O Kia EV Day 2025 foi o evento escolhido pela fabricante para mostrar a estratégia no que toca a veículos elétricos. A marca anunciou, em Espanha, os novos modelos EV4, PV5 e o Concept EV2, propostas que reforçam a eletrificação da marca e a “determinação em imprimir um novo ímpeto ao mercado global de EV [veículos elétricos]”, cita o comunicado.
O Kia PV5 é o primeiro modelo da gama PBV (de Platform Beyond Vehicle) e sublinha a rápida expansão da marca no segmento de soluções de mobilidade personalizada. Este veículo foi construído a partir de uma plataforma específica que abriu portas para outros desenvolvimentos em termos de hardware, software e processos de fabrico, desempenhando um papel fundamental no avanço e transformação do mercado.
Já o EV4, mostrado como concept car no Kia EV Day de 2023, é o primeiro sedan hatchback 100% elétrico da marca. Este modelo tem funcionalidades inovadoras orientadas para a família e que permitem satisfazer uma gama alargada de clientes.
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Por seu lado, o Kia Concept EV2 é a antevisão de um novo SUV elétrico de segmento B que deve ser o próximo membro da família Kia EV. O esforço aqui é para tornar os automóveis elétricos mais acessíveis e com equipamentos e funcionalidades que vão além da sua classe.
Durante o EV Day, a Kia expôs um total de nove veículos, com o Concept EV2 a ser mostrado ao lado de quatro exemplares do EV4 (dois sedans e dois hatchbacks) e outras quatro variantes do PV4 (Cargo, Passenger, Wheelchar Access Vehicle e Crew).
Durante o evento, a marca apresentou a arquitetura E-GMP.S (Plataforma Modular Global Elétrica para Serviço) da gama PBV que permite configurações flexíveis através de um sistema de carroçaria modular e o AddGear, que permite aos clientes personalizar os seus modelos Kia PBV com uma vasta gama de acessórios para expandir a sua adaptação e necessidades específicas de uso pessoal ou profissional. Em paralelo, foi anunciada uma parceria com a Samsung Electronics que inclui a introdução do SmartThings Pro, um sistema otimizado de Internet das Coisas para PBV que oferece serviços Plug&Play.
O que já seria, em circunstâncias normais, uma espinhosa alteração à lei – por mexer com interesses imobiliários – tornou-se um novelo de suspeitas e ligações cinzentas que afetou a cúpula do Governo. Aqui fica o essencial sobre a polémica Lei dos Solos.
1 O que é a “Lei dos Solos”? A nova Lei dos Solos consiste no Decreto-Lei n.º 117/2024, de 30 de dezembro de 2024, que altera o Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (RJIGT). Entrou em vigor a 29 de janeiro de 2025 e permite a reclassificação simplificada de terrenos rústicos em urbanos, para construir habitação em locais onde, até aqui, a edificação não era permitida. A medida faz parte do programa “Construir Portugal”, anunciado em maio de 2024, e pretende aumentar a oferta de casas a preços acessíveis.
2 O que está na base desta iniciativa? O Programa de Governo. O preâmbulo do decreto-lei explica que o Executivo prevê “orientar o planeamento do uso do solo para dar satisfação às prementes necessidades de habitação, bem como às atividades económicas, com respeito pela salvaguarda dos recursos naturais”. Tendo em conta a necessidade de garantir um aumento da oferta de habitação que acompanhe a procura, continua o documento, “foi aprovado o plano ‘Construir Portugal’ que visa, entre outras metas, a promoção da construção de habitação pública e acessível, a custos controlados, bem como a criação de soluções de venda a preços compatíveis com a capacidade financeira das famílias”.
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3 Mas o problema da falta de oferta está na construção? Além do aumento da procura, devido à imigração, é inegável que há uma clara crise de construção em Portugal. O decreto-lei dá um exemplo, comparando 2002 com o ano passado: passámos de 125 mil fogos construídos num ano para 22 mil. Quase seis vezes menos. Na origem desta queda drástica está sobretudo a crise de 2008-2010, que paralisou o setor imobiliário e praticamente fez colapsar a construção. Na altura, muitos trabalhadores procuraram outras áreas ou emigraram – e inúmeras pequenas e médias empresas de construção encerraram. O Sindicato da Construção de Portugal aponta para um défice atual de 90 mil trabalhadores qualificados.
