Há situações e frases que nunca esquecemos, e nem precisam de ser maravilhosas ou traumáticas. Talvez isso aconteça por nos terem marcado particularmente ou porque as memórias estão cheias de conexões em diferentes regiões do cérebro, tornando-se, por isso, difícil de serem apagadas. O certo é que elas por vezes parecem indeléveis.
No final de janeiro de 2002, o último mês de vida da minha avó Germana, lembro-me de que os portugueses andavam aflitos a fazer contas. O euro acabara de substituir o escudo, muitos preços haviam duplicado de um dia para o outro e o País atravessava uma crise política por causa da hecatombe do PS nas autárquicas de dezembro anterior. A recente invasão do Afeganistão, por parte dos Estados Unidos da América, na sequência do 11 de Setembro, fomentara um clima de incerteza no mundo.
Hoje, nem preciso de fechar os olhos para voltar a ver a minha avó de comando da televisão na mão, a carregar no botão off, invariavelmente num desabafo: “É só desgraças nas notícias, que aflição.” Ao longo dos seus 92 anos, passara por duas guerras mundiais, uma revolução e mudanças sociais gigantes. Era uma mulher extraordinariamente jovial para a idade, que se fora adaptando e evoluindo, mas o mundo parecia-lhe cada vez mais um lugar estranho e perigoso.
“ANSIEDADE IRRACIONAL”
Essa imagem surgiu-me agora como um flash ao ler o historiador Felipe Fernández-Armesto, numa entrevista ao El País, falar sobre os receios que a vida em permanente mudança, cada vez mais acelerada, desperta. E ensinando a ultrapassar aquilo que chama de “ansiedade irracional”.
“Estamos a mudar a um ritmo sem precedentes na História do mundo. Isso preocupa as pessoas, que sentem que podem perder o fio da sua identidade, as suas tradições, a sua cultura… Para alguns, a chegada dos imigrantes é uma ameaça. Esta é uma época de ansiedade irracional. Devemos adaptar-nos mentalmente à nova situação”, aconselhava o conhecido ensaísta britânico, nascido em Londres e filho de dois jornalistas espanhóis.

Para Felipe Fernández-Armesto, essa adaptação passa por compreender que a mudança e as causas da sua aceleração se devem, em grande parte, às trocas culturais provocadas pela globalização. “Quando tivermos compreendido isso, talvez possamos acalmar-nos. Quando compreendemos algo, não ficamos tão assustados. As pessoas ficam mais descontraídas”, lembrava.
A ideia de ansiedade irracional apresentada pelo historiador britânico é mais atual do que nunca. No entanto, esta entrevista ao El País foi feita em junho de 2016, por altura da publicação em Espanha do seu livro A Foot in the River: Why Our Lives Change – and the Limits of Evolution (à letra, Um Pé no Rio: Porque é que as nossas vidas mudam – e os Limites da Evolução). Dali a cinco meses, os americanos iriam escolher Donald Trump para Presidente – tal como o fizeram agora.
Será a História a repetir-se? Ou estaremos a viver num continuum? E por que razão se mantém a sensação de que os imigrantes constituem uma ameaça? Por fim, ou antes de mais nada, o que tem isto que ver com a ansiedade?
Tem tudo – e em várias camadas.
ALERTA PARA FUGIR OU LUTAR
Para começar, devemos perceber que a ansiedade é uma resposta natural à incerteza e que todos nós a experimentamos na vida. Estamos quase que programados para isso – para reagir e para aumentar o foco. É uma espécie de preparação do cérebro para o desconhecido.
Tudo começa na amígdala, a parte do cérebro onde se processam as emoções, que está especialmente ativa durante os estados de medo e de ansiedade. É graças a ela que nos apercebemos das ameaças à nossa sobrevivência e ficamos alerta para fugir ou lutar.
A ansiedade pode ser adaptativa, empurrando-nos para a ação, para reagir a situações adversas. Ou pode levar a um evitamento de situações, uma espécie de precipitação, em que tomamos decisões precipitadas, de fuga para a frente.
