Antes de tudo, Francisco ganhou simpatia generalizada pela sua postura de simplicidade como que a dizer: “Voltemos ao evangelho” e à simplicidade de Jesus Cristo. Não se pode falar aos pobres quando se exibem sapatos de luxo, uma cruz de ouro ao peito ou nos sentamos numa espécie de trono real.

Depois, o Papa defendeu uma abertura da Igreja a “todos, todos, todos”, isto é, optou pela não discriminação, e fê-lo tanto pela palavra como pela práxis, segundo o princípio de que a Igreja é mãe e por isso inclusiva. 

Francisco tinha uma visão da Igreja. Queria-a menos clerical e mais sinodal, queria as mulheres mais envolvidas em cargos de responsabilidade e queria que ela tivesse uma voz profética no mundo. Por isso, acarinhou os pobres, os emigrantes e as minorias. Por isso, defendeu paz, pão e dignidade para todos os seres humanos. Por isso, publicou a encíclica Laudato Si, ligando assim a fé à responsabilidade social e ambiental, em nome da Criação, da “casa comum” e da responsabilidade para com as futuras gerações.

Mas como a Igreja tem de ter as mãos limpas para poder fazer ouvir a sua voz profética, Francisco promoveu a “limpeza da casa” que se impunha, atacando de frente o elefante na sala de espera do Vaticano. Ou seja, as práticas reiteradas de abuso sexual e pedofilia em agentes da Igreja, incluindo sacerdotes, com uma política de “tolerância zero”.

Por outro lado, Francisco manteve sempre uma atitude de humildade face às outras tradições cristãs e não cristãs, desde os encontros e documentos assinados com líderes judeus e muçulmanos até ao contacto e à abertura a líderes protestantes e evangélicos, mantendo mesmo relações pessoais e de amizade com alguns deles. Fê-lo em espírito de fraternidade e sem sobranceria.

O meu amigo Henrique Pinto disse que o mundo não mereceu este Papa. É verdade, mas não surpreende. O autor da Epístola aos Hebreus quando se refere a figuras do Antigo Testamento que foram justificadas pela fé em Deus diz: “dos quais o mundo não era digno.” Os cristãos nunca podem esperar que o mundo bata palmas às suas proclamações proféticas. Basta ver como agora os poderosos fazem fila para elogiar o falecido Papa, mas muitos deles não ligaram nenhuma à sua voz. Agora é o tempo das lágrimas de crocodilo. De facto, ele não poupou os tiranos deste mundo. Referindo-se indiretamente a Trump, proferiu um dia estas palavras duras: “Uma pessoa que só pensa em construir muros, sejam eles onde forem, e não em construir pontes, não pode ser cristã.”

De resto, Francisco enfrentou uma luta interna muito dura. Os seus maiores adversários não estavam sequer fora da Igreja, mas na hierarquia. Ao iniciar o Sínodo, dando voz aos fiéis e colocando em cima da mesa um conjunto de tabus da fé católica, desafiou séculos de estrutura rígida da Igreja que agora dirigia e deixou ao seu sucessor uma dinâmica complexa com a qual terá de lidar.

Francisco renovou a imagem da Igreja Católica cativando o mundo pela sua simplicidade, pela sua atenção aos que se situam nas margens da sociedade e por um espírito fraterno, sabendo sempre falar uma linguagem descodificada que qualquer pessoa poderia entender.

O próximo Papa tem assim um imenso desafio pela frente. Ou segue o caminho de Francisco ou muda de rumo. Uma coisa é certa, de um modo ou de outro, é de prever que as tensões dentro da Igreja irão persistir.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

Palavras-chave:

Perante a morte de uma figura como Francisco, é natural perguntar qual o legado, o que ficará para o futuro, qual será o seu lugar na História. Naturalmente, estamos longe de ter um afastamento que nos permita uma análise isenta do momento presente, mas muito se pode já avaliar, essencialmente, naquilo que ele tornou incontornável para o seu sucessor.

Nos próximos dias, até ao conclave, os cardeais eleitores terão um árduo trabalho de reflexão sobre esse legado. E a questão será simples: o próximo Sumo Pontífice deverá ser um Francisco II, um quase-Francisco, mas mais “calmo” nas mudanças, ou um anti-Francisco. Em nenhuma das equações, Francisco fica de fora, tal foi a marca que ele deixou.

Vemos, nos comentários dos católicos, a vertigem perante a possibilidade do recuo na dinâmica de mudança. De facto, nada é irreversível, uma vez que Francisco trabalhou muito no campo da sua pastoral, não na criação de medidas legais e formais que marquem definitivamente a vida e a organização da Igreja Católica.

