnipresença das cortinas a fazerem pensar em palcos: nos livros disponíveis para leitura no lobby – todos de, ou sobre, teatro –, na apresentação do menu do Dramatics Restaurant & Bar, nos nomes dos tratamentos disponíveis no spa e, sobretudo, na novinha sala de teatro e eventos que faz parte do hotel, e que se pretende aberta à cidade (disponível para lançamentos, teatro, conferências…).

Quarto King

O Cénica Porto Hotel tem 126 quartos – dos mais simples, Queen, até à Suíte King, com dois quartos (um com cama king size, outro com duas camas de solteiro). No piso -1 está a piscina interior e jacuzzi, o ginásio e o spa (com sauna, banho turco e salas de massagens/tratamentos).

Dramatics Restaurant & Bar: Sabores em cena

O nome em inglês denuncia que muitos frequentadores do restaurante do Cénica Porto Hotel são visitantes estrangeiros, uma boa parte vindos dos EUA (atraídos pela marca Hilton, nascida há 100 anos no Texas). O chefe Nuno Miguel, natural da Póvoa de Varzim, dá o seu melhor para apresentar um menu sofisticado inspirado na gastronomia portuguesa, mas sem exigir demasiado espírito aventureiro a quem não está familiarizado com ela (há “hambúrguer caseiro”, mas não falta a francesinha). O bacalhau à Brás (€22) é um dos pratos com mais saída. Na renovação da carta nesta primavera introduziu-se, por exemplo, um risotto de beterraba e avelã (€18) e o entrecôte, milho doce com manteiga de alho e ervas, feijão-verde e polenta frita (€36). A elegante sala de refeições tem vista direta para a cozinha e suas coreografias.

Cénica Porto Hotel > R. de Gonçalo Cristóvão 156, Porto > 22 012 8360 > a partir de €202

António Costa tinha um comunicado escrito quando chegou à Comissão Política do PS, no qual anunciava que seria candidato à liderança contra António José Seguro. O texto chegou a ser enviado, mas as notícias da manhã de 13 de janeiro de 2013 já contavam outra história. “António Costa só avança no PS se Seguro não conseguir unir os socialistas”, lia-se no Público. Porque é que esta história interessa agora? Ela tem sido lembrada pelos socialistas que estão apostados em fazer José Luís Carneiro recuar depois de ter deixado claro que voltaria a ser candidato a secretário-geral do PS.

Nessa noite de janeiro de 2013, o que fez Costa congelar os planos de chegar a líder foi a reação gelada dos autarcas do partido perante a possibilidade de ter uma disputa interna a dividir o PS antes das autárquicas. Desta vez, o calendário é ainda mais apertado: as diretas podem ser em junho, com autárquicas entre o final de setembro e o início de outubro. Depois de uma campanha nas legislativas que, basicamente, contou com a máquina de umas autárquicas que já estavam no terreno, a última coisa que muitos socialistas querem é discutir quem é o líder.

Mal Pedro Nuno Santos anunciou a demissão, começaram os telefonemas. Era preciso perceber quem estaria e quem não estaria disponível para lhe suceder e em que timings. José Luís Carneiro não deixou margem para dúvidas. “A partir do momento em que fui candidato, constituí uma responsabilidade com aqueles que me apoiaram e hoje essa responsabilidade é acrescida”, disse na CNN. Mas na sombra outras peças se mexeram.

O calendário de Medina

Fernando Medina está em silêncio absoluto, mas a VISÃO sabe que não é uma carta para tirar deste baralho. Medina terá, porém, dois elementos a ponderar: o primeiro é não querer dividir o partido, o segundo é a importância de um calendário que não colida com as autárquicas. Para Fernando Medina avançar, seria importante que Carlos César aceitasse ficar a liderar o partido interinamente até depois das autárquicas. Isso, nota-se no partido, teria duas grandes vantagens: não dividiria os socialistas e faria com que fosse César (e não o próximo secretário-geral) a ficar com o ónus de ajudar à viabilização do Programa de Governo e do Orçamento do Estado.

Outro dos nomes de que mais se tem falado nos telefonemas cruzados entre socialistas é o de Mariana Vieira da Silva, vista como hipótese, sobretudo no caso de o calendário não jogar com os tempos planeados por Fernando Medina. Vieira da Silva foi apoiante de José Luís Carneiro, mas esse alinhamento parece já se ter esfumado.