“Essa é a ansiedade normal, que faz parte do ser humano, dos desafios do dia a dia, e que desaparece a seguir a esse momento”, nota Ana Carina Valente, psicóloga e professora no ISPA – Instituto Universitário, em Lisboa. “Mas se hoje se fala cada vez mais de ansiedade é porque, desde a pandemia, os níveis têm estado a aumentar e muitas vezes há uma passagem para uma ansiedade patológica, ou seja, uma ansiedade persistente, intensa, que nos faz sofrer por antecipação e tem impacto negativo no nosso dia a dia. Com alterações do sono, do apetite, fobias associadas.”

Passámos por uma pandemia e, a seguir, o mundo não tem sido simpático para nós (uma guerra, depois outra…). Vivemos numa época de incerteza e incógnita e sentimos que não temos controlo. “Como não tenho controlo, tenho níveis de ansiedade muito elevados e, quanto mais tempo eu estiver com níveis elevados de ansiedade, maior probabilidade de ela se tornar patológica – e, aí, estamos a falar de doença. Claro que temos mecanismos de adaptação, mas nem sempre são suficientes”, lembra a mesma especialista.
Enquanto professora, Ana Valente sabe que os estudantes universitários andam particularmente ansiosos – e cada vez mais. “Quando temos a vida virada ao contrário, sofremos. As guerras não estão aqui mesmo ao lado, mas os jovens não sabem se vão ter trabalho, se vão poder ter filhos, comprar casa. A falta de confiança diminui a saúde psicológica de um modo geral, e, quanto mais esta conjuntura é prolongada no tempo, mais probabilidade de se desenvolver uma patologia.”
Este ano letivo, o ISPA criou, por isso, o UNI.R, um projeto que tenta pegar em todos os dispositivos da universidade. “O poder político lançou o cheque de saúde mental para os estudantes universitários, mas o Serviço Nacional de Saúde não tem uma resposta eficaz”, alerta a psicóloga. “Uma ansiedade grave tem uma espera de um ano e meio. Ou vai para o privado e paga ou… o SNS não ajuda.”
RAIVA E VIOLÊNCIA
A incerteza é um dos gatilhos, como já se viu. E para Sofia Ramalho, bastonária da Ordem dos Psicólogos Portugueses, o facto de hoje termos acesso a muita informação significa mais incerteza. “A ansiedade é intensificada pelas crises, mas também pela sobrecarga de informação a que estamos sujeitos e a muito mais desinformação”, sublinha. “As pessoas ficam expostas a mensagens mais alarmistas e têm dificuldade em perceber o que é ou não verdade, e isso gera ansiedade e incapacidade de tomar decisões. A ideia de que os políticos não dão respostas ao que sentem como insegurança leva a que deixem acreditar neles e nas instituições.”
Entra-se, então, num círculo vicioso e cai-se facilmente na polarização, porque a ansiedade coletiva amplifica as divisões e leva a mecanismos mais extremistas, de raiva e de violência. “As pessoas tomam decisões muito mais irracionais e baseadas no medo. Isto significa que a desinformação é ela própria um problema de saúde mental, porque aumenta a ansiedade. A luta pela saúde mental está ligada a uma luta por uma informação mais responsável, clara, informativa. Caso contrário, a informação adoece”, alerta Sofia Ramalho.
Como gerir a ansiedade financeira
Algumas estratégias aconselhadas pela Ordem dos Psicólogos Portugueses
Aceitar as emoções
Ficarmos tristes, com medo, frustrados ou zangados faz parte do processo de lidar com uma situação financeira frágil
Sentir gratidão
Ajuda olhar para aquilo que já conquistámos e que mantemos, e no apoio que temos para ultrapassar os momentos mais difíceis
Redefinir necessidades
Podemos pensar numa outra altura em que tivemos menos dinheiro – o que nos dava prazer então? Qual era o sentido da nossa vida?