Possivelmente, o mais importante e que Francisco fez foi semear, não no campo da legalidade, mas nas mentalidades, a necessidade de uma Igreja que viva das bases para o topo, liberta dos constrangimentos do clero, inclusiva. Mas essas alterações, no campo das mentalidades, demoram muitos anos a se cimentar e, não sendo do campo da legalidade, são sempre passíveis de ser refutadas.

E a sementeira, ou é cuidada, ou morre. E é aí que o sucessor terá de ser um árduo agricultor, ou não. Mas sempre com Francisco em pano de fundo, como modelo, ou a ser seguido, ou a ser negado. A sinodalidade, essa igreja liberta do peso do clero, é a única dimensão irreversível que Francisco lega ao seu sucessor. Com um calendário já definido até 2027 (definiu-o quando estava internado), o próximo Papa já tem um caderno de encargos definido.

Mas a marca deste Papa é muito mais indelével do que as marcas deixadas na sua Igreja. Francisco centrou-se num regresso ao básico, num encontro com o que de mais simples os valores humanistas defendem e definem e, assim, tornou-se uma “caixa de ressonância do ocidente”, dos seus valores humanistas.

Francisco foi em direção às bases, não apenas dos crentes católicos, mas de todos os que se revêm numa crítica à “economia que mata” e à “globalização da indiferença”, usando duas das suas afirmações mais fortes. Foi o único líder a lutar abertamente por causas humanistas e afirmar, abertamente e sem medos, o que muitos desejariam dizer, mas não tiverem coragem para o fazer.

Francisco foi além do seu pontificado. Se defendeu uma Igreja aberta, sem muros, construtora de pontes, ele próprio foi esse exemplo, quer com o Judaísmo e com o Islão, exatamente como fez também com as Igrejas Protestantes e Ortodoxas. Mas fez pontes, sobretudo, com os não religiosos, com os que culturalmente se revêm na afirmação de uma ética moderna.

O pontificado de Francisco correspondeu a uma afirmação de orgulho na cultura popular, não apenas, mas, sobretudo, católica. Surgiram filmes e séries televisivas, alimentando já esse medo do fim do seu pontificado e na vinda de um Papa que desfaça o que ele fez.

É imagem desta transversalidade de Francisco, a forma como os mais variados indivíduos e grupos se unem nas homenagens que surgem por estes dias: católicos dos mais diversos setores; crentes das mais variadas religiões; políticos das mais distintas linhagens ideológicas, todos afirmam, na morte do Papa, o que muitos lhe não disseram em vida – por vezes, disseram o oposto.

Morto, Francisco torna-se ainda mais incontornável e, dessa forma, definidor do que os cardeais irão afirmar no voto. O resultado deste conclave será a prova do lugar social que a Igreja Católica quer para si mesma, através da leitura que os cardeais façam do tempo presente e futuro. Nessa votação, veremos se Francisco foi um intervalo numa longa linhagem essencialmente conservadora, ou se a tal mudança de mentalidades e de paradigma já está a ter efeito.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

Palavras-chave:

O Papa da esperança e da misericórdia, Francisco foi um homem que gostava genuinamente do contacto com as pessoas. Detinha-se para as escutar, enternecia-se com elas, sofria a sua dor, indignava-se com a sua marginalização, e para todos tinha palavras de alento. Tinha um olhar que via profundamente o ser individual de cada um, sem olhar aos seus defeitos. Era na fragilidade humana que reconhecia o rosto de Cristo e nos espaços das periferias que melhor encontrava os grandes desafios de transformação que o Evangelho coloca às sociedades desenvolvidas.

Mas o Papa Francisco foi também o Papa do sorriso e do humor. Na sua autobiografia refere-se justamente a um Deus que sorri, e encontra no humor qualidades verdadeiramente evangélicas. Ao contrário do ditado inglês que diz que “o diabo se encontra nos detalhes”, para o Papa Francisco é no pormenor que se manifesta Deus. E esse pormenor alarga-se do cuidado pelo outro ao ridículo de uma situação e, afinal, à alegria que dá sentido à vida. O olhar do Papa era um olhar de constante encantamento pela maravilha do mundo e pela diversidade das pessoas. Um episódio divertido que se passou comigo durante a Jornada Mundial da Juventude demonstra-o à abundância.

O dia era 3 de agosto, na Universidade Católica. Após uma sessão empolgante e emotiva, o Papa dirige-se para a saída e eu acompanho-o. O dia estava quente e, como é habitual na presença do Papa, vestia um fato preto discreto. Mas, apesar de tudo, era verão e o agosto de Lisboa é inclemente. Por isso, calçava umas sandálias coloridas, que cortavam a formalidade. Ao chegar ao carro, o Papa abre a janela e chama-me e, com aquele seu humor terno e desarmante, comenta com um sorriso: “Fiquei encantado por ver uma reitora com sapatos tão juvenis!” Quem estava à volta não pode conter o riso franco.

