“É a revolução do senso comum”. A ideia como Donald Trump anuncia a sua nova era não anda longe do “ele diz umas verdades” que se ouve em qualquer tasca. O “senso comum” não se constrói com dados, investigação e pensamento. É feito de uma mistura de emoções, intuição e experiência pessoal, impossível de ser posto à prova, porque não é verificável. O “senso comum” aparece como se tivesse geração espontânea, como se fosse uma coisa que emana da própria natureza, uma coisa que interiorizamos de forma tão automática como o ar nos entra pelos pulmões.
O “senso comum” não obriga a pensar. Aliás, é mesmo desaconselhável que o façamos. Porque o “senso comum” é uma espécie de normalidade estatística enviesada. Não é necessariamente o pensamento de uma maioria, mas é o pensamento de uma maioria com poder. É uma espécie de ideologia dominante, na sua forma mais primária. Um consenso artificial construído em torno daquilo que será aceitável para uma espécie de “homem comum”.
“É puro bom senso”, dizem-nos quando nos querem fazer aceitar alguma coisa sem questionar. A frase convida à ideia de que a própria interrogação é uma loucura. O apelo ao “bom senso” blinda qualquer ideia do questionamento. E é muitas vezes usado por quem não se quer justificar.
Quem acredita que a democracia se pode construir como o reino de um “senso comum” guiado pelo “puro bom senso” está, mesmo que não se aperceba disso, a abrir caminho para uma submissão aceite sem crítica.
Não é por acaso que o “senso comum” e o “bom senso” ocupam cada vez mais espaço político, exatamente na mesma altura em que a “pós-verdade” corrói as ideias de estabilidade e segurança, os debates informados são substituídos por análises às perceções e a dependência tecnológica que sustenta uma economia de exploração nos absorve a atenção e nos destrói o sentido crítico.
Há uma espécie de tempestade perfeita, criada pelo novo mundo dos algoritmos, da inteligência artificial e de uma indústria da atenção que nos deixa permanentemente exaustos e descrentes. Navegar num mundo de deepfakes e redes sociais é um pouco como andar por uma sala de espelhos da Feira Popular. Há uma ausência de referências, imagens desfocadas e realidades enganosas que tornam difícil a formação das opiniões que moldam as nossas ações no mundo. Andamos cegos, num mundo que nos parece enganador e nos faz desconfiar de tudo.
E é exatamente por isso que o “senso comum” se tornou num enunciado político apelativo e o “bom senso” numa fórmula capaz de impor uma opinião sem contraditório ou justificação.
O que é importante entender é que não chegámos aqui por acaso. Donald Trump e a onda de ultradireita que atravessa o mundo têm o espaço que o sistema económico e tecnológico tornaram possível.
Não há uma ilustração melhor da conquista desse espaço do que a imagem da tomada de posse de Donald Trump com Elon Musk, Jeff Bezos, Mark Zuckerberg, Sundar Pichai da Google, Tim Cook da Apple e Shou Zi Chew do Tik Tok. Juntos, estes homens não só dominam milhares de biliões de dólares, como estão infiltrados no mais íntimo de nós. Têm acesso a todas as nossas fotografias, aos nossos gostos e preferências, às mensagens que trocamos, às pessoas com quem nos damos, àquilo com que sonhamos e aos sítios por onde andamos. O seu poder é esmagador e está já muito para lá do económico. É também um poder simbólico.
Não só estes homens sabem tudo sobre nós, como detêm o poder de determinar o que sabemos. Com um simples gesto seu mudam os nomes dos mapas, mostram vídeos realistas feitos para nos enganar, enterram nos confins do algoritmo todas as ideias que não lhes interessam e tornam comuns – até serem as mais aceitáveis pela repetição – as ideias que melhor os servem. Nunca tão poucos homens tiveram tanto poder sobre toda a Humanidade e de uma forma tão global, implacável e incontestada.
A sua força está em fazer parecer magia as ferramentas que usam, embasbacando-nos com a inteligência artificial. Em se tornarem heróis, endeusados por uma ideia de mérito que escraviza os que os querem imitar, iludidos com a ideia de que lá poderão chegar. Em terem sabido infiltrar-se de tal maneira nos nossos estilos de vida que nos parece impensável viver sem as ferramentas que usam para nos dominarem.
Nada disto tem de ser um beco sem saída. Mesmo perante gigantes, há sempre formas de resistência. A questão é que eles perceberam que o sentido crítico é o seu maior inimigo e é por isso que estão a usar todos os seus recursos para o destruir. Ter consciência disso será já uma forma de resistir. Evitar cair nas armadilhas do “senso comum” e do “bom senso” também.
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