Neste dia em que escrevo teve início a guerra, tão antecipada. Os mísseis fragmentando, de madrugada, cidades até agora vivendo um pacato anonimato, com nomes como Kakhovka ou Vuhledar. Nesta, a destruição de um hospital provocou quatro mortos e dez feridos, seis deles médicos, esclarecendo desde logo que os alvos não serão militares nem estratégicos somente, que a vontade de aniquilação se estende até incluir o que deveria entre tudo ser mais preservado.
Essa e outras notícias li-as enquanto por cá ainda despontava a aurora. E ao olhar o sol que nascia recordei o poema de Ungaretti que hoje os italianos aprendem nas escolas. ‘Matina’ teve uma primeira versão, mais longa, que o então jovem poeta Giuseppe, voluntário do 19º Reggimento, enviou ao amigo Giovanni Papini. Mas depois, num ato genial de depuração, reduziu-o a uma única frase em duas linhas. Ou melhor; a uma data, um lugar e uma frase em duas linhas:
“Santa Maria La Longa il 26 gennaio 1917
M’illumino
d’immenso”.
“Ilumino-me de imenso” escreveu ele há mais de um século junto ao Adriático entre a carnificina das batalhas, nessa primeira guerra a que chamámos mundial. Lembro-me do seu poema e interrogo-me; quem será o jovem poeta voluntário ucraniano a pousar por momentos as armas e escrever no intervalo dos projéteis, trocando a visão dos escombros pela luz das palavras?
Serhiy Zhadan escreveu estas linhas, num dos poemas em que fala da sua Ucrânia Oriental:
“Enquanto isso, quase todas as pessoas que se casaram na altura morreram.
Enquanto isso, os pais de pessoas da minha idade morreram.
Enquanto isso, a maioria dos heróis morreu”.
Agora haverá novas mortes. Entre os que sobram, quem conseguirá ainda iluminar-se, por pouco que seja? Que sobreviventes vozes serão as pequeninas luzes bruxuleantes, vacilando exatas como nas palavras de Jorge de Sena?
E quando, mas quando, poderemos deixar para sempre de recear a beleza incandescente destas madrugadas?
…
Num jornal diário o título exclama, em letras gordas na primeira página: “Guerra agrava conta da luz e gás”.
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