Muitos são os que acusam a religião pelas guerras no mundo ao longo da História, sem compreender que o conflito é sempre causado pelo desejo de conquistar ou manter o poder, e nesse esforço a religião é apenas o pretexto para o desencadear e exacerbar das hostilidades uma vez que mexe com o emocional de forma muito profunda. De resto, existem muitos outros pretextos para a guerra, como o acesso ao mar e o controlo das riquezas naturais dentre outros.
Essa má vontade contra o fenómeno religioso é uma arma arremessada normalmente por quem não tem fé, mas que esquece aspectos elementares a ter em consideração. Antes de mais, o campo religioso é constituído por pessoas imperfeitas – não há ninguém perfeito neste mundo – e as instituições religiosas são construções humanas, logo, imperfeitas por natureza.
Por outro lado, da área religiosa a comunicação social normalmente só noticia o escândalo, o conflito, o crime e o bizarro, de modo que tudo o que é bom, construtivo e louvável só não passa ao lado da imprensa especializada, a qual não atinge o grande público.
Acresce que todas as religiões em geral apelam à paz quando abordadas sem preconceitos. Karen Armstrong, uma antiga freira católica que entretanto abandonou o hábito e se dedicou à investigação e estudo das religiões ajudou a promover em 2009 a “Carta pela Compaixão”, pelo que recebeu um prémio. O documento veio a ser subscrito por crentes e não crentes de diferentes religiões, ideologias e nacionalidades, observando-se nele um denominador comum entre as tradições religiosas, relativamente à luta pela paz e compaixão.
Recentemente tivemos o excelente exemplo de Moçambique, que referimos na VISÃO, e onde se verificou a unidade na acção das religiões no combate ao jihadismo islâmico em Cabo Delgado e no apoio às populações deslocadas em fuga às incursões terroristas.
De facto, o grande problema está não nas religiões em si mesmas, mas sim na mistura entre religião e poder político. Essa mancebia é a fonte de todos os problemas. Por um lado o poder político quer contar com o apoio do religioso como sustentação ou legitimação, por outro as lideranças religiosas são atraídas pelos corredores do poder como a traça pela luz.
Além disto sucede ainda outro problema nos estados de direito democrático, de natureza laica. É que os governantes têm muita dificuldade em lidar com o fenómeno religioso quase sempre por desconhecimento do mesmo, com receio de ferir o princípio da liberdade religiosa. Se não fazem nada correm o risco de surgirem situações ilegais e criminais no seio dos grupos religiosos, mas se tentam intervir podem ferir o princípio da liberdade religiosa e atentar contra a constituição e os direitos fundamentais.
Todos os anos se celebra o Dia Mundial da Religião a 21 de Janeiro, e que em alguns países assume a vertente de Combate à Intolerância Religiosa. A efeméride começou por ser criada por membros da fé Bahá’i dos Estados Unidos, de origem persa e xiita, e procurava promover a harmonia entre todas as religiões do mundo. Este ano e nessa mesma data a LUSA teve tempo e espaço para noticiar que um militante de extrema-direita queimou uma cópia do Alcorão junto à embaixada turca em Estocolmo, e também para noticiar a celebração do Ano do Coelho por cidadãos de origem chinesa no Porto, mas não para fazer uma breve referência que fosse ao Dia Mundial da Religião. Infelizmente, este o jornalismo que ainda temos.
Um estado de direito, moderno e democrático só pode ser laico, mas a sociedade nunca o é. Por isso a privatização da religião e o seu confinamento às casas familiares e aos templos, ao melhor estilo laicista, fere o princípio da liberdade religiosa, que passa pela vivência da fé também no espaço público. Mas o que não pode significar em hipótese alguma é qualquer espécie de imposição duma ética religiosa particular a terceiros.
Enquanto o poder político não entender que o diálogo entre religiões é fundamental para a construção da paz no mundo dificilmente se acabará com as confusões à volta do fenómeno religioso. A presidência da Assembleia da República parece querer dar um bom sinal ao pretender passar a celebrar o Dia da Liberdade Religiosa e do Diálogo Inter-religioso todos os anos, a 22 de Junho, a partir de agora.
Esse é o caminho.
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