Célia é um anagrama de Alice. E é também o nome da tempestade à qual chamam com propriedade depressão e que tinge agora de um ocre amarelo-alaranjado os céus e as ruas, tornando a realidade um aparente filme em tons de sépia que me faz sentir como uma intrusa personagem, mal saio para o passeio.
Procuro na memória um momento ao qual associar esta cor e aquele que me ocorre é o do meu corpo de criança queimado na película de Super 8, escurecendo derretida pelo calor, o clac clac clac da película solta na bobina interrompendo-me e à Patrícia, tão mas tão loura, estendida ao meu lado sobre a relva à beira da piscina do Hotel Polana. As memórias ardem muito facilmente, nisso são como a celuloide; “Kodachrome/They give us those nice bright colors/Give us the greens of summers/Makes you think all the world’s a sunny day, oh yeah”…Simon & Garfunkel & o meu pai e o dela filmando-nos ambos, às escondidas, nesse verão colonial do qual apenas se mantêm, inalteradas, as mesmas coordenadas; 25° 58′ 1″ Sul, 32° 34′ 59″ Este.
Imagino o nosso presidente da República que está lá, agora, em Maputo que já foi Lourenço Marques. Chegou na manhã de quinta-feira, vai inaugurar um resort e visitar dois campos para formação dos soldados. “Esta visita terá uma forte componente militar e uma dimensão empresarial”, anunciava a nota da Presidência. O pai de Marcelo, Baltazar, foi Governador de Moçambique. Tenho um cartão algures, com a sua requintada caligrafia, agradecendo simpaticamente aos meus pais um qualquer jantar.
“Os casos mais difíceis são aqueles em que pessoas ligam porque foram violentadas por desconhecidos e, por vezes, chegam até a chorar“, contou à Agência Lusa Pedro António Tomás, um dos jovens que opera a linha de atendimento criada pela ONU no país, para apoio às populações afetadas por conflitos e desastres naturais mas que se queixam também de abusos de poder, corrupção, fraudes, violência doméstica, essas coisas das quais é suposto proteger-nos a vida nos resorts.
Almoço com um amigo e ele diz-me, em jeito de lamento: “Tenho falado com muitas pessoas e nenhuma parece feliz”. Talvez me diga para que contraponha a minha felicidade mas isso, claro, não é de todo possível e, para mais, enquanto ele fala aquilo em que penso é na descoberta de Alice, a que atravessa o espelho, não a do país das maravilhas: “Eu costumava pensar que o tempo era um ladrão, mas ele dá antes de tirar. O tempo é uma dádiva. Cada minuto. Cada segundo”. Soubesse disso antes, ou mesmo agora.
Não falo de Moçambique com o meu amigo. Só da Ucrânia e da Rússia e da China. Célia vem do latim para céu. Talvez por isso lhe tenham dado esse nome, à depressão que nos trouxe a poeira destes dias queimados e que me lembraram, sei eu lá porquê, esse país da infância que vai perdendo a cor.
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