Os que ficam de fora para já

Duarte Cordeiro, que mesmo na sombra continua a ter uma enorme influência no partido, é um nome incontornável quando se pensa no PS. Mas foi o próprio a pôr-se fora. “Não serei candidato, mas quero contribuir para uma solução de unidade e não de fação”, disse, numa declaração à Lusa, que parece alinhada com o calendário de Medina. Cordeiro vincou que é preciso “dar tempo” para que se possa “escolher entre os melhores e não eleger os mais rápidos”. O próprio tem dito aos mais próximos que ainda está muito marcado pela forma como foi tratado na Operação Influencer e no Caso Tutti Frutti e que prefere esperar até os filhos serem mais crescidos para voltar à ribalta política e aos dissabores que ela traz.

Despedida em Belém Reunião de Pedro Nuno Santos com PR terá sido a última. Carlos César assume liderança interina.

Duarte Cordeiro foi, durante muitos anos, o número dois de Pedro Nuno Santos, e continuou a ser um dos seus conselheiros nos 15 meses em que este foi líder do PS. Mas são várias as fontes que notam o distanciamento crescente entre os dois, com Pedro Nuno a ser acusado de se ter fechado num grupo muito restrito e cada vez mais incapaz de ouvir opiniões contrárias, nos últimos meses.

Alexandra Leitão é vista por muitos como a candidata natural do “pedronunismo”. Publicamente, deixou todos os cenários em aberto, sublinhando a necessidade de se concentrar na candidatura a Lisboa. “Sou candidata à câmara de Lisboa e é aí que me vou concentrar nos próximos meses”, disse na CNN. O calendário eleitoral torna, de resto, quase impossível um avanço. Se ganhar Lisboa, não terá tempo para se dedicar ao PS, se perder Lisboa perde força para conquistar o partido. Este não deve, por isso, ser o seu tempo.

Pedro Nuno Sánchez?

Quem conhece bem Pedro Nuno Santos acredita que o líder que se demitiu no domingo à noite pode também não ter chegado ao fim do seu tempo. São alguns os sinais de que Pedro Nuno pode “andar por aí”, mesmo que fique algum tempo afastado da liderança. Um desses sinais é a forma como decidiu só entregar a chave do Largo do Rato na Comissão Nacional do partido no sábado, seis dias depois do anúncio da demissão, sinalizando que poderá falar aí.

O que afirmou no discurso de derrota mostra que a sua saída não é uma desistência. “Mas como disse Mário Soares, só é vencido quem desiste de lutar e eu não desistirei de lutar. Até breve. Obrigado a todos”, vincou. no final da noite do desaire eleitoral.

No dia seguinte, almoçou com o seu núcleo mais restrito. O encontro foi mais de amizade do que de política, mas quem lá esteve também ficou com a ideia de que talvez Pedro Nuno não tenha atirado definitivamente a toalha ao chão. “Pedro Nuno quer ser Pedro Sánchez”, diz uma fonte socialista, apostando que, tal como o líder do Partido Socialista Espanhol se reergueu das cinzas, o português pode ainda ter uma segunda vida.

A resistência dos autarcas à pressa de PNS

Fontes próximas de Pedro Nuno Santos afiançam que, ao contrário de Medina, Pedro Nuno tem pressa. E queria mesmo que as diretas para a liderança acontecessem em junho, mesmo que o Congresso fosse já depois das autárquicas. Essa pressa encontra resistências em quem está a fazer campanha autárquica e precisa de uma direção concentrada em tomar decisões, por exemplo, sobre gastos de campanha em sondagens e eventos, mais do que numa disputa interna. Mais: quem é candidato teme que, caso haja mais do que um a disputar a liderança, as estruturas fiquem partidas ao meio, precisamente quando deviam estar todos a remar para o mesmo lado.

Para Medina avançar, seria importante que Carlos César aceitasse ficara liderar o partido interinamente até depois das autárquicas

Nos bastidores do Largo do Rato há ainda outras contas a fazer. Se uns pensam que esta pode ser uma longa travessia no deserto, depois de, pela primeira vez na história, o PS ser atirado para o terceiro lugar (se os votos da emigração assim o confirmarem), também há quem acredite que o caso Spinumviva pode fazer estragos e antecipar a queda de Luís Montenegro. Nesta terça-feira, a empresa da família de Montenegro voltou a ser notícia, depois de se saber que o Ministério Público pediu esclarecimentos adicionais sobre o tema ao líder da AD.