Comparar com outros
Pode ser útil compararmo-nos com alguém que tem menos do que nós e perguntarmo-nos como farão essas pessoas para lidar com as dificuldades
Pensar no pior cenário
Parece contraintuitivo, mas planear e prever as nossas respostas a situações difíceis pode ajudar-nos a sentir mais controlo
Enfrentar medos
Se lidarmos com o facto de nos estarmos a endividar, podemos pedir ajuda e analisar a melhor forma de gerir as nossas dívidas
Banir a vergonha
É importante lembrarmo-nos de que não estamos sozinhos – há muitas outras pessoas a passar por dificuldades financeiras
“Isto significa que é muito urgente que se coloque a saúde psicológica no topo do debate político e social. Ela tem de ser uma prioridade na agenda política, mas na prática. Não apenas na teoria”, ressalva a bastonária. “O Estado tem responsabilidades para cumprir nesta área e também as instituições e os media – para criar contextos de estabilidade e mais promotores da saúde mental.”
“Precisamos de políticas para proteger as pessoas quando estão em situação de mais vulnerabilidade, porque a ansiedade é muitas vezes um sintoma das desigualdades e de falta de oportunidades. Precisamos de promover a resiliência da população portuguesa – e não é ignorando a ansiedade, mas sim ensinar a viver com ela. Recorrendo a uma metáfora: temos ajudar as pessoas a surfar nas ondas na vida, em vez de elas serem arrastadas numa onda.”
Hoje, já toda a gente consegue identificar sintomas de ansiedade, até as crianças. As que nunca lhe tinham posto nome, riram-se e interiorizaram a informação passada no filme Divertida-Mente 2 (estreado no verão passado), em que Riley, agora uma adolescente de aparelho nos dentes, fica tão dominada pela ansiedade que chega a ter um ataque de pânico durante um jogo de hóquei no gelo.
Mais impositiva do que as também novíssimas Vergonha, Inveja e Tédio, a Ansiedade rapidamente assume o controlo da mente de Riley, reprimindo as boas emoções (num frasco). A miúda é, então, inundada por cenários hipotéticos negativos e todos nós sofremos juntos até ela conseguir deixar de acordar a dizer “Sou horrível!”, ideia alimentada por aquela espécie de duende cor de laranja maníaco, de cabelo em pé.
O filme mostra que a ansiedade é uma emoção natural, que tem muitas vezes um objetivo positivo, desde que não tome conta da nossa vida – de uma maneira negativa, claro. Porque uma coisa é sentir ansiedade, outra completamente diferente e preocupante é ela ser patológica, vale a pena frisar.
ANSIEDADE E LIBERDADE
O problema parece ser global. “Ansiedade” foi a palavra de 2024 eleita por 22% dos brasileiros, de acordo com um estudo realizado pela consultora Cause, em parceria com o Instituto de Pesquisa Ideia e a app PiniOn. Segundo o mesmo levantamento, logo a seguir foram mencionadas “Resiliência” (21%), “Inteligência Artificial” (20%), “Incerteza” (20%) e “Extremismo” (4%).”
O facto de “resiliência” e “incerteza” estarem no pódio é sintomático destes tempos, acredita o cientista político brasileiro Leandro Machado, sócio-fundador da Cause. A escolha da palavra “ansiedade” reflete o “espírito de uma era de transformações rápidas e, muitas vezes, desorientadoras”, disse, na apresentação dos resultados do estudo, em dezembro.
“No Brasil, assim como no mundo, as pessoas deparam-se com uma necessidade urgente de adaptação. A pressão da economia, a presença crescente da Inteligência Artificial e as ameaças ambientais formam um cenário em que a população sente que está sempre um passo atrás, procurando equilíbrio num futuro cada vez mais incerto”, analisou.

Em Portugal, a palavra de 2024 foi “liberdade” – tinha de ser, pois celebraram-se os 50 anos do 25 de Abril. Na eleição online promovida pela Porto Editora e a Infopédia, ela recebeu 22% dos votos, seguida de perto por “conflitos” (21,3%) e “imigração” (21,2%), o que ninguém estranhou. A imagem de dezenas de homens imigrantes encostados à parede por agentes da PSP, na Rua do Benformoso, em Lisboa, estaria bem fresca na memória de quem votou ao longo de dezembro.
Em 2024, não se terá falado abundantemente de ansiedade nos meios de comunicação social nem nas redes sociais; nem a palavra foi muito consultada nos dicionários online daquela editora. Mas poderia ter sido, porque Portugal é um país ansioso sabem os especialistas na sua experiência clínica – e confirmam-no as estatísticas.