A frase, dita com leveza, carregava no fundo o espírito da JMJ: juventude, liberdade, autenticidade. E era também uma síntese perfeita do próprio Papa Francisco ‒ um homem que nunca deixou de se surpreender com o inusitado, que encontrava beleza onde outros veriam irreverência, e que valorizava mais o gesto espontâneo do que qualquer pose ensaiada. O Papa que elogia sandálias coloridas não fala de moda, mas de atenção ao outro e empatia. Diz talvez que há sempre espaço para a alegria e para o humor e que o Evangelho é também juventude do coração.

O Papa Francisco é amplamente reconhecido pela sua profunda sensibilidade humana e espiritual, mas algo igualmente importante é o seu apurado humanismo estético ‒ uma capacidade rara de perceber a beleza como uma via privilegiada para a verdade e a esperança. Para ele, o belo não era um luxo, mas uma necessidade da alma. Desde a sua juventude que Jorge Mario Bergoglio encontrava na literatura um refúgio e, mais ainda, um terreno fértil para cultivar a fé e desenvolver a empatia.

Inspirado por autores como Dostoievski, Borges e Hölderlin, o Papa Francisco via na palavra escrita não apenas uma forma de arte, mas uma ponte entre o humano e o divino. Mergulhava nos dramas, nas contradições e nas pequenas epifanias que os livros oferecem, como quem busca, nas entrelinhas, sinais de esperança. Porque o futuro tem de ser imaginado, como bem disse no seu discurso aos estudantes da Universidade Católica, e para tal o cultivo da ficção é determinante.

No fim das contas, as sandálias coloridas inspiram a caminhar com esperança. E o Papa Francisco sabia bem que a Igreja precisa disso ‒ de passos leves, coloridos e verdadeiros.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

Talvez o Papa Francisco seja das poucas pessoas que mereceu um reconhecimento alargado em vida, porque somos sempre melhores no elogio póstumo do que no agradecimento aos vivos. Escrever este texto no momento da sua partida é, pois, este misto de tristeza pela perda e de enorme felicidade pelo seu contributo para um despertar das consciências e para um abrir continuado de portas de esperança numa Igreja que tantas vezes, ao longo da história, mesmo da mais recente, não quis olhar para fora e se calou perante o absurdo da exclusão.

Na sequência de um texto que escrevi a pedido do jornal Expresso nas primeiras horas da notícia da sua morte, tive duas conversas interessantes com bons amigos. Um, timidamente, sugeria que o Papa Francisco não foi assim tão diferente de outros e que eu elogiava por uma diferença hiperbolizada (marcada pelo meu lugar de observação à esquerda). Outro, mais abertamente, dizia que sim, que as suas palavras foram inspiradoras, mas que, na essência, nada se alterou e que são muitas as portas que continuam fechadas. Entusiasmante este Papa que não deixou ninguém indiferente! Uns porque o acharam de mais, outros porque o acharam de menos. Lembro-me de, no dia da sua eleição, ter sentido uma simpatia clara que começou na escolha do nome. Francisco, que assumi ser o de Assis, na sua relação com a natureza, enquanto criação, na escolha da simplicidade e na rejeição da pobreza como desígnio para os outros.

Agradecer ao Papa Francisco pela esperança com que alimentou os cristãos, católicos e não católicos, os de outros credos, os agnósticos e os ateus, é justo e necessário.

Justo, porque implica perceber a universalidade da sua mensagem e o regresso à essência do cristianismo, que, como já escrevi em livro, sinto traída por movimentos conservadores emergentes que, em nome de Deus, advogam a exclusão e a rejeição da diferença e da diversidade. Não será por acaso que foi entre os maiores populistas e sectaristas, dentro e fora da Igreja, que se quebrou a unanimidade da apreciação positiva. Aqui, em Portugal, foi o líder do partido de extrema-direita que afirmou que o Papa Francisco prestava um mau serviço ao cristianismo. E porquê? Por ser inequivocamente cristão.

