Um banqueiro utiliza os fundos dos seus clientes como se fosse o seu mealheiro, passando ao lado do regulador do Estado, que nada vê, nada ouve e nada diz, como o macaquinho da caricatura. O rombo para o contribuinte pode vir a cifrar-se em milhares de milhões de euros. Uma promotora e presidente de uma IPSS utiliza os fundos dos seus doadores (incluindo o Estado) como se fosse o seu mealheiro, passando o lado da regulação estatal, que nada vê, nada ouve e nada diz, como o macaquinho do conhecido cartoon. Cereja no topo do bolo, um ex e futuro ministro, ainda por cima histórico detentor da tutela, por lá passou, a dirigir uma assembleia geral que aprovou contas, e nada viu, nada ouviu, nada disse, como o macaquinho da fábula. Um banqueiro avisa, em privado, um Presidente da República de que o seu império corre o risco de ruir, mas esse Presidente, que nada viu, nada ouviu e nada denunciou, como o macaquinho do desenho, cita o regulador, igualmente cego, surdo e mudo, para incutir confiança em incautos pequenos investidores privados – e futuros lesados. Os argumentos das telenovelas repetem-se à exaustão: há sempre um vilão principal e um ou dois secundários, uma ou várias personagens cómicas para desanuviarem do drama principal, crime, castigo e um casal romântico de heróis. A julgar pelo insinuado na investigação da TVI sobre o caso da Raríssimas, continua a haver um casal romântico, mas de vilões. É esta a diferença. Em tudo o resto, olhamos para a história recente do País e interrogamo-nos, manuseando o comando que muda de canal mas não muda de novela: “Onde é que eu já ouvi isto?…”
É certo que o caso da Raríssimas está, obviamente, a ser empolado muito para além da importância objetiva que realmente tem. O Estado – e o contribuinte – perderam quase uma dezena de milhares de milhões de euros com o BPN. Os submarinos lesaram-nos em mais uns pares de milhares de milhões. O Banif atingirá mais uma meia dúzia. O BES e a Caixa, se contarmos as sequelas do que ainda pode estar para vir, mais umas dezenas de milhares de milhões. A Raríssimas pode ascender, em alegado desvio de dinheiro para ordenados, nepotismo, favorecimento, viagens, compras injustificáveis e avenças, uns pindéricos dois ou três milhões. Não tem comparação nos números. Mas tem comparação nos princípios. E, sobretudo, para o cidadão comum, cada um destes cêntimos tem mais impacto do que mil milhões dos outros casos. Daí o ávido interesse da opinião pública pelo caso, exemplarmente denunciado pela TVI e pela equipa liderada por uma jornalista de investigação que parece ter a capacidade de cavar histórias umas atrás das outras – e que, noutro canal, com conotação menos tablóide, já seria uma estrela… E daí, também, o empolamento a que assistimos, por estes dias, que nos trazem a silly season que, este ano, devido aos incêndios, não chegámos a ter. E porque é que este caso tem tanto impacto?
Antes de adiantar uma tese sobre isso, lembro o episódio da reforma de Cavaco Silva, quando o ex-PR se queixou de que não chegava para as suas despesas mensais. Esta intervenção de Cavaco, que não tinha grande importância para os negócios da Nação, manchou-lhe os dois mandatos, por duas razões essenciais: primeiro, porque a opinião pública detetou-lhe a esperteza saloia. De facto, o pecúlio da aludida reforma era apenas uma gota no oceano do rendimento mensal do então Chefe de Estado, cujo omitiu. Segundo, Cavaco estava a bater na tecla mais sensível, atingindo a faixa de população mais vulnerável: as pessoas, e os reformados, não têm a noção do que são 10 mil milhões, mas sabem o que significam 320 euros.
Este caso evoca essa desastrada história. E tem, também, dois motivos para ser chocante e, ao mesmo tempo, extremamente apelativo e sexy.
O motivo chocante, é que a Raríssimas se tornou suspeita de utilizar, para proveito próprio de, pelo menos, dois chicos-espertos, donativos que as pessoas, ou o Estado, com o dinheiro das pessoas, encaminhavam “para quem precisa”. Ou seja, este tipo de falcatrua brinca com os nossos sentimentos. O conto do vigário irrita muito mais do que o golpe de alta finança, perpetrado por um banqueiro. A vigarice invoca demónios escondidos de frustração e, até, de alguma inveja escondida, porque outro, e não eu, se aproveita da ingenuidade alheia, nomeadamente da minha, demonstrando ser mais espertalhão do que eu. E este é o motivo chocante que torna Paula Brito e Costa e Manuel Delgado uma espécie de vilões mais próximos de nós – e, portanto, mais odiados – do que os banqueiros vigaristas do regime. Percebemos melhor este desvio do que o outro, como percebemos melhor o montante de uma reforma do que o de um desfalque.
O motivo sexy é o de que a última peça da TVI, consagrada na incrível entrevista de Ana Leal ao ex-secretário de Estado da Saúde, enuncia, subrepticiamente, o motivo – óbvio para o espectador… – verdadeiro de tudo isto: afinal, poderá tratar-se de uma história de alcova. É por isso que a pergunta polémica sobre a eventual relação amorosa tem tanta relevância pública. Já agora, depois de termos ouvido escutas sobre morníssimos interrogatórios judiciais em processos mediáticos, convinha que procuradores e juízes pusessem os olhos no conteúdo das perguntas e na atitude, incluindo postura corporal e expressões faciais, da entrevistadora, durante a confrangedora conversa com o pobre do governante. Se uma causa também pode ser decidida pela convicção formada por um júri, este caso não podia ser mais paradigmático. Percebemos tudo.