MULHERES NA FRENTE
De acordo com o último Inquérito às Condições de Vida e Rendimento, do Instituto Nacional de Estatística, em 2023 mais de um terço da população (34,2%), com 16 ou mais anos, revelava sintomas de ansiedade generalizada, o que corresponde a um resultado de 3 ou mais pontos, no modelo adotado (Generalized Anxiety Disorder 2-item ou GAD-2). E, desses, 11,1% apresentavam níveis de ansiedade mais graves, ou seja, correspondentes a 6 pontos (que é o resultado máximo do GAD-2).
Os dados do inquérito sugerem ainda que as mulheres e os mais velhos têm maior probabilidade de apresentar sintomas de ansiedade generalizada, assim como os menos escolarizados e os desempregados. Ela foi referida em proporções superiores pelas mulheres (40,1% contra 27,4% dos homens) e na população com 65 ou mais anos (38,4% contra 32,3% entre os 16 e os 64 anos).
Olhando para o nível de escolaridade, a proporção de pessoas com 16 ou mais anos com sintomas de ansiedade generalizada era menor para as que haviam completado o Ensino Superior (28,0%) ou o Ensino Secundário (29,2%), comparando com as que não tinham qualquer nível de escolaridade (49,3%) ou que se tinham ficado pelo Ensino Básico (38,7%).
Uma nação ansiosa
Um terço da população tem sintomas de ansiedade
34,3% Pessoas de 16 ou mais anos
Com ansiedade generalizada
11,1%
Têm níveis de ansiedade graves
40,1% Mulheres
Com ansiedade generalizada
27,4% Homens
Com ansiedade generalizada
30,1% População empregada
Com algum transtorno de ansiedade
Fonte: INE, Inquérito às Condições de Vida e Rendimento (2023)
Quase metade dos desempregados (45,1%) sentia ansiedade generalizada, bem como quase um terço dos empregados (30,1%). E os reformados não escapavam a esta “pandemia” (37,4%), nem a restante população inativa (44%).
“Situações de insuficiência alimentar, de doença crónica ou prolongada e a existência de limitações por motivos de saúde contribuem para o aumento da probabilidade de ocorrência de sintomas de ansiedade generalizada”, sublinha-se, ainda, no relatório do INE.
A prevalência da ansiedade entre as mulheres não surpreende ninguém – é um facto, já bem interiorizado, que ela afeta particularmente um dos géneros. Mas porque há tantas mulheres à beira de um ataque de nervos, para parafrasear Pedro Almodóvar?
“As mulheres têm mais stresse que se torna em ansiedade e eu acredito que as razões têm que ver com o estilo de vida e os papéis que assumem no dia a dia”, simplifica a psicóloga Ana Carina Valente. “Muitas vezes, nós, mulheres, precisamos de antecipar toda uma série de acontecimentos – e é nessa antecipação que surge a ansiedade”, resume.
Talvez a solução seja embarcar numa egoterapia, defende a psicanalista francesa Corinne Maier, autora de #MeFirst! Manifeste pour un Égoïsme au Féminin (#EuPrimeiro! Manifesto para um Egoísmo Feminino), uma reflexão sobre o sacrifício altruísta das mulheres, publicado em 2024. “O egoísmo é um traço de caráter muito bem aceite nos homens, tolerado e até valorizado, mas, quando as mulheres vivem para si próprias, são suspeitas de trair a sua natureza supostamente maternal e protetora”, escreve a também economista e historiadora.
Num tom de ensaio bem-disposto, Maier vira de pernas para o ar o estigma de que é mau alguém ser egoísta – e sobretudo se for mulher. Com o objetivo de conseguir, assim, reequilibrar as relações entre homens e mulheres, e, de caminho, preservar a saúde mental destas últimas.
“Tentei reabilitar o egoísmo para as mulheres: cuidar dos outros consome muito tempo e pode implicar sacrifício pessoal. É preciso fazer tudo o que for possível para o evitar”, explica a autora deste manifesto feminista, considerada um “ícone da contracultura” pelo The New York Times.