Receitas diferentes para a cura de oposição

Seja como for, os socialistas descontentes com Pedro Nuno Santos acreditam que o PS terá dois desafios difíceis pela frente: recuperar a credibilidade e reconquistar eleitorado que fugiu para o Chega. Para isso, defende um dos socialistas ouvidos pela VISÃO, é preciso ter muito mais calma do que teve Pedro Nuno. “O PS tem de reconhecer que o poder perde-se. Tem de haver um desgaste de quem está no poder. A ansiedade é a pior conselheira.”

Uma coisa é certa: a estratégia antecipada quer por José Luís Carneiro quer por Fernando Medina está nos antípodas da que preferia Pedro Nuno Santos. “O PS deve ser claro no que respeita à garantia de viabilização do Governo, porque é isso que os cidadãos nos pedem”, disse Carneiro, afastando a possibilidade de um Governo de Bloco Central, mas abrindo a porta a entendimentos com a AD, num diálogo entre as duas forças políticas que seja pautado por “impulsos reformistas”.

Para Fernando Medina, a fórmula para “combater a progressão da extrema-direita” também está na viabilização do Governo da AD, mediante condições, entre as quais “um compromisso de diálogo permanente” entre as duas forças políticas, sem que o PS abdique de ser oposição.

Pedro Nuno Santos acredita, contudo, que o PS “tem de se afirmar como alternativa política”, evitando que esse espaço fique para o Chega. “A mim não cabe ser o suporte deste Governo. E penso que este papel também não deve caber ao Partido Socialista”, defendeu num discurso de demissão durante o qual voltou a afirmar que Luís Montenegro “não tem idoneidade necessária para o cargo de primeiro-ministro e as eleições não alteraram essa realidade”.

O importante já não é a rosa?

Há erosão nos partidos socialistas europeus, mas também casos de sucesso

Foto: Brais Lorenzo/ LUSA

Embora a queda do PS tenha sido grande, não se compara com a que sofreu o Partido Socialista Francês nos últimos anos. Depois de ter dominado a política gaulesa durante as décadas de 1980 e 1990, com François Mitterrand, e conseguido eleger François Hollande para a Presidência, entre 2012 e 2017, os socialistas quase foram varridos do mapa a seguir: nas presidenciais de 2022, a sua candidata Anne Hidalgo, que é presidente da câmara de Paris desde 2014, não conseguiu alcançar sequer 2% dos votos. E nas legislativas do ano passado integraram a Nova Frente Popular, vencedora do escrutínio, mas numa posição subalterna em relação à extrema-esquerda liderada por Jean-Luc Mélenchon. Na atual Assembleia Nacional, o PSF é a quarta força política em número de deputados, com 66 representantes, quase metade dos 123 do Rassemblement National, de Marine Le Pen.

O caso mais flagrante do declínio dos socialistas na Europa ocorreu na Grécia, na sequência da crise financeira de 2010. De um momento para o outro, o Movimento Socialista Pan-Helénico (Pasok), que tinha dominado a política em Atenas durante mais de três décadas, perdeu o apoio popular e caiu para menos de 5% dos votos. Ficou, então, encontrada a alcunha que define o declínio de um partido socialista na Europa: pasokização.

Esse risco de pasokização voltou a ser lembrado, há pouco tempo, na Alemanha, em relação ao outrora poderoso SPD, de Willy Brandt. Nas últimas eleições, o então chanceler Olaf Scholz desceu do primeiro para o terceiro lugar, sendo ultrapassado pela extrema-direita AfD. Em Itália, os socialistas praticamente desapareceram do mapa.

Em Espanha, o PSOE já sobreviveu várias vezes ao risco de pasokização e, atualmente, é um dos poucos partidos socialistas com verdadeiro poder na Europa – graças a uma ampla coligação, inspirada na Geringonça, de António Costa. Apesar do frágil apoio político, o governo de Pedro Sánchez tem obra para mostrar: Espanha é hoje o país com melhor e maior desenvolvimento económico da UE. O principal caso de sucesso é, no entanto, o de Mette Frederiksen, a primeira-ministra socialista da Dinamarca, no poder desde 2019. E há uma razão, pelo menos, para isso: ela introduziu diversas medidas para controlar a chegada de imigrantes e impôs regras de integração. Com isso, o tema da imigração deixou de estar presente nas campanhas eleitorais, retirando argumentos à extrema-direita. R.T.G.