Depois das ondas de choque iniciais com a apresentação pública do relatório da Comissão Independente para o Estudo dos Abusos Sexuais de Crianças na Igreja Católica Portuguesa, há muita matéria para repensar.
Antes de mais as incidências deste relatório são chocantes mas não surpreendentes. Todos sabíamos há muito da situação paralela noutros países, desde o continente americano à Austrália passando por toda a Europa, assim como do discurso do papa Francisco nesta matéria. Além disso, havia testemunhos repercutidos pela comunicação social do nosso país e, não sejamos ingénuos, muita gente tinha perfeita consciência de que a prática de abusos sexuais perpetrados por sacerdotes sobre crianças nos seminários, confessionários, sacristias, casas paroquiais e colégios católicos aconteciam.
A comissão apenas veio desvendar uma gravidade ainda maior destas práticas, uma distribuição por todos os distritos do país e sobretudo a face mais negra do clericalismo que persistiu em ocultar estes crimes, em subestimar o fenómeno e obstaculizar enquanto pode a criação duma comissão independente que os pudesse investigar com toda a isenção. Além do mais veio também trazer à luz relatos inimagináveis das vítimas.
A elevada qualidade científica tanto dos membros da comissão como do trabalho realizado permitiram também tornar estes resultados indiscutíveis, levando a IC e a sociedade portuguesa a centrar-se realmente nas conclusões apresentadas.
Chegados aqui há perguntas que se impõem. A primeira é o que fazer com as vítimas? Concretamente, há que atuar na legislação e passar a idade limite da denúncia dos 23 anos para os 45 ou 50 e não para 30, ao contrário da proposta da comissão. A maturidade tardia dos jovens contemporâneos e sobretudo o “buraco negro” com que as vítimas caracterizaram as décadas que se seguiram aos abusos, aconselham a que se dê muito mais tempo para que a pessoa se organize internamente ao ponto de conseguir formular a denúncia. Aliás, o bispo emérito das Forças Armadas e de Segurança, Januário Torgal Ferreira, já veio a público defender que “a prescrição desses crimes devia passar para os 50 anos ou 40 anos”.
Por outro lado há que proceder à reparação das vítimas, começando por um ato solene de pedido de desculpas formal, institucional e litúrgico, apresentado pela IC, mas igualmente pela prontidão desta em suportar os custos de apoio psicológico, psiquiátrico e eventualmente farmacológico, visto que, de acordo com os estudos, 60% das vítimas revelam sintomas psicopatológicos ao longo da vida, incluindo por vezes adição ao álcool, a drogas e perturbações de personalidade graves como a esquizofrenia.
Além disso, espera-se a resignação dos bispos que ainda estão em funções e ocultaram comprovadamente os abusos. Daniel Sampaio adianta: “Se [eu] fosse bispo e tivesse ocultado casos [de abusos], resignaria”. Como se compreende este é o único caminho digno.
Mas também se torna urgente introduzir a questão da sexualidade na formação dos seminários, enquanto realidade humana e natural, e ter em atenção a indispensável triagem dos candidatos ao sacerdócio que passe pelo psicológico. Nem todos os indivíduos que fazem o seminário têm condições para exercer o múnus sacerdotal. Finalmente há que pensar nas indemnizações a pagar às vítimas, tal como sucedeu noutras paragens.
Este é o momento ideal para a IC reflectir profundamente sobre a mudança de paradigma a que urge propor-se, isto é, abandonar uma cultura de poder para assumir uma cultura de serviço. A IC é simultaneamente vítima e cúmplice destes crimes, e por isso tem uma escolha à sua frente. Ou reage como vítima ou como agressora. Como escreveu Teresa Toldy: “É preciso não ser cúmplice.” Católicos conscientes da gravidade da situação organizam-se agora para exigir que a hierarquia da IC dê uma resposta clara e urgente às vítimas de abusos sexuais, ao organizar vigílias para pressionar a hierarquia.
Entretanto, por estes dias, o antigo padre madeirense Anastácio Alves, confesso abusador de menores, desaparecido desde 2018, tentou entregar-se à justiça mas não foi recebido a propósito de tecnicalidades jurídicas. O pior que podia acontecer agora seria, depois do excelente trabalho técnico-científico da Comissão Independente, e da apresentação pública das conclusões e publicação do respectivo relatório, tudo ficar na mesma, à conta do clericalismo e corporativismo da IC, mas também dos vícios do sistema de justiça.
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