“Aqueles que gostam do mundo como ele é – que dizem ‘sim’ às bombas lançadas em nome da democracia, aos oceanos poluídos com bocados de plástico, às crianças deslocadas num mundo sobrepovoado – passem à frente e vão ler as palavras dos outros”, incita na sua página pessoal. “Infelizmente, há cada vez menos riso por cá; e o planeta não está muito bem”, escreve a psicanalista.
O MEDO NA AMÉRICA
As alterações climáticas são tão graves que justificam a existência de ecoansiedade – e, neste caso, dificilmente se pode falar de “ansiedade irracional”. Mas como se justifica a “ameaça imigrante”?
Voltemos atrás, à origem primitiva da ansiedade – o medo – e ao exemplo americano.
Em oito anos e meio, vimos o “fenómeno Trump” resultar na eleição do famoso multimilionário. Após um interregno protagonizado por Joe Biden, ei-lo de novo como inquilino da Casa Branca, agora numa versão 2.0 de “grande conquistador”.
De caminho, a polarização partidária, que se tornou evidente desde a sua primeira campanha presidencial, não tem parado de aumentar. Os EUA nunca estiveram tão partidos em dois como hoje, sentem na pele os americanos (sobretudo os Democratas, que não viram Kamala Harris ser eleita) e alertam analistas e investigadores.
Os efeitos negativos da política no bem-estar da população também não têm parado de aumentar. Nos últimos anos, os resultados dos inquéritos promovidos pela Associação Americana de Psiquiatria (APA) em vésperas das idas às urnas permitem fazer uma ligação direta entre política e ansiedade, sobretudo num cenário “nós contra eles” (Ver caixa Quando as eleições ameaçam a saúde mental).
A diferença é aquilo que está na base de grande parte dos nossos medos e consequentes ódios. Desde tempos imemoriais que o Homem associa o diferente a uma ameaça. De um ponto de vista evolutivo, a pertença a um grupo foi necessária à sobrevivência humana – e o ódio não é senão uma distorção da tendência de o Homem distinguir “nós” de “eles”.

“Qualquer espécie sabe que precisa de espaço e de meios de subsistência para sobreviver, e o ódio tem que ver com a luta pelos meios escassos, tão escassos que não é possível dividir com os outros”, lembrou a antropóloga Clara Saraiva, investigadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, entrevistada para um artigo sobre gratidão e ódio publicado há um ano na VISÃO.
Hoje, também se sabe que a amígdala evoluiu há centenas de milhares de anos e serve para nos manter seguros. E que, embora ninguém nasça com o cérebro carregado de ódio e preconceitos, “nascemos com um cérebro que revela a predisposição para distinguir entre ‘nós’ e ‘eles’”, escreve o criminologista britânico Matthew Williams, no seu best-seller A Ciência do Ódio – Como o preconceito se transforma em ódio e o que podemos fazer para travá-lo. “Mas quem somos ‘nós’ e quem são ‘eles’ é algo que se aprende, não vem de origem.” Está provado que o preconceito aprende-se ou inculca-se. E que também se contraria e trava, lembrou Williams nesse livro que a Contraponto editou em português, em 2022.
“A sociedade evoluiu, mas o nosso cérebro ainda precisa de tempo para se adaptar”, lembra, por sua vez, o psiquiatra Pedro Morgado (ver entrevista). “Por isso, precisamos de humanismo, de pensamento, para mediar e controlar as nossas reações fisiológicas.”
Hoje, a comunidade científica também já sabe de cor que o medo e a ansiedade levam ao conservadorismo. São vários os estudos a apontar nesse sentido e sustentados em evidências físicas. Em 2011, numa primeira investigação realizada com o auxílio de imagens cerebrais de ressonância magnética, verificou-se que os alunos universitários que se identificavam como politicamente conservadores tinham uma amígdala maior.
A PROTEÇÃO DO CONSERVADORISMO
Faz sentido porque a amígdala controla a perceção e a compreensão das ameaças e da incerteza do risco. E, perante a incerteza, as pessoas procuram a segurança, agarrando-se àquilo que conhecem (ver caixa Pessoas de direita e de esquerda têm cérebros diferentes?).