Conflito de interesses Castro Almeida, ministro com a pasta da Lei dos Solos, vendeu a sua participação numa empresa imobiliária já depois da demissão de Hernâni Dias Foto: ANTÓNIO PEDRO SANTOS/LUSA
4 Como é que a reclassificação de terrenos rústicos em urbanos ajuda a resolver este problema? O Governo e representantes do setor acreditam que o preço elevado dos terrenos fez aumentar exponencialmente o investimento inicial das empresas, que, por isso, deixaram de considerar atrativo o mercado de classe média e média-baixa e concentraram-se na habitação de luxo. No decreto-lei, admite-se que o custo dos terrenos não são “um fator exclusivo” da crise na construção, mas acrescenta-se que “a maior disponibilidade de terrenos facilitará a criação de soluções habitacionais que atendam aos critérios de custos controlados e venda a preços acessíveis”.
5 E como é que esta Lei dos Solos vai fazer diminuir o preço dos terrenos? Apoia-se na lei da oferta e da procura: se houver mais terrenos onde é permitido construir, o seu valor tenderá a baixar, reduzindo o investimento inicial das empresas e assim estimulando a construção para a classe média. A lei, no entanto, não entrega tudo nas mãos ávidas do mercado: a reclassificação dos terrenos para uso urbano está “limitada aos casos em que a finalidade seja habitacional ou conexa à finalidade habitacional e usos complementares, sujeitando-se, ainda, ao cumprimento cumulativo de um conjunto de requisitos que visam salvaguardar a preservação dos valores e funções naturais fundamentais”. As novas normas têm de assegurar que 70% “da área total de construção acima do solo se destina a habitação pública ou a habitação de valor moderado.”
6 Qual o impacto desta iniciativa legislativa no preço da habitação? As estimativas do Governo apontam para uma redução de 20% no preço das novas casas nas áreas metropolitanas e nas capitais de distrito (preço esse que é 50% superior ao das casas usadas, segundo o INE), ajudando, espera-se, a combater a especulação imobiliária e a baixar os preços da habitação em geral. “Poder comprar casas novas em que o limite máximo de preço fica 20% abaixo dos atuais preços de mercado não só previne como impede a especulação”, afirmou o ministro da Coesão Territorial, Manuel Castro Almeida. Os preços das casas devem respeitar um teto máximo, baseado em 125% do valor mediano de venda de habitação nova no concelho.
7 O que significa reclassificar terrenos rústicos em urbanos e como se processam estes casos? Terrenos rústicos são áreas destinadas à agricultura, pecuária, silvicultura ou conservação ambiental; terrenos urbanos são aptos para construção habitacional ou industrial. Com a nova lei, as câmaras podem propor às assembleias municipais a reclassificação de solos rústicos em urbanos, sem necessidade de aprovação de instâncias superiores, como as Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR). A requalificação, contudo, “depende da existência, na continuidade da área abrangida, de um regime de uso do solo que permita uma unidade harmoniosa” e o acesso a infraestruturas básicas, como água, eletricidade e saneamento – que seja compatível, portanto, com as áreas urbanas existentes.
Rural para urbano Ambientalistas temem perdas para os ecossistemas e para a biodiversidade, além da abertura de novas portas para casos de corrupção. Foto: NUNO VEIGA/LUSA
8 Há prazos para a construção em terrenos requalificados? Após a reclassificação, as obras devem ser concluídas no prazo de cinco anos. O prazo pode ser prorrogado uma vez, por razões excecionais e desde que a construção já tenha começado. O objetivo é evitar que terrenos sejam classificados para especulação imobiliária e sem aproveitamento efetivo, obrigando as empresas a acelerarem os trabalhos, para que a oferta de habitação cresça mais rapidamente.
9 Qualquer terreno agrícola pode, então, ser reclassificado pelas autarquias como urbano? Não. A lei exclui as terras e os solos rústicos de Reserva Agrícola Nacional (RAN) com aptidão elevada para o uso agrícola (A1, A e B). No caso da Reserva Ecológica Nacional (REN), há também várias restrições, que incluem faixas marítimas e terrestres de proteção costeira, praias, sapais, margens de cursos de água e zonas ameaçadas por cheias. Ficam igualmente excluídas áreas integradas no Sistema Nacional de Áreas Classificadas (áreas protegidas). O ministro Castro Almeida garante que, “para resolver todos os problemas da habitação no País, será preciso muito menos do que 1% de todos os terrenos rústicos disponíveis”.
