Nascido há quatro meses na ala pediátrica do hospital Nasser, em Khan Yunis, no Sul da Faixa de Gaza, Yousef al Najjar nunca conheceu uma vida normal. Um bebé com a sua idade deveria pesar entre cinco e seis quilos. A mãe, num depoimento recente à revista online Al Majalla, explica por que motivo o seu filho, de apenas quilo e meio, é só pele e osso: “Não consigo arranjar nada para comer. Não o posso amamentar ou alimentar em condições (…). Ele está a piorar e as costelas estão cada vez mais salientes (…). Os médicos dizem-me, todos os dias, que ele dificilmente pode sobreviver se não começarem a chegar leite e medicamentos.”

Para Yousef al Najjar, após um implacável bloqueio das autoridades israelitas ao enclave de 365 quilómetros quadrados, desde o início de março, a chegada de nove camiões com ajuda humanitária, esta segunda-feira, 19, de pouco serviu. O menino morreu esfaimado. Como ele, muitos outros tiveram o mesmo destino nas últimas semanas. E, no dia seguinte, de acordo com uma lancinante advertência das Nações Unidas, “nas próximas 48 horas” 14 mil bebés e menores de tenra idade habilitam-se a que lhes aconteça o mesmo.
Tom Fletcher, vice-secretário da ONU e coordenador do apoio de emergência, considera “inaceitável” que haja 160 mil paletes com bens essenciais distribuídos por quatro mil camiões em fila de espera para entrar em Gaza. Para este responsável, a parca quantidade de víveres e de medicamentos que começou a chegar aos palestinianos é “uma gota de água num oceano de necessidades”. Um recado para as autoridades hebraicas, em particular para os falcões ultranacionalistas e religiosos que ocupam cargos-chave, caso de Bezalel Smotrich. Este último, ministro das Finanças e conhecido pelas suas tiradas e posições radicais, insiste que a população de Gaza só deve ter direito a uma ração mínima diária para se alimentar: “Os civis recebem um pão pita e um prato de comida. E chega”. Na prática, diz, na maior das impunidades, que o seu país pode e deve ser intransigente na defesa dos seus interesses: esmagar o Hamas e, se for preciso, matar à fome o povo cuja existência ele nem reconhece. Será que não receia ser acusado de cumplicidade em eventuais crimes de guerra, limpeza étnica e genocídio?
TRAFICÂNCIAS
A 6 de maio, ao ser anunciada a operação Carros de Gedeão, que passa por intensos bombardeamentos e por uma nova invasão terrestre do enclave nos próximos dias, Smotrich vaticinou o seguinte: “Dentro de um ano, Gaza estará completamente destruída, os civis serão enviados para sul, para zonas humanitárias, e, a partir daí, vão começar a sair em grande número para países terceiros.”
Será que as declarações deste colono e dirigente sionista podem ser levadas a sério? A 16 de maio, a estação norte-americana NBC revelou que a Administração de Donald Trump não tem apenas o desejo de converter Gaza numa estância balnear com muitos arranha-céus junto ao Mediterrâneo e uma gigantesca estátua dourada do 47º Presidente dos EUA (o próprio publicou na sua rede social, Truth Social, no final de fevereiro, um vídeo com este cenário, realizado através de Inteligência Artificial). De acordo com a NBC, a Casa Branca está a “preparar um plano para levar um milhão de palestinianos para a Líbia”, encontrando-se a negociar com as autoridades deste país. A ser verdade, não se percebe quem podem ser os intermediários de Washington neste processo, uma vez que o país outrora dirigido pelo coronel Muammar Kadhafi está em guerra civil há mais de uma década. Pior. Além das permanentes pelejas entre milícias e grupos jihadistas, tem um governo em Trípoli, reconhecido pela comunidade internacional, e um outro em Benghazi, chefiado pelo “marechal” Khalifa Haftar, um senhor da guerra que já colaborou com a CIA e agora merece a simpatia da Rússia de Vladimir Putin e, entre outros, de alguns monarcas e autocratas árabes.

Apesar dos desmentidos pouco convincentes da embaixada americana na capital líbia sobre este assunto, a NBC destaca também a possibilidade de os EUA quererem deportar palestinianos para a Síria. Como se sabe, o novo regime de Damasco é desde dezembro liderado por um ex-dirigente da Al-Qaeda, Ahmed al-Sharaa, personagem que se encontrou, a 14 de maio, com Donald Trump em Riade, capital da Arábia Saudita. Terão falado sobre os que ainda habitam na futura “Riviera do Médio Oriente” ou limitaram-se a discutir o levantamento das sanções norte-americanas a Damasco e a surpreendente disponibilidade de Washington para ajudar um governo de antigos terroristas? Com o rei da diplomacia mercantilista nunca se sabe o que pode acontecer e o inquilino da Casa Branca já manifestou, por diversas vezes, a vontade de “tomar conta” do território “inabitável” em que mais de 90 por cento dos edifícios estão destruídos ou danificados. Mais uma vez, recorde-se o que ele escreveu a 6 de fevereiro, na sua rede social, após ter surpreendido meio mundo com uma proposta que os adeptos do “Grande Israel” adoraram: “A população de Gaza pode ser reinstalada em comunidades muito mais seguras e bonitas, com casas novas e modernas, na região, onde viveria feliz, em segurança e em liberdade.” Este projeto para inviabilizar um Estado palestiniano e redesenhar os mapas do Médio Oriente, à custa das populações de Gaza e da Cisjordânia, não é exatamente original.