“O conservadorismo aparentemente ajuda a proteger as pessoas contra algumas dificuldades naturais da vida”, já escreveu Paul Nail, psicólogo social da Universidade de Arkansas Central, nos EUA, e autor de vários estudos sobre o tema. “O facto é que não vivemos num mundo completamente seguro. As coisas podem correr mal e correm. Mas se eu conseguir impor esta ordem através da minha visão do mundo, consigo manter a minha ansiedade a um nível controlável.”
Virando as coisas ao contrário, uma amígdala maior pode criar mais sensibilidade e levar a que os indivíduos exagerem tudo o que parece uma potencial ameaça – seja ela real ou não. E, sabendo isso, torna-se fácil manipular o medo desproporcional.
As “políticas do medo” não são de hoje. Elas “são resultado de múltiplos fatores históricos, entre os quais o crescente encontro da diferença”, lembraram os investigadores e historiadores José Pedro Monteiro e Miguel Bandeira Jerónimo, num ensaio sobre “os mundos da ansiedade”, publicado a 1 abril de 2018 no jornal Público.
Por essa altura, Trump levava mais de um ano à frente dos destinos dos EUA. Já vendera milhares de milhões de armas à Arábia Saudita, reconhecera Jerusalém como capital de Israel, acirrando o conflito na região, e dera uma ordem executiva de construção de um muro na fronteira México-EUA. Não admira, por isso, que os dois investigadores portugueses tivessem como objetivo “sinalizar como as políticas do medo podem ser, hoje, facilmente reavivadas”.
“O exagero desproporcionado da ameaça, o estereótipo e unificação do ‘inimigo’ enquanto forma absoluta do mal, as imagens de civilizações decadentes ou emasculadas permanentemente acossadas, a ligeireza no recurso a sentenças apocalípticas são algumas das suas manifestações mais comuns. E elas abundam, um pouco por todo o lado”, alertavam José Pedro Monteiro e Miguel Bandeira Jerónimo.
HOJE COMO HÁ CEM ANOS
As chamadas políticas do medo “nascem do estereótipo e do rumor”, lembravam ainda os dois investigadores. “Decorrem de simplificações de vária ordem, da redução de problemas a explicações monocausais ou da sua claríssima manipulação interesseira. Promovem ‘soluções’ que frequentemente ampliam o problema que declaram resolver.”
Regressando ao presente, o historiador Luís Trindade relaciona o período que estamos a viver com o período de há cem anos, no pós-I Guerra Mundial. “Na maior parte dos casos, os paralelismos são um pouco abusivos, mas [neste] é possível pensar como há diversas questões sociais que justificam a emergência do fascismo”, defende.
“Em relação à ansiedade e aos medos, hoje em dia vivemos num mundo completamente diferente. Seguramente, há cem anos as pessoas tinham muito mais medo da doença, da dor e da morte. E, certamente, tinham muito mais medo do poder – que era mais arbitrário e violento”, analisa o investigador do Instituto de História Contemporânea e do IN2PAST (laboratório associado que se dedica à memória e património).

“Isso pode levar a pensar que as pessoas não têm razão para ter medos agora – mas têm”, sublinha. “Estamos num mundo muito diferente, assumimos os nossos direitos políticos, temos o SNS e a Segurança Social. Já temos direito ao nosso bem-estar – e é o que muda. As expetativas são muito mais elevadas e isso cria novos medos.”
As pessoas acreditavam que esses direitos estavam garantidos e agora veem que estão ameaçados. “Há um slogan que aparece muito nas manifestações, nos Estados Unidos e pela Europa fora: I can’t believe I still have to protest this shit [Não acredito que ainda tenho de protestar contra esta merda]”, lembra Luís Trindade. “O facto de esses direitos estarem em causa provoca ansiedade, claro.”
RICOS E ANSIOSOS
Para Mark Manson, autor do livro A Arte Subtil de Saber Dizer que se F*da (ed. Desassossego), é tudo uma questão de “gestão de expetativas”. E serão as expetativas que explicam por que razão está hoje o mundo tão ansioso.
“De certa forma, a ansiedade é apenas o custo de uma vida mais fácil fisicamente”, afirmou Manson à CNN, numa passagem por Portugal, em julho do ano passado, para realizar um documentário sobre “o País mais ansioso do mundo”, titulou ele, que já está disponível no YouTube.