10 Então qual é a razão para tanta polémica? Além das questões relacionadas com interesses imobiliários de deputados e membros do Governo, incluindo o primeiro-ministro (já lá vamos), há receios de que a nova lei incentive a especulação imobiliária em áreas agrícolas e ponha em causa valores naturais importantes. A autonomia dada às autarquias na reclassificação de terrenos é também alvo da preocupação por parte de muitos ambientalistas e de outros críticos, que temem perdas para os ecossistemas e para a biodiversidade, para lá da abertura de novas portas para casos de corrupção; argumenta-se que a lei pode gerar mais-valias milionárias para proprietários e construtores, sem garantir claramente habitação acessível, especialmente em zonas como Lisboa e Porto, onde há poucos terrenos rústicos. O Conselho Nacional do Ambiente e do Desenvolvimento Sustentável (CNADS) deu parecer negativo, por unanimidade, ao decreto-lei, invocando a “desregulamentação do sistema de gestão territorial, em detrimento da reforma da política de solos”.
11 Quais foram as reações na Assembleia da República? O Parlamento debateu o decreto-lei, após pedidos de apreciação parlamentar. Propostas de revogação do BE, PCP, Livre e PAN foram rejeitadas, mas o PS sugeriu alterações, aceites pelo PSD, como substituir “valores moderados” por “custos controlados” e “arrendamento acessível”, limitar a reclassificação à “inexistência de áreas urbanas disponíveis” e proibi-la em áreas de REN “estratégicas de infiltração e de proteção e recarga de aquíferos”, de “elevado risco de erosão hídrica do solo” e de “instabilidade de vertentes”. Soma-se ainda a exigência de pareceres das CCDR em certos casos. Essas mudanças estão em discussão na especialidade – era suposto a votação ter ocorrido no dia 19, mas foi adiada a pedido do Chega. Os municípios, contudo, já têm luz verde desde o final de janeiro para iniciar processos de reclassificação.
12 Li, ali atrás, qualquer coisa sobre interesses imobiliários de membros do Governo… A 27 de janeiro, o programa A Prova dos Factos, da RTP, noticiou que Hernâni Dias, secretário de Estado da Administração Local e Ordenamento do Território, criou duas empresas que poderiam vir a beneficiar com a nova Lei dos Solos – lei essa criada sob a alçada da sua secretaria de Estado. Hernâni Dias pediu a sua demissão ao primeiro-ministro, que a aceitou imediatamente.
13 Assunto arrumado, então? Nem de perto: a demissão do secretário de Estado foi só o início de uma controvérsia sobre interesses imobiliários que rapidamente atingiu o próprio Luís Montenegro, quando se descobriu que o primeiro-ministro fundou uma empresa de consultoria com atividade no ramo imobiliário (chamada Spinumviva), que hoje se encontra em nome da mulher e dos filhos. Foi mais do que suficiente para o Chega, embrulhado em sucessivos casos de crimes, ver aqui o que os outros partidos consideraram ser uma estratégia para desviar as atenções, avançando com uma moção de censura ao Governo por alegado conflito de interesses. Durante o debate, Montenegro esclareceu que a empresa “tem um vasto objeto social”, no qual se inclui “o comércio e a gestão de bens imóveis, próprios e de terceiros”. Considerou, no entanto, “manifestamente despropositado” chamar à Spinumviva uma empresa imobiliária. Entretanto, vieram à tona outros casos de ligações a imobiliárias, incluindo o próprio ministro da Coesão Territorial, Castro Almeida, e da ministra da Justiça, Rita Alarcão Júdice – além de quatro deputados do Chega…
Chamuscados pela lei
Devido à nova Lei dos Solos, os portugueses ficaram a perceber que muitos políticos têm ligações ao ramo imobiliário
Luís Montenegro O primeiro-ministro criou uma empresa de consultoria, com atividade na compra e venda de imóveis, que está hoje em nome da família. Montenegro garante que não há qualquer conflito de interesses.
Manuel Castro Almeida O ministro Adjunto e da Coesão Territorial, pasta responsável pela nova lei, era detentor de 25% de uma sociedade de investimentos imobiliários, de que se desfez em fevereiro “para afastar qualquer suspeita”, justificou.
Rita Alarcão Júdice A ministra da Justiça tem participações em quatro empresas familiares do ramo imobiliário, mas já fez saber que não pretende vendê-las, uma vez que, garante, “não têm quaisquer imóveis com vocação para poderem beneficiar da lei dos solos”.
Maria do Rosário Palma Ramalho A ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social detém a maioria (95%) do capital de uma empresa com atividade de consultoria em diversas áreas e “atividades de gestão de património imobiliário”.
Hernâni Dias Um caso diferente dos outros: o (agora ex) secretário de Estado da Administração Local e Ordenamento do Território criou duas empresas imobiliárias já enquanto governante e responsável pela Lei dos Solos.
