“Quando me vou meter em sarilhos, ponho o batom vermelho”, diz-me com um sorriso, ao mesmo tempo que franze os olhos verdes. É uma daquelas pessoas que não consegue desviar o olhar. E é a isso que chama “meter-se em sarilhos”. Pode ser um carro em cima do passeio que não deixa passar um carrinho de bebé, mais um T2 a dois mil euros por mês, que a fez ter vontade de encher a caixa de correio de mensagens sobre a ganância dos senhorios, ou uma criança que lhe parece abandonada. Nas últimas semanas, encontrou várias.
Ouço-a incrédula, enquanto me explica que, durante todo o verão, foram várias as vezes que se apercebeu de crianças com menos de oito anos sozinhas no jardim do bairro do centro de Lisboa onde mora. “Esta altura é terrível para os pais. Não há onde deixar os filhos”, diz-me ela, que também tem um e teve de fazer um exercício de malabarismo profissional e turnos parentais divididos com o companheiro para garantir que o pequeno estava sempre acompanhado.
Um caso chamou-lhe particularmente a atenção. Era um menino de seis anos que, começou a perceber, passava às vezes mais de oito horas sozinho num jardim. Aproximava-se das crianças e dos pais que por ali andavam, brincava, às vezes pedia comida. “Ele tinha fome”. Ela começou a dar por ele em julho e, já agosto ia a meio, ainda por lá andava a criança horas a fio. “Estava carente. Começou a ficar agressivo. Chegou a pôr pedras na boca de um menino mais pequeno”.
Falou com outros pais, todos viam, ninguém se queria meter. Não aguentou mais e ligou para a polícia. Uma, duas, três vezes. Era preciso apanhar o menino no momento em que lá estivesse sozinho. Andou dias a perceber a quem podia pedir ajuda. Lá encontrou o serviço da CPCJ que cobre aquela zona.
Quando me falou no caso, tentei perceber se seria algo mais do que uma situação isolada. Depois de um verão à procura de atividades para crianças e de perceber que muitas (sobretudo em agosto) têm valores absolutamente incomportáveis, pareceu-me que talvez a história deste menino não seja só de abandono e negligência, mas também de desespero e falta de apoio.
Falei com a PSP. “Apesar do aumento de crianças nas ruas, própria da época de férias, o COMETLIS não regista aumento de relatos ou denúncias de crianças abandonadas ou negligenciadas”, informou-me o gabinete de Relações Públicas daquela polícia. Quanto ao mais, não há dados: nem para perceber se as situações de negligência estão relacionadas com as férias de verão nem sobre o perfil socioeconómico das famílias nem para entender se há um aumento deste tipo de casos.
Falei com a CPCJ Nacional. Também aí me explicaram que os relatórios anuais não contemplam especificamente esta situação. Ou seja, é possível que haja casos de abandono de menores durante as pausas letivas sem que isso entre no radar das estatísticas.
Uma amiga, que trabalhou como jornalista, contou-me que há vários anos fez uma reportagem sobre casos destes. Chamou-lhes “fechados na rua”, uma expressão que ouviu a um assistente social, para descrever como estas crianças ficavam fora de casa à espera do regresso dos pais. Na altura, a história era sobre filhos de operários da construção civil e empregadas domésticas, todos a trabalhar muitas horas, precários e mal pagos e sem apoio para os filhos.
Os relatos que agora me chegam vêm de um bairro de classe média alta do centro de Lisboa. Não sei se haverá outros. As autoridades que contactei também não me sabem dizer. Mas sei a ginástica que os pais fazem durante as semanas das férias do verão para não falhar aos filhos. Vi um cartoon espanhol que a resume. Nele, uma mãe responde a uma amiga. “Quanto duram as férias de verão? Duas semanas de colónia de férias, duas semanas de férias, duas semanas de licença sem vencimento e estou a pensar divorciar-me, para que fiquem com o pai”.
Falei com a CCPJ que cobre a zona de Lisboa em que fica o tal jardim. “Já foi possível identificar a criança: esta CPCJ instaurou um processo e está a fazer as diligências necessárias para avaliar a situação”, confirmaram-me, sem me saberem explicar o fenómeno, mas garantindo estar atentos a todas as situações.
Para quem não tem avós disponíveis, nem empregada doméstica nem possibilidade de pagar atividades que custam entre 150 a 300 euros por criança por semana, o Verão pode ser um quebra-cabeças de horas e dias por preencher, enquanto se tenta não falhar nem no trabalho nem em casa. Junte-se a isso o cansaço de uma sociedade que nos exige nada menos que a perfeição e nos bombardeia com solicitações e está bom de ver que temos um problema.
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