Necessário, pela urgência e consciência das suas palavras, sempre pautadas pela coragem. Este Papa não teve medo e instou os jovens a não ter medo. Não teve medo de se posicionar ao lado dos ecologistas e ambientalistas e a instar à preservação do planeta, a tal “casa comum”. Não teve medo de combater o clericalismo que convida à exclusão da participação inscrita desde o Concílio Vaticano II, pisado mais ou menos explicitamente por alguns agentes valorizados pelos seus antecessores. Não teve medo de denunciar a iniquidade do capitalismo selvagem e de expor a matança promovida pela economia radicalmente neoliberal. Não teve medo de dizer que não é ninguém para julgar um homossexual. Não teve medo de expor o genocídio em curso em Gaza, de apelar à libertação de presos políticos. Não teve medo de apontar o dedo à crescente xenofobia e aos discursos anti-imigração. Não teve medo de chamar as mulheres para a governação da Igreja. Não teve medo de criticar severamente o populismo, a corrupção e os nacionalismos. Não teve medo de agir, com dureza, sem desistir e virar costas, perante os abusos sexuais praticados na Igreja. Não teve medo de reconhecer o valor de sacerdotes que tinham sido afastados por terem posições políticas e sociais mais próximas dos trabalhadores. Não teve, pois, medo de começar a construir uma Igreja que abriu as portas para entrarem mais lá para dentro porque se predispunha a sair de lá de dentro e, nas suas palavras, procurar as periferias. O caminho sinodal proposto terá sido uma expressão muito clara da sua coragem interna. Levar o debate e o questionamento para as bases, propor a interrogação, ouvir as comunidades, sem critérios apriorísticos e sem receio das conclusões.

Para alguns foi de menos, porque houve passos atrás quando parecia que se avançava. Uma abertura discursiva ao acolhimento das diferentes orientações sexuais não foi coerente com as suas afirmações, à porta fechada, que apontavam para a menorização dos homossexuais ou para o ataque à igualdade de género. A abertura às mulheres terá sido tímida na persistente recusa da abertura do diaconado e outras funções ao sexo feminino. A abertura sinodal terá sido barrada pela oposição ao caminho que está a ser trilhado na Alemanha. Entendo estas opiniões, mas contraponho-lhes a irritação causada – e até presente, de forma dissimulada, em textos e palavras de alguns por cá – pela coragem das suas palavras. O seu papel foi abrir portas, construir futuros com mais esperança, não ter medo de se posicionar, numa gestão de uma dificuldade que nenhum de nós consegue entrever.

Não hesito em dizer que o Papa Francisco foi radical, no sentido etimológico desta palavra. Atirou-se à raiz da mensagem cristã e ao caráter revolucionário da proposta de um amor incondicional. Foi à essência, repito, à raiz, de uma abertura universalista e rejeitou o moralismo que todos os dias continua a fechar portas. Colocou-se no papel do abraço que acolhe e longe do julgador e castigador. Foi mais Evangelho do que Antigo Testamento. E é por isso que, ainda que compreendendo tudo o que está por fazer, não acompanho a visão “de menos” e agradeço, continuadamente, a esperança que semeou de uma transformação futura, que poderá e deverá ser necessariamente inquietante e fraturante. Revolucionou pela palavra e pela consciência para que os processos se possam iniciar e continuar.

Recordo o dia em que tive a oportunidade de o cumprimentar pessoalmente aquando da sua vinda a Portugal, na Jornada Mundial da Juventude. Trocámos brevíssimas palavras sussurradas sobre um tema em particular. Mais do que me disse, houve um apertar do braço e da mão que se fez abraço e esperança. Um momento que nunca esquecerei.

Aos que nos revimos neste Papa inquieta-nos o futuro. Apesar de otimista, o estado do mundo aconselha cautela. À lufada de ar fresco de um Obama sucedeu-se um Trump inimigo da diversidade e da inclusão. Aos anos de paz da Europa sucedem-se guerras, nacionalismos e discursos xenófobos. Também ao Papa Francisco, de luz e esperança, podem seguir-se anos de escuridão e retrocesso. Tenho consciência de que há um caminho iniciado que pode ser travado. Mas as suas palavras ficarão para sempre. O seu legado ecoará na consciência coletiva e animará os que não desistem desta transformação.

Não posso terminar sem comentar a sua crença forte no valor da educação. Recordo um painel em que participei há uns anos no qual pude comentar como os seus escritos e palavras sobre educação, colocando-a como fator de construção de um mundo pautado pela justiça social e pela inclusão humanista, ecoam tantos valores fundamentais dos sistemas educativos nas sociedades verdadeiramente democráticas. Inspirado e inspirador, como sempre. E com um olhar de futuro e esperança.

Um legado que permanece em todos. Nas suas últimas mensagens, esteve com Gaza, com o fim da guerra comercial, com a libertação de prisioneiros políticos. Celebrou a Páscoa, porque a alegria da vida que se renova esteve sempre no seu sorriso. Acarinhou crianças, porque a simplicidade e a recusa da exuberância foi marca da sua coerência.