Filipe Melo No debate da moção de censura proposta pelo Chega, Hugo Soares, líder parlamentar do PSD, revelou que quatro deputados do partido de André Ventura têm empresas imobiliárias: José Dias Fernandes, Pedro Pessanha, Felicidade Vital e Filipe Melo – coordenador da Comissão de Economia, Obras Públicas e Habitação.
Em declarações aos jornalistas esta manhã, no Porto, Luís Montenegro anunciou a convocação extraordinária de Conselho de Ministros para este sábado. O primeiro-ministro admitiu ainda que a situação atual “não é agradável” e “causa apreensão” e disse estar a fazer uma “avaliação profundada” da sua situação “profissional, familiar e política” para “servir com total disponibilidade” o país “sem ter sobre mim nenhuma mácula”. Montenegro deverá comunicar as suas conclusões ao país amanhã, pelas 20 horas.
“Amanhã às 20:00 comunicarei ao país as minhas decisões pessoais e políticas sobre esta matéria para que o Governo possa governar, possa centrar toda a sua atenção e toda a sua disponibilidade a servir o interesse do país e dos portugueses, resolvendo os seus problemas”, disse aos jornalistas, antes da cerimónia de entrega das chaves da cidade do Porto ao Presidente francês, Emmanuel Macron.
“Eu prestei serviço de assistência jurídica a esse grupo numa altura em que não tinha nenhum cargo político. Em função disso, não participarei em nenhuma decisão que envolva essa empresa. Nunca decidi nada em conflito de interesses com qualquer atividade profissional”, acrescentou.
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As declarações de Luís Montenegro surgem na sequência de uma notícia, avançada pelo jornal Expresso, que revela o grupo Solverde paga à empresa Spinumviva, detida pela mulher e os filhos do primeiro-ministro, uma avença mensal de 4500 euros por “serviços especializados de ‘compliance’ e definição de procedimentos no domínio da proteção de dados pessoais”.
A notícia, que tem gerado muita polémica, levou o líder do Chega a defender esta sexta-feira que o primeiro-ministro deve demitir-se ou apresentar uma moção de confiança para ser votada no Parlamento.
Pedro Nuno Santos, secretário-geral do PS, no debate da moção de censura ao Governo há uma semana, já tinha questionado Montenegro sobre a sua relação com o grupo Solverde. Na altura, o primeiro-ministro respondeu que “não é preciso qualquer conflito de interesses que possa dimanar de uma relação profissional ou contratual” e que impor-se-á “inibição total de intervir em qualquer decisão” que respeite a Solverde ou a outras com que “estiver ligado por relações familiares, de amizade ou razões profissionais”.
Quase que podíamos apostar. John Carlin é o britânico mais catalão que existe. Não se trata de uma piada sobre o jornalista que é filho de um escocês e uma madrilenha. Fanático do Barcelona, este antigo aluno de Oxford, que antes estudou e cresceu em Buenos Aires, trabalhou como repórter nos cinco cantos do mundo, ao serviço de meios como The Independent, The Times, BBC e El País. Tornou-se muito conhecido após publicar, em 2008, Playing the Enemy: Nelson Mandela and the Game that Made a Nation, o livro que, na versão portuguesa, tem o mesmo título do filme realizado, no ano seguinte, por Clint Eastwood e protagonizado por Morgan Freeman: Invictus. John Carlin gostava tanto do primeiro presidente da África do Sul democrática, com quem privou durante anos, como atualmente detesta o 47º presidente dos EUA. Sim, o agora cronista dominical do diário La Vanguardia não perde oportunidade para zurzir aquele a quem chama “Donald, I, el Loco”. Hoje, como todos os dias desde a sua “coroação” a 20 de janeiro, Donald Trump terá honras mediáticas por receber na Sala Oval o seu homólogo ucraniano, Volodymyr Zelensky. Objetivo: assinarem um “acordo-quadro” que permita “criar condições para um cessar fogo” no país invadido pela Rússia há três anos. Na prática, trata-se de fechar um negócio sobre as matérias primas e os minerais críticos ucranianos. Os detalhes do documento são ainda pouco claros e é provável que muitas cláusulas permaneçam secretas. Basta sabermos algumas das exigências que o antigo artista de entretenimento e promotor imobiliário novaiorquino tem para fazer ao ex-ator e comediante de Krvyi Rih: a Ucrânia fica proibida de entrar para a NATO; Zelensky deve organizar quanto antes eleições presidenciais, não pode recandidatar-se ao cargo que ocupa e tem de reconhecer as perdas territoriais para a Rússia (cerca de 20% da área total do país); as chamadas terras-raras e outras riquezas naturais (gás, petróleo e lítio) passam a ser partilhadas por Kiev e Washington, durante um período temporal (in)definido, através de um “fundo conjunto”.