“À medida que as pessoas são expostas a mais informação e à medida que a situação da sua vida pessoal melhora, começam a cuidar de si e aumentam as suas expetativas”, lembrou, então, o mesmo autor. “Quando se é pobre, só se quer comida e dinheiro e um lugar seguro, mas quando se tem riqueza e oportunidades, surge de repente esta questão de saber o que devo fazer, se isto é melhor do que aquilo, se estas pessoas são melhores do que aquelas. E uma coisa que vemos na nossa vida é que, à medida que os países se tornam mais ricos, tornam-se mais ansiosos.”
A ansiedade será, então, o preço a pagar pela evolução? Se fosse tudo tão simples e a preto-e-branco, bastar-nos-ia respirar fundo e acreditar que nem tudo está a arder.
10 técnicas para reduzir a ansiedade
Aprenda a acalmar-se rapidamente
1. Respiração profunda
Inspire 4 segundos, prenda a respiração 7 segundos e expire 8 segundos. Repita até começar a sentir calma
2. Nomear o que se está a sentir
Reconheça a ansiedade pelo que ela é – um estado temporário que nem sempre reflete a realidade
3. O método 5-4-3-2-1
Diga 5 coisas que vê à sua volta, 4 coisas em que pode tocar, 3 coisas que ouve, 2 coisas que cheira e 1 coisa que saboreia dentro da sua boca
4. Experimentar “arquivar”
Imagine um armário e atribua cada pensamento a um ficheiro. Reconheça a sua importância e coloque-o de lado para ser tratado mais tarde
5. Exercício físico
Uma caminhada de 5 minutos ou um treino no ginásio pode ajudar a reduzir a ansiedade, libertando endorfinas (que ajudam a relaxar)
6. Pensar em algo engraçado
Ao desencadear emoções positivas e reduzindo as hormonas do stresse, o humor pode influenciar o seu bem-estar físico e mental
7. Procurar distrair-se
Uma distração temporária pode ajudar a quebrar o ciclo de pensamentos ansiosos e a recuperar a sensação de controlo
8. Salpicar água fria
Água na cara desencadeia o reflexo de mergulho dos mamíferos, que pode ajudar a abrandar o ritmo cardíaco e a promover uma sensação de calma
9. Identificar os gatilhos
Mantenha um diário para identificar situações ou experiências que desencadeiam a sua ansiedade. E incorpore rotinas de autocuidado
10. Considerar o apoio profissional
Muitos tipos de terapia podem ajudar a gerir a ansiedade e a ocorrência de ataques de pânico, que resultam de sintomas avassaladores
Fonte: Psych Central, site fundado pelo psicólogo clínico John M. Grohol, pioneiro da saúde mental online
A guerra das tarifas
Trump ameaça eliminar as diferenças entre as taxas alfandegárias com a União Europeia – mais um foco de ansiedade na nossa vida
A espada já pende sobre as nossas cabeças desde 14 de janeiro, mas não estava tão afiada. Nesse dia, Donald Trump escreveu na sua rede social, Truth Social: “Vamos começar a cobrar àqueles que lucram às nossas custas com o comércio. Eles começarão a pagar, FINALMENTE, a parte que lhes cabe.” A sua tomada de posse seria só dali a uma semana, mas o Presidente eleito tinha pressa de lembrar quem queria, podia e mandava nas relações comerciais entre os Estados Unidos da América e o resto do mundo. E parecia que estava a tomar uma decisão justa. Puro engano. Trump apressou-se a impor tarifas (taxas alfandegárias) de 10% sobre a China e de 25% sobre o Canadá e o México. Pouco depois, assinou uma ordem executiva para impor tarifas de 25% sobre as importações de aço e alumínio, com efeitos a partir de 4 de março, e as ações caíram imediatamente, o ouro atingiu um novo máximo e o euro deslizou em relação ao dólar. Como se ainda não bastasse, já anunciou um memorando para impor, a partir de 2 de abril, um regime de “reciprocidade” das tarifas a todos os países fornecedores. A União Europeia hesita entre retaliar ou negociar, de maneira a evitar um aumento dos preços. Reina a incerteza na relação EUA-UE.