Aos que dizem que fez de menos, recordo a frase atribuída a São Francisco de Assis, cujo nome escolheu: “Comece por fazer o que é necessário, depois o que é possível, e de repente estará a fazer o impossível!”

Obrigado, Papa Francisco, por nos despertar para novos impossíveis.

Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.

Filhosdumagrandessíssima. Não, o que se segue não é sobre Trump nem Putin nem personagens portuguesas ou estrangeiras do género. Foi o que disse o Lituma, logo no início do Quem Matou Palomino Molero? Foram as palavrinhas que me ocorreram quando soube da morte dele. Nem sei bem porquê, talvez chateado com os deuses ou simplesmente por ser a primeira coisa que me ocorreu quando olhei para a estante onde estão os livros do Mario Vargas Llosa, o meu querido Varguitas.

Sei que não o trataria assim se tivesse tido a sorte de poder ter-lhe dirigido um bom-dia que fosse, mas para mim será sempre o Varguitas, o pouco mais do que adolescente escrevedor apaixonado pela tia Júlia.

Foi esse o primeiro romance que li dele, o que usei para que as mulheres que desejei me achassem piada, o que mais vezes serviu para mostrar a alguém que gostava dessa pessoa, o que obriguei os meus filhos a ler e, mais do que tudo, o que me fez entrar no seu mundo.

Olho para a lombada do livro, ali à esquerda do sítio onde estou agora a escrever e onde me sento todos os dias para trabalhar. Está no meio de todos os livros que tenho do Varguitas. É, creio eu, o terceiro autor de quem tenho mais livros.

Pois, não será o escritor de quem tenho mais livros, mas é ele que mais amo. Voltei atrás, cem vezes escrevi a última frase e outras tantas a apaguei. Fica assim porque é verdade. Não é que a verdade seja assim tão importante, as raparigas da Casa Verde ou as visitadoras do Pantaleão não davam aqueles gritos de amor cheios de sentida paixão e, mesmo assim, são as mulheres as mais sinceras e fortes personagens do Varguitas. Mas isto não interessa nada. Não sou crítico literário, não me interessa fazer uma análise da obra dele, nem sequer seria capaz.

Sou capaz de contar histórias da maior parte dos livros dele. Mais dos que li primeiro, e li-os todos.

A memória é assim, vamos envelhecendo e lembramo-nos mais do que lemos quando éramos novos do que do que lemos ontem. Pouco importa. Sei o que ele fez por mim, como sei que o que conta nos livros não é o que recordamos deles, mas o que nos molda.

Ensinou-me muito sobre mim e sobre o mundo. Que o mal existe mesmo e está dentro de nós, que o bem não ganha sempre, que somos bichos mais erotizados do que pensamos, que os sonhos são tão fortes que nos transformam, que não há nada mais forte do que a beleza, que são as coisas que pensamos pequenas (gestos, música, amores) e não as grandes ideias e feitos que mudam o mundo, que só existimos verdadeiramente se formos livres, e milhares de outras coisas que me formaram e me encantaram.

E como o que importa não é o que o autor escreve, mas o que o leitor lê, foi o poço de contradições que somos que o Varguitas me explicou em cada livro que escreveu para mim. É assim mesmo, os grandes escrevem para cada pessoa que os lê.

Talvez se tivesse inspirado nele próprio para me explicar a quantidade de pessoas diferentes que somos – não é em vão que o Chibo é um chibo. O mesmo homem que conseguia descrever toda a gentileza, toda a bondade, todo o altruísmo, toda a beleza e a graça, que nas suas obras inspirava a lutar contra todas as injustiças, todas as discriminações, era o mesmo que, não poucas vezes, desdizia parte disso em entrevistas e textos de opinião.

Muita calma, o meu querido Varguitas era um democrata convicto, mas deu-me algumas facadas. Mas, lá está, os livros dele fizeram-me amá-lo e o amor tudo perdoa.

Perdoa tanto que lhe desculpo ter-me feito ir a Lima. Queria ver a Catedral, visitar Miraflores, olhar para o mar dele, perceber o que havia naquela terra que o tinha feito assim. Sacana. Bem me enganou. Mas lembrou-me de que é quase sempre melhor vermos pelos olhos dos escritores do que pelos nossos – eu bem percorro a álea do Cemitério dos Prazeres que o Saramago pôs o Ricardo Reis a descer e não encontro nenhum sentido para a vida, só vejo campas.