Quando Jorge Nuno Pinto da Costa assumiu a presidência do Futebol Clube do Porto, em 1982, deu início a uma narrativa que transcendeu o universo desportivo. Durante mais de quatro décadas, construiu uma identidade para o clube que ia para além do futebol, transformando-o num símbolo de orgulho e resistência do Norte de Portugal, numa altura em que essa afirmação marcou uma época.
Mais do que um emblema desportivo regional, o FCP passou a representar uma nação simbólica, evocando a história e a identidade portuguesas para se afirmar perante o centralismo lisboeta. Como defende Billing (1995), elementos como a linguagem patriótica desempenham um papel fundamental na construção de identidades coletivas, e Pinto da Costa soube utilizar essa ferramenta de forma inteligente, reforçando que “o Porto é uma Nação” nos seus posicionamentos, referindo-se ao Clube ao mesmo tempo que o transferia para a cidade.
Ao evocar Portucale como ponto de origem da Nação, reforçou a ideia de que o FC Porto era um bastião de resistência contra o poder central. O seu discurso nacionalista regional fortaleceu o sentimento de pertença dos adeptos e expandiu o orgulho portuense para toda a região Norte. Com a continuidade das conquistas nacionais e internacionais, consolidou uma identidade coletiva enraizada na vitória e no combate articulando os seus discursos com ironia e humor. Apesar desse “understatement” o ter tornado alvo de críticas, sendo muitas vezes acusado de regionalismo exacerbado e de dividir o país ao defender de forma intransigente a “nação portista” – um conceito que culminou no seu manifesto “Azul até ao fim”.
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Essa “nação portista” foi um patchwork de valores que, apesar de contestados no universo do futebol devido às suas práticas do dirigismo, foram fundamentais para a construção de uma narrativa de resistência face ao centralismo. A altivez do Norte, cultivada por Pinto da Costa, consolidou uma postura de desafio ao poder instituído, evocando a simbologia da batalha de David contra Golias. No período pós-25 de Abril, com o Norte a afirmar-se económica e desportivamente, essa região passou a ser vista como uma força independente, em oposição a um Sul centralizador e detentor de uma mentalidade colonial dissipando-se ao longo dos anos com o crescimento do turismo e a marca Portugal.
Eric Hobsbawm (1990), em Nations and Nationalism since 1780, defende que o desporto de alto rendimento pode funcionar como uma “religião secular”, reforçando sentimentos nacionalistas. No contexto do FC Porto, essa ideia materializou-se com intensidade. Sob a liderança de Pinto da Costa, o clube transformou-se num autêntico templo moderno, onde os rituais do futebol iam além das conquistas desportivas e convertiam-se em expressão de orgulho regional e resistência. O Estádio do Dragão é considerado mais do que um palco de jogos: é um símbolo da identidade portuense a nível internacional.
A construção dessa identidade, fundamentada na partilha de símbolos, rituais e narrativas comuns, pode ser interpretada à luz da teoria de Benedict Anderson (2008) em Comunidades Imaginadas. Anderson argumenta que as nações são “comunidades imaginadas“, isto é, são construções sociais que se formam a partir da imprensa escrita e do capitalismo impresso.
Pinto da Costa incorporou esse conceito de forma orgânica até na preparação do seu funeral, explorando como a consciência de pertença pode ser cultivada mesmo entre indivíduos que nunca se conheceram pessoalmente. Esse fenómeno explica as homenagens e manifestações de pesar pelo seu falecimento em diversas partes do mundo, revelando a amplitude do seu impacto, bem como os sentimentos negativos em relação ao clube, internamente após a sua derrota em maio de 2024 e por parte dos seus adversários Sporting e Benfica.
Mais do que um dirigente desportivo, Pinto da Costa foi um arquiteto de identidades. Utilizou o futebol como ferramenta para moldar narrativas de pertença, tal como os jogadores brasileiros ou emigrantes portugueses mantêm vínculos com as suas origens através do desporto. Nunca perdeu de vista o seu papel como defensor da “nação portista” e como símbolo do nacionalismo português. O seu legado permanece marcado pela resistência, pelo orgulho e pela capacidade de transformar um clube de futebol num fenómeno identitário de dimensão internacional engolindo a própria cidade que o viu nascer.