Nos anos 60 do século passado, o governo do trabalhista Levi Eshkol colocou a hipótese de oferecer dinheiro aos residentes do enclave que aceitassem voluntariamente emigrar para os países árabes e, em maio de 2024, Netanyahu divulgou um documento intitulado Gaza 2035 que previa, por exemplo, a instalação de comunidades palestinianas no Norte do Sinai (Egito) e a criação de infraestruturas ‒ rodoviárias e ferroviárias ‒ entre o território que se “normalizou” como a maior prisão a céu aberto do mundo e aquela que pretende ser a cidade tecnologicamente mais avançada do planeta, Neom, na Arábia Saudita. Não é, pois, de estranhar que, depois das afirmações de Trump, Israel tenha formalmente criado, logo a seguir, uma agência especial para os palestinianos de Gaza que aceitem emigrar para a Jordânia ou o Egito, sob a tutela do Ministério da Defesa. Aliás, o titular desta pasta, Israel Katz, já sugeriu que alguns dos estados europeus com posições críticas em relação ao seu país ‒ nomeadamente a Noruega, a Espanha e a Irlanda ‒ acolham uma parte significativa da população de Gaza e não esconde o seu desejo de afastar a ONU das operações de assistência às vítimas do conflito em Gaza. Para tal, com a anuência de Netanyahu e da Administração Trump, foi criada uma misteriosa fundação com sede na Suíça para distribuir a ajuda em Gaza, através da concessão dessas tarefas a empresas privadas. Uma solução que António Guterres rejeita liminarmente, invocando a “lei internacional e os princípios humanitários de imparcialidade, independência e neutralidade”. Uma posição corajosa do antigo primeiro-ministro português, numa altura em que as Nações Unidas se debatem com uma séria crise financeira que obrigará a um corte de 600 milhões de dólares até dezembro e ao despedimento de milhares de funcionários. A explicação para esta cura de austeridade deve-se ao facto de muitos Estados-membros, sobretudo os EUA (responsáveis por 22% do orçamento da ONU), estarem a cancelar ou a reduzir de forma drástica os seus contributos para agências como a OMS, o Programa Alimentar Mundial, a Organização Internacional das Migrações ou o Alto Comissariado para os Refugiados.
INFERNOS
A catástrofe de Gaza atingiu proporções tais que o assunto já divide Israel como nunca se viu desde os ataques terroristas do Hamas a 7 de outubro de 2023. Na manhã desta terça-feira, 20, Yair Golan, presidente do Partido Democrata e um dos principais dirigentes da oposição ao governo liderado por Benjamin Netanyahu, disse o que poucos esperavam ouvir na rádio pública: “Israel está prestes a tornar-se um Estado pária (…) Um país sadio de espírito não se bate contra civis, não assassina crianças como passatempo e não apresenta como objetivo expulsar populações em larga escala.” Como se não bastasse, acusou o Executivo de Telavive de ser constituído por “pessoas vingativas e sem moral”, que põem em causa a “existência” do Estado judaico. Claro que alguns dos visados, a começar por Bibi Netanyahu, reagiram de imediato e com o argumento da praxe: antissemitismo. Uma acusação absurda contra Golan, militar que serviu durante quase quatro décadas as Forças Armadas (as Tsahal, de que foi vice-chefe-general), além de ser visto como um herói nacional por ter sido dos primeiros indivíduos a prestar auxílio às vítimas dos atentados perpetrados pelo Movimento de Resistência Islâmica (vulgo Hamas), há 19 meses, que provocaram mais de um milhar de mortos e o sequestro de duas centenas e meia de cidadãos israelitas e de outras nacionalidades (dos quais se presume apenas uns 20 permaneçam vivos).
Os países da UE, o Reino Unido ou o Canadá acusam Israel de se comportar de forma “inaceitável”. Netanyahu diz que não abdica de controlar Gaza
As críticas à decisão de Netanyahu de “tomar o controlo” do território que Israel descolonizou há duas décadas, por vontade de um dos seus antecessores mais polémicos e que sempre lutou contra a existência de um Estado soberano palestiniano (Ariel Sharon), são agora mais que muitas. Vários países da União Europeia defendem a aplicação de sanções ao regime de Telavive, a suspensão imediata do acordo de associação com Bruxelas (29% das exportações israelitas têm o espaço comunitário como destino) e, claro, um embargo de material bélico. França, Reino Unido e Canadá admitem vir a reconhecer a Palestina como Estado independente ‒ 147 dos 193 Estados-membros da ONU já o fizeram ‒, enquanto a Suécia, por intermédio da sua ministra dos Negócios Estrangeiros, Maria Stenergard, admite adotar medidas especiais contra todos os dirigentes israelitas responsáveis pela atual vaga de violência e porque “o território de Gaza não pode ser modificado nem reduzido”. Em declarações por telefone à alemã Deutsche Welle, Alaa Moein, 35 anos, um antigo residente de Jabalia, revela estar farto de promessas: “Nós vivemos num inferno. A segurança e a vida aqui já não fazem sentido. Todos os dias receio vir a morrer com a minha mulher e os nossos três filhos. À noite, quando conseguimos adormecer, sabemos que poderemos não voltar a acordar”.
Estatísticas
Terror
Alguns números da catástrofe iniciada a 7 de outubro de 2023
55 000
Total de mortos palestinianos de Gaza (53 mil) e israelitas (1500), desde os ataque do Hamas, há 19 meses
125 000
Feridos, militares e civis, do conflito
6 500
Estimativa de palestinianos de Gaza que ficaram estropiados e necessitam de próteses
71 000
Número de crianças palestinianas, com menos de cinco anos, que já sofrem de subnutrição aguda, segundo a OMS
57
Crianças palestinianas que morreram de fome desde março, quando Israel proibiu a entrada de água, comida e medicamentos em Gaza
470 000
Palestinianos que estão já numa situação de insegurança alimentar crítica (nível 5, o mais grave). Toda a população do enclave (2,1 milhões) perdeu o acesso regular e diário a comida