A verdade é que a viagem serviu para ouvir umas huaynitas daquelas de que ele fala no último romance que escreveu e que podem salvar o mundo, porque Miraflores ou a Amazónia é ali na Graça. Tal como os espíritos que o Lituma sabe estarem nos Andes são os mesmos a que a minha mãe reza na Igreja de Santa Isabel. Sim, críticos estúpidos, o Varguitas não era um escritor latino-americano, era um escritor. E sim, o rio da aldeia dele é o rio de todas as aldeias do mundo.

Agora vou fazer como ele, misturar histórias, trocar fins por princípios.

Entusiasmo-me a falar de livros de que gosto muito, e estando em casa, dá-me para dizer às pessoas para levarem este ou aquele. Ou seja, desapareceram-me muitos livros do Varguitas. Muitos recomprei (várias vezes), outros continuo à espera que mos devolvam.

Daí e com todo o carinho (sou um rapaz de origens nortenhas): filhosdumagrandessíssima, devolvam-me os livrinhos do rapaz de Arequipa. Quero-os todos à minha beira. Quero que continuem a embalar-me, que me façam companhia. Ter sempre o Varguitas comigo.

Esta crónica vai de férias e regressa dia 15 de maio. 

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Sempre se pagou um preço altíssimo pela paz e o exemplo maior que perdura no imaginário coletivo europeu ainda é o de uma Alemanha retalhada e servida a quatro potências mundiais, humilhada e envergonhada depois das suas tentativas imperialistas que mergulharam a Europa nos tempos mais sombrios da modernidade.

Mas isso era numa época em que, de facto, se perdiam as guerras e os livros de História nos ensinavam que os maus tinham castigos à medida das suas grandes perversidades. Como parece simples o mundo assim explicado! Tal como num filme maniqueísta, de um lado os bons, do outro os maus, o herói e o vilão, e no fim tudo se resolve, o bem triunfa sobre o mal, varre-se a casa e o normal volta a ocupar-nos os dias.

Não iremos ver nada disto na atual guerra em solo europeu, desenrolada na Ucrânia. Aqui o filme é mais parecido com a vida real, em que se perde sempre num jogo viciado e à partida ganho por quem domina a corrente ordem mundial.

Donald Trump anunciou na segunda-feira que esta semana apresenta o seu plano de paz para a Ucrânia. Segundo o que tem sido noticiado, o plano inclui a perda do território da Crimeia, com os Estados Unidos da América a reconhecerem a anexação russa de 2014. Inclui, também, segundo o The Wall Street Journal, o impedimento da Ucrânia se juntar à NATO, que foi, desde logo, o principal motivo da invasão russa de fevereiro de 2022. Sob este ponto de vista, a Ucrânia perde a guerra, não consegue o que sempre desejou. É o preço a pagar pela paz.

A questão agora é esta: será assim tão relevante para um país juntar-se à NATO? A aliança atlântica já estava em crise há alguns anos, mas com a tomada de posse da administração Trump parece agora à beira da insignificância total. Aliança com a Europa? Donald Trump parece bem mais interessado em parceiros de outras latitudes.

“Os Estados Unidos estão a divorciar-se dos valores europeus”, escreve Ed Arnold, especialista em segurança europeia do Royal United Services Institute. Com a aproximação à Rússia e os danos infligidos à aliança atlântica (pondo em causa o artigo 5, segundo o qual um ataque a um país da NATO é considerado um ataque a todos), a tal ordem mundial saída da II Guerra Guerra está a ruir.

Para a Ucrânia irão tropas europeias, diz a proposta de paz norte-americana, garantir que o cessar-fogo existe de facto. Só a Rússia não dá sinais de qualquer seriedade nestas negociações – o cessar-fogo de 30 horas que o próprio Vladimir Putin declarou durante o fim de semana, numa trégua pascal, foi violado mais de 2 900 vezes, segundo Zelensky.

Putin quer Zelensky fora da presidência, defendendo uma “administração de transição” na Ucrânia. Apesar disso, admitiu esta segunda-feira, pela primeira vez, estar aberto a negociações de paz diretas com Kiev. Alguém ainda consegue ver aqui algum empenho?

Donald Trump acredita ter em mãos a grande solução para a paz. E acena com a cenoura, escrevendo na sua plataforma Truth Social, em letras capitais: “Esperemos que a Rússia e a Ucrânia cheguem a acordo esta semana. Ambas começarão então a fazer grandes negócios com os Estados Unidos, que estão a prosperar, e farão uma fortuna.” A paz por um punhado de dólares.