Na minha infância, ainda existiam uns homens que vinham vender enciclopédias de porta a porta. Quando a campainha tocava, podiam ser mórmons ou testemunhas de Jeová a vender a sua fé, ou estas pessoas que andavam com grandes malas a vender livros. Tenho a ideia de ver um destes à ombreira da porta, com uma grande mala de um castanho avermelhado. Mas talvez seja uma memória construída e a cor seja a que associo às lombadas encadernadas que havia na estante da sala. Nem toda a gente tinha enciclopédias em casa. Nos trabalhos de grupo no ciclo, juntávamo-nos em casa de quem as tinha para ajudar a compor os textos e tirar dúvidas.
Fiz a primária no mesmo colégio em que tinham andado o meu pai e a minha tia e tenho quase a certeza de que os mapas que estavam pendurados ao lado do quadro de ardósia ainda eram os mesmos desse tempo da outra senhora, que para quem não sabe era como se chamava a ditadura quando ainda dela tínhamos uma memória fresca, mesmo que não sentida diretamente na pele. Mesmo sem olhar para os mapas, tinha de dizer os nomes dos rios e dos afluentes, como tinha de dizer os nomes dos reis das dinastias.
Uma grande parte da base do nosso conhecimento centrava-se em duas ideias básicas: o recurso à consulta de livros e o exercício da memória. Haverá aqueles a quem tudo isto pareça obsoleto e obscurantista. Mas estes dois mecanismos de aprendizagem forneciam-nos uma resistência material a uma ameaça que só agora começa a apresentar-se como real. Quando a mera vontade de um oligarca tecnológico é suficiente para fazer desaparecer nomes dos mapas, para apagar ficheiros, para esconder informação, percebemos como os superpoderes dos motores de busca e das bases de dados digitais nos tornaram, afinal, tão frágeis.
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Aquilo que antes nos preocupava saber de memória parece-nos agora garantido. Não nos lembramos da segunda dinastia? Vamos ao Google. Queremos saber como se chama um rio? Googlamos. Mas e se a informação que lá estiver for manipulada? E se o Golfo do México se tiver evaporado por capricho de um governante tresloucado que partilha imagens de inteligência artificial que mostram Gaza como um destino turístico de luxo, onde chovem notas de dólar, já depois de devidamente extintos todos os palestinianos?
Haverá, claro, quem desenhe na internet bolsas de resistência, motores de busca alternativos, sites com informação fidedigna e independente. O problema é que chegar a esses recursos será só para alguns. E temo que sejam muito menos do que aqueles que, quando eu era criança, se podiam dar ao luxo de exibir os volumes das enciclopédias nas estantes lá de casa.
A própria ideia de acumulação de conhecimento parece-nos hoje impossível. Navegamos de tarefa em tarefa, consumidos por uma economia da atenção, que nos minera os dados e o tempo como metais preciosos. Quantas vezes pegamos no telefone para ver como estará o tempo amanhã e, sem nos darmos conta disso, iniciamos um scroll infindável por mensagens, pushs, vídeos e posts que transforma esse pequeno gesto num sorvedouro de tempo? Quando finalmente largamos o telefone talvez se tenha passado já meia-hora, quando satisfazer aquela pretensão inicial não nos ocuparia mais do que meio minuto.
Encontrei no livro de Marta Peirano, editado em 2019, “O Inimigo conhece o sistema”, um dado inquietante sobre a nossa capacidade de atenção. É neste momento menor do que a de um peixinho de aquário. “A capacidade do peixe é de nove segundos, enquanto neste preciso momento a do humano médio é de oito. No ano 2000, a nossa capacidade de focar atenção numa única coisa era de doze segundos”, diz a autora, explicando que isso não aconteceu por acaso. Foi obra de empresas tecnológicas que usaram o conhecimento de pessoas como um psicólogo de Harvard chamado B.F. Skinner para desenvolver mecanismos de condicionamento das nossas respostas e, com isso, aumentar o tempo que dedicamos àquilo que nos querem vender.
A questão é que não só nos conseguem vender o que querem, como conseguem extrair de nós o máximo de dados possível para tornar mais eficazes essas vendas. Pior: atingiram um patamar em que conseguem influenciar as nossas crenças, moldar o nosso posicionamento político e ter um impacto real nas nossas capacidades cognitivas ou na informação a que temos acesso.
Ultrapassar as dificuldades que este tipo de tecnocracia nos levanta não implica ir viver para uma gruta sem internet, recuperar as velhas enciclopédias e obrigar os miúdos a saber de cor as linhas dos caminhos de ferro. Mas implica o desenvolvimento do pensamento crítico, a capacidade de desligar do digital e, acima de tudo, implica deixarmos de olhar para a tecnologia como se ela fosse ideologicamente neutra.
