Preso por ter cão e preso por não ter. Primeiro atacaram o primeiro-ministro, dentro e fora da Assembleia da República por convidar indivíduos para funções governativas ou altos cargos públicos que depois se vinha a descobrir terem rabos-de-palha, o que os levava inevitavelmente à demissão. Mas quando o governo anunciou um mecanismo de verificação prévia – vetting – à semelhança do que se pratica em muitos países do continente e na União Europeia, foi a vez da oposição gritar aqui del’rei que isto é uma infantilidade, uma palhaçada.
De facto este mecanismo já devia ter sido implementado há muitos anos, mesmo noutros governos, tendo em conta os escândalos consecutivos que o país tem vivido com políticos filiados em diversos partidos ou independentes, já que todos têm pés de barro.
O que se está a viver é o sintoma duma profunda crise de liderança no mundo, na política, nos negócios, e até na religião. Vejam-se os casos consecutivos de corrupção, de tentativa de manipular actos eleitorais, de nepotismo, de falsificação de curriculum vitae, de abuso de poder, de abuso de confiança, de prevaricação, de lavagem de dinheiro e de crimes de outra natureza ligados ao exercício do poder.
Como é óbvio, os convidados para funções públicas, em vez de pensarem nos proveitos pessoais e políticos ou na sua vaidade, devem ser os primeiros a verem-se ao espelho em casa antes de aceitar, de modo a confirmar se por acaso não têm nenhum problema pendente de ordem ética, legal, fiscal, contraordenacional, cível ou penal, que venha eventualmente a criar problemas a quem os convidou ou ao livre exercício das funções a desempenhar. É elementar.
Não é o primeiro-ministro – seja lá ele quem for – que pode armar-se em polícia e andar a vasculhar no histórico de cada pessoa que convida. Nem lhe compete tal tarefa nem seria possível, desejável ou exequível.
A repetição destes casos constitui um sintoma em si mesmo do défice de integridade que assola a sociedade em geral e a vida política em particular, embora se reflicta em muitos outros sectores, em especial onde existem relações de poder.
Não basta ao político manter-se nas margens da legalidade. Como dizia Thoreau em “A Desobediência Civil” (1849): “A lei jamais tornou os homens mais justos e, através do respeito por ela, mesmo os mais bem-intencionados transformam-se diariamente em agentes da injustiça”. A natureza das suas funções exige-lhes uma dimensão ética que funcione como referência à sociedade. A ética vem antes da lei e vai para lá dela. O que realmente inspira as pessoas não é obedecer às leis mas sim uma postura ética e cívica inatacável. A lei fala sobretudo de evitar punição, mas a ética revela o verdadeiro carácter do indivíduo.
Porém, Óscar Wilde foi ainda mais longe: “Chamamos de ética o conjunto de coisas que as pessoas fazem quando todos estão a olhar. O conjunto de coisas que as pessoas fazem quando ninguém olha chamamos carácter.” Pelo menos qualquer governante deve saber que o país está a olhar para o que faz e diz, independentemente do escrutínio da comunicação social, em particular da tabloide que apenas persegue o cheiro a sangue à maneira dos tubarões.
Dirão que estou a ser ingénuo, que os políticos são todos corruptos. Não. Esse é o discurso dos populismos de direita e esquerda, como se os que o proferem não fossem igualmente políticos, feitos da mesma massa. Querem apenas destruir as instituições democráticas a fim de instalar autocracias ou ditaduras, elegendo um qualquer messias, na linha do velho sebastianismo que pretende substituir a postura e intervenção cívica de toda a polis, de modo a que alguém pense por nós e faça em nosso lugar.
Como bem disse Augusto Santos Silva (DN/TSF), estas demissões “estão a desgastar o governo”, procurando salvaguardar o parlamento enquanto seu presidente. Mas o problema é que a alternativa política não existe, como se sabe e Marcelo já sublinhou, pelo que o que Costa tem a fazer é corrigir rapidamente a rota e governar.
Mas o que se viu nestes últimos dias foi os partidos da oposição em geral a juntar mais uma vez um espectáculo público de hipocrisia política ao espectáculo público de falta de integridade que vem sendo dado por membros do governo.
Foi pior a emenda do que o soneto.
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