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Parece que o luto nacional, decretado pelo Governo entre hoje e sábado, pela morte do Papa Francisco, é incompatível com a presença de ministros e secretários de Estado em atividades festivas por estes dias, incluindo as relacionadas com as comemorações de mais um aniversário do 25 de Abril. A lei obriga a restringir celebrações, além do uso da bandeira a meia haste, e assim justifica o Executivo de Luís Montenegro a contenção a adotar por governantes na evocação daquela que é a data mais importante da História recente de Portugal

Amanhã, portanto, dia 25 de abril de 2025, os nossos representantes, eleitos democraticamente, não festejam.

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Se olharmos para o mundo numa lógica de equilíbrios noticiosos, podemos dizer que a morte do Papa Francisco veio permitir que, pelo menos nas próximas semanas, as euforias e as medidas erráticas de Donald Trump ocupem menos espaço mediático. Depois do velório e do funeral destes próximos dias, seguir-se-á a escolha de um Papa num novo conclave – a qual, como é sabido, pode prolongar-se durante dias, dando sempre pano para mangas em matéria de conspirações e especulações.

Por natureza, a eleição de um novo pontífice é não só a eleição menos previsível como também a menos transparente de todas. Quem entra Papa, diz um velho ditado italiano, sai cardeal, ou seja, não vale a pena lançar nomes para o terreno nem fazer grandes apostas, apesar das inúmeras listas de papabili, mais ou menos fundamentadas, que por estes dias se publicam um pouco por todo o lado. A classificação é sempre redutora, mas é mais do que natural que as divisões entre cardeais progressistas e conservadores venham ao de cima.

Há quem diga que, depois dos dois passos à frente dados por Francisco, a Igreja Católica dará um passo atrás, de maneira a aliviar conflitos e tensões, e escolherá um Papa mais conciliador e, digamos, menos confrontacional. Uma coisa é certa: a sucessão de Jorge Bergoglio será sempre complicada. Mesmo não tendo formalizado grandes mudanças, alterações ao nível da doutrina, Francisco foi um Papa extraordinariamente carismático, próximo dos crentes e dos não crentes. Com uma “presença ativa na geopolítica mundial”, como sublinha Anselmo Borges, professor de Filosofia da Universidade de Coimbra.

Tolentino Em Portugal, há quem suspire pela eleição do cardeal-poeta. É pouco provável: tem 59 anos, o que em princípio significaria um longo papado Foto: Cláudio Peri/ LUSA

Na ala mais tradicionalista, já em 2013, foi considerado o nome do húngaro Peter Erdo, atualmente com 72 anos, por causa das suas ligações europeias e africanas. Do lado oposto, também Mario Grech, 68 anos, o maltês a quem Francisco entregou o cargo de secretário-geral do Sínodo dos Bispos, é visto com bons olhos. Já Pietro Parolin, 70 anos, seria uma solução de compromisso entre conservadores e progressistas. Na linha do perfil de Francisco, os vaticanistas acreditam ainda haver duas possibilidades: uma linha italiana, na figura de Matteo Maria Zuppi, 69 anos, arcebispo de Bolonha; outra asiática, na figura de Luis Antonio Gokim Tagle, 67 anos, natural de Manila, nas Filipinas. 

Entre os portugueses, fala-se em José Tolentino Mendonça, responsável pelo Dicastério para a Cultural e Educação e figura querida entre nós. Nasceu no Machico há 59 anos e, por isso, seria um Papa das “periferias” que Francisco tanto acarinhou, mas na verdade a sua idade poderia (em princípio) indiciar um longo papado, o que faz com que o seu nome seja posto de lado pelos principais apostadores. Cardeais portugueses com direito de voto, neste momento, contam-se quatro: além do poeta madeirense, Américo Aguiar, bispo de Setúbal e cardeal desde a Jornada Mundial da Juventude que ocorreu em Lisboa, em agosto de 2023; António Marto, antigo bispo de Leiria-Fátima; e José Manuel Clemente, antigo patriarca de Lisboa. 

A sucessão de Francisco vai dar que falar por vários motivos. Desde logo, por Jorge Bergoglio ter escolhido a maioria dos cardeais que, neste momento, têm direito de voto. Dos 135 eleitores do novo colégio cardinalício, 108 foram selecionados por Francisco. Só no último consistório ordinário, em dezembro de 2024, elevou a cardeal 21 prelados, alguns provenientes de regiões distantes – as tais “periferias”. Destes, só um não é eleitor, o italiano Angelo Acerbi, que atinge os 100 anos em setembro próximo. Francisco rompeu com a prática de destacar bispos de grandes dioceses, escolhendo, por exemplo, figuras de Teerão (Dominique Joseph Mathieu), Argel (Jean-Paul Vesco), Tóquio (Tarcisius Isao Kikuchi) e Abidjan (Ignace Bessi Dogbo). 