Podemos começar por refletir seriamente nas consequências cognitivas e sociais de estarmos a criar gerações de crianças viciadas em ecrãs ainda antes de conseguirem articular decentemente uma frase. Podemos questionar os benefícios de levar esses mesmos ecrãs e todo o seu excesso de estímulo para as escolas, que deviam ser lugares de reflexão, produção de conhecimento e sociabilização entre pares.
Há, apesar de tudo, alguns sinais de resistência. No Brasil, foi proibido o uso de telemóveis e tablets em todas as escolas, públicas e privadas, tanto nas salas de aulas como nos recreios. Está longe de ter sido o único país do mundo a perceber a importância deste passo. Um estudo divulgado pela UNESCO no Dia Internacional da Educação revela que no início de janeiro de 2025 eram já 79 os países que tinham introduzido restrições ao uso de dispositivos eletrónicos em ambiente escolar. Da França à China, passando pelo Reino Unido, há cada vez mais lugares do mundo em que a consciência dos efeitos nefastos do abuso das tecnologias na infância consegue superar o embasbacamento bacoco do entusiasmo com a modernidade da digitalização. E esse só pode ser um sinal de esperança.
Uma vez, um amigo (que por sinal é engenheiro informático e trabalha numa empresa de IT) disse-me que um dia olharemos para as imagens de crianças com ecrãs nas mãos com o mesmo horror que hoje nos causam as fotografias de menores a fumar ou a trabalhar em fábricas. Se chegarmos a esse dia, ainda haverá alguma esperança.
“A menos que o primeiro-ministro esteja confortável em ser o novo José Sócrates da política portuguesa, só há um caminho para Montenegro sair disto com o mínimo de credibilidade e integridade. Deve apresentar hoje a demissão ao Presidente da República ou uma moção de confiança no parlamento”, escreveu Ventura na rede social X. As declarações do líder do Chega surgem na sequência de notícias avançadas nos últimos dias que revelam que a Solverde – uma empresa de casino e hóteis – paga uma avença mensal de 4500 euros à empresa familiar de Montenegro.
A menos que o primeiro-ministro esteja confortável em ser o novo José Sócrates da política portuguesa, só há um caminho para Montenegro sair disto com o mínimo de credibilidade e integridade. Deve apresentar hoje a demissão ao Presidente da República ou uma moção de confiança no… pic.twitter.com/iEwVTy9Xov
A notícia, avançada inicialmente pelo jornal Expresso, revela o grupo Solverde paga à empresa Spinumviva, detida pela mulher e os filhos do primeiro-ministro, uma avença mensal de 4500 euros por “serviços especializados de ‘compliance’ e definição de procedimentos no domínio da proteção de dados pessoais”. O acordo entre as empresas foi assinado em julho de 2021, seis meses após a constituição da Spinumviva.
Também de acordo com o semanário português, Montenegro trabalhou para a Solverde entre 2018 e 2022 enquanto representante do grupo em negociações com o Estado que resultaram numa prorrogação do contrato – que chega ao fim em dezembro deste ano – de concessão dos casinos do Algarve e de Espinho .
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Há cerca de uma semana, no debate da moção de censura ao Governo, Pedro Nuno Santos, secretário-geral do PS, já tinha questionado Montenegro sobre a sua relação com o grupo Solverde. Na altura, o primeiro-ministro respondeu que “não é preciso qualquer conflito de interesses que possa dimanar de uma relação profissional ou contratual” e que impor-se-á “inibição total de intervir em qualquer decisão” que respeite a Solverde ou a outras com que “estiver ligado por relações familiares, de amizade ou razões profissionais”.
Em resposta ao Expresso, o gabinete do primeiro-ministro referiu que “o primeiro-ministro pedirá escusa de intervenção em todos os processos em que ocorra conflito de interesses”.
A intensidade da perceção da dor é muito variável e é um campo de estudo complexo pela impossibilidade de a avaliar objetivamente. Para tentar compreender como o cérebro percebe a dor, um grupo de investigadores da Universidade de Tsukuba pôs em cima da mesa duas hipóteses: A Hipótese Estimada e a Hipótese Surpresa. Na primeira, o cérebro estima a intensidade da dor com base em previsões; na segunda, o cérebro percebe a dor como a diferença entre a previsão e a realidade.
Participantes saudáveis receberam um estímulo térmico e relataram a intensidade da dor sentida enquanto recebiam estímulos visuais dolorosos (como ser esfaqueado) e não dolorosos em modo realidade virtual.
Num cenário realístico, em que uma faca trespassava um dos seu braços virtuais, enquanto o braço real recebia um estímulo térmico, os participantes relataram mais dor quando, de repente, a faca desaparecia. O desaparecimento imprevisível da ameaça tornava, portanto, a dor mais intensa do que quando estava visível.
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Esta experiência permitiu aos investigadores perceber que quando o erro de previsão era grande, os participantes percecionavam mais fortemente a dor, pelo que a Hipótese Surpresa parece ser mais adequada para explicar o mecanismo de perceção da dor no cérebro e que a dor é amplificada quando ocorrem acontecimentos inesperados.
Perde-se na memória do tempo uma velha fábula que conta a história de vários caranguejos colocados num mesmo balde. Sempre que algum tenta sair, os outros acabam por puxá-lo para baixo, impedindo que qualquer um consiga escapar. Essa dinâmica, tantas vezes usada como metáfora para aludir a desafios coletivos, é apropriada perante encruzilhadas de natureza mais profunda e estrutural. Trata-se do caricato estado a que um sistema chega quando reconhece determinados problemas que o afetam e manifesta a necessidade de avançar num dado sentido, mas depois é incapaz de refletir com sucesso sobre as soluções, levando a bom porto um esforço conjunto de mudança.
Há dias, foi apresentado o relatório intitulado “Megaprocessos e Processo Penal – Carta para a celeridade e melhor Justiça”. Trata-se de uma análise de fundo elaborada por um grupo de trabalho formado por juízes e um procurador-geral adjunto na sequência de deliberação tomada em sessão Plenária Ordinária do Conselho Superior da Magistratura (CSM). Desde há décadas, a expressão crise da justiça assentou arraiais no quotidiano português, mesmo à custa de uma persistente omissão sobre a realidade objetiva, isto é, ignorando a realidade da generalidade dos milhares de casos tratados nos tribunais portugueses numa base diária. E à expressão crise da justiça, em regra, surge associado o clamor da necessidade de uma reforma da justiça. Pese embora a temática, ao longo dos tempos na nossa história democrática, tenha tido diferentes motivos para vir para a ribalta, a verdade é que, mais recentemente, o debate em torno de aspetos como a morosidade da justiça, os megaprocessos ou a configuração da fase de instrução no processo criminal tem sido particularmente aceso.
Ora, o trabalho em causa vem apresentar, precisamente, um conjunto de propostas tendo em vista, além do mais, melhorar a celeridade e a eficiência do processo penal. São ponderadas diversas alterações legislativas ao nível processual penal, tendo sido recebidas com especial ênfase as ideias relativas à redução da fase de instrução, à revisão do regime de recursos, bem como à criação de regras que visam evitar expedientes dilatórios, juntamente com outras em matérias de gestão e organização processual. E, nesta sequência, foram várias as vozes que, de imediato, se levantaram, insurgindo-se ora contra o teor do documento, ora contra a legitimidade dos seus autores. Porém, é a lei, mais concretamente o Estatuto dos Magistrados Judiciais, que prevê de modo expresso que o CSM tem competência para estudar e propor providências legislativas e normativas com vista à eficiência e ao aperfeiçoamento das instituições judiciárias.
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Sem prejuízo de se poder concordar mais ou menos com esta ou aquela medida proposta, a verdade é que não só o CSM tem legitimidade democrática, legal e constitucional para o fazer, como, na verdade, o faz no âmbito de uma estrutura plural que reflete igualmente a representatividade característica do Parlamento que nomeia uma parte muito substancial dos seus membros. Não está aqui posta em causa a evidente importância do trabalho conjunto, da cooperação institucional ou do diálogo entre profissões jurídicas para a melhoria do sistema. Nesse eventual processo legislativo, deverá naturalmente, aí sim, ter lugar a audição, além do mais, de todas as estruturas representativas das diversas profissões jurídicas, no seio da qual as propostas poderão ser objeto de concordância, discordância ou aprimoramento.
Independentemente do acerto ou desacerto das propostas apresentadas, o País não pode dar-se ao luxo de continuar a não ponderar o resultado da reflexão qualificada de pessoas conhecedoras do sistema para, logo de seguida, se voltar a agitar com a bandeira da crise e da reforma da justiça sem sequer se efetuar previamente uma ponderação séria sobre as ideias apresentadas, ficando esta abafada pelas entropias de um sistema que se mantém refém do paradoxo do caranguejo.
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.