Influenciáveis e influenciadores

Ao fazê-lo, o Papa Francisco tinha um objetivo nobre, a abertura ao mundo, a “internacionalização”. Pretendia, sobretudo, acabar com o perfil eurocêntrico do conclave que elege o Papa. Quando Jorge Bergoglio foi escolhido, em 2013, os cardeais europeus representavam 56% do total. Entretanto, essa percentagem já baixou para 39%, com 53 eleitores europeus, 18 africanos, 23 asiáticos e quatro originários da Oceânia. Da América do Norte, fazem-se representar 16, da América Central são 4 e da América do Sul são 17.

Quem entra Papa, diz um velho ditado
italiano, sai cardeal, ou seja, não vale
a pena lançar nomes para o terreno
nem fazer grandes apostas, apesar
das inúmeras listas de papabili

Os seus detratores não lhe perdoaram, claro. Por outro lado, também é preciso ter em conta que o facto de um número significativo ser inexperiente e não conhecer os meandros da Cúria Romana poderá torná-lo mais vulnerável a eventuais grupos de pressão. Mais: muitos desses novos cardeais provêm de locais onde a Igreja ainda é encarada de forma tradicional, podendo por isso estar mais alinhados com tendências ditas conservadoras. Terá sido, aliás, a pensar nisto que, a 6 de fevereiro, dias antes de ser internado, Francisco prolongou o mandato de Giovanni Battista Re à frente do Colégio Cardinalício. Re já não tem idade para votar no conclave, mas de acordo com alguns vaticanistas poderá vir a ser uma figura determinante no pré-conclave, quando muitas vezes ficam definidas as grandes tendências. Acredita-se que Re será a garantia de que o legado de Francisco será respeitado. 

Recorde-se que, pouco antes de entrar no Hospital Gemelli, Francisco também não poupou o programa de deportações em massa de Donald Trump e de J. D. Vance, que se converteu ao catolicismo já adulto e que, por ironia do destino, esteve em Roma no último fim de semana. Numa carta enviada aos bispos norte-americanos, pediu nomeadamente que fossem rejeitadas as “narrativas que discriminam e causam sofrimentos desnecessários aos nossos irmãos e irmãs migrantes e refugiados”. 

Quando a saúde de Francisco começou a piorar, fontes bem informadas do Vaticano alertaram para a questão dos perigos da desinformação durante a eleição do novo líder da Igreja Católica. Ao jornal Politico, chegaram mesmo a dizer que a nova administração norte-americana poderia já estar com os olhos postos no próximo conclave. “Já influenciaram a política europeia, não teriam problema em influenciar o conclave. Podem andar à procura de alguém menos confrontacional”, afirmaram ao Politico. Se o caso é motivo para preocupação ou não, é difícil dizer. Mas se há matéria propícia a teorias da conspiração é, precisamente, a eleição de um novo Papa.

Palavras-chave:

Existem informações contraditórias, mas só o facto de estar a decorrer uma «negociação» em que dois se unem contra um terceiro não parece um modelo destinado ao sucesso. A Europa e outros países aliados terão de continuar a apoiar e proteger a Ucrânia.

  1. O irmão gémeo de Putin, o senhor Trump, ainda não deixou de ameaçar diretamente Kiev e Zelensky, usando sempre o mesmo argumento: se Zelensky não ceder, os EUA deixarão de fornecer apoio militar e financeiro. Uma autêntica tramóia.
  2. O outro, vindo de mães diferentes, tem uma posição há muito definida. Acordos para tréguas ou cessar-fogo só acontecerão com o congelamento das «fronteiras» atuais da frente de batalha. Donbas e Crimeia estão fora da mesa negocial. Sendo muito ardiloso, faz circular notícias que sugerem a sua vontade em devolver à Ucrânia as suas fronteiras originais. É um típico truque de roleta russa.
  3. Zelensky está sujeito à máxima pressão possível: precisa de proteger os cidadãos ucranianos e o seu território. Obviamente que deseja pôr fim ao conflito para construir uma solução sustentável, mas tem consciência clara de que qualquer decisão precipitada poderá levar ao fracasso interno e externo da sua presidência.

Falta ainda um elemento-chave, talvez decisivo, nestas «negociações»: a presença da Europa, em igualdade de condições, para discutir e eventualmente chegar a um acordo. Se tudo avançar num bom sentido, e essa possibilidade existe, chegará o momento em que António Costa e Ursula von der Leyen terão de se sentar numa mesa negocial ao mais alto nível. Cresce na Europa um sentimento claro: todos querem colocar Trump na ordem! E, caso isso seja impossível, deixem-no a falar sozinho. É possível, é viável e desejável.