À medida que os anos passam, dá a ideia de que a Festa do Pontal, tida como início do ano político do PSD, vai ficando cada vez mais irrelevante. Para contrariar essa ideia – que, aliás, se refletiu no pouco destaque dado ao evento pela imprensa de referência – vamos hoje falar dela. Ou, melhor dizendo, de um aspeto do discurso de Pedro Passos Coelho.
A primeira ideia que fica, é que o homem está com azar. Depois de ter tido uma frase forte e certeira, de verdadeiro líder da oposição, que foi esta – “O SIRESP tem a cara do atual primeiro-ministro” -, o que ficou foi uma ambígua afirmação sobre a nova lei de imigração, em que o líder do PSD defende que não podemos aceitar entre nós “qualquer um”.
É verdade que, assim, sem contexto, a frase parece xenófoba. Mas os talibãs do politicamente correto, bem como os críticos de Passos que, vendo-o na mó de baixo, a atravessar o deserto da oposição, aproveitam para malhar mais no senhor, saltaram-lhe em cima, como se o homem da rua não concordasse, deixemo-nos de hipocrisias, com o substrato da afirmação. Não por xenofobia, mas por uma questão de senso comum. Recordo que os imigrantes podem entrar se tiverem “uma promessa de trabalho”, o que quer que isso prove. E que o único critério para a expulsão passa a ser a prática de atos de terrorismo. Se, por exemplo, integrar uma organização mafiosa, antes inexistente em Portugal, dedicada ao crime organizado, será tratado como qualquer português. Até pode estar certo, do ponto de vista dos princípios, mas isto convoca um debate e o debate deve fazer-se. Para começar, este critério do “terrorismo versus outro tipo de criminalidade” é uma confissão institucional de que o terrorista não é passível de regeneração, o que contraria o princípio básico do objetivo da reclusão compulsiva, vulgo prisão, que subjaz à Justiça de um Estado de Direito. Por outro lado, por causa do discurso alegadamente “humanitário” dos defensores do politicamente correto é que Donald Trump ganhou na América. Se o mesmo discurso for institucionalizado, como o foi, nas palavras de defensores do establishment como João Galamba, o efeito será o inverso do pretendido – e estamos a criar o caldo de cultura propício ao advento de novos Trumps portugueses. Cuidado com isso, portanto.
Vem a talhe de foice uma referência às reações provocadas por um tweet do conhecido argumentista de humor e intervenção política, João Quadros – curiosamente, neto do ideólogo intelectual do salazarismo, António Ferro, e, como o seu avô, um homem excessivo e controverso. As redes sociais “incendiaram-se” – já não bastavam os incêndios literais… – por causa da frase “e eu a pensar que só havia uma cabeça rapada em casa do Passos”. Esta alusão ao cancro da mulher do presidente do PSD é, convenhamos, moralmente temerária e convoca outras discussões, para as quais não teremos espaço nesta crónica, sobre os limites do humor. Temática sobre a qual se têm debruçado muitos estudiosos da História do Humor, incluindo, entre nós, Ricardo Araújo Pereira (RAP), a quem seria curioso perguntar o que pensa sobre este caso concreto. Eu direi o que penso: habitualmente, considero que se pode brincar com tudo – incluindo, ao contrário de RAP, com o meu Benfica. Sobretudo, pensando no sacrossanto princípio do primado da liberdade de expressão que, caso resvale para a calúnia, difamação ou ofensa insuportável, deve ser avaliada pelos tribunais do Estado de Direito e não pelos “indignados do facebook”. Mas não concordo, não gostei e não me revejo no tweet de João Quadros – e a minha própria liberdade de expressão permite-me verbalizá-lo… Mas a falta de gosto, geralmente, não me indigna. O que não perdoo é que um humorista falhe as piadas. Ora, foi precisamente o que aconteceu a João Quadros: socorrer-se da esposa negra de Passos Coelho para ilustrar uma acusação de racismo ao líder do PSD é uma contradição nos próprios termos. Ter a vontade de constituir família com uma pessoa de outra raça é o principal atestado de tolerância a favor de Passos. Mais grave do que usar a doença de Laura, é o facto de um argumentista do nível de João Quadros deixar de ter graça.
Poderão dizer-me que a maior parte dos colonos brancos que constituiram família com nativas, em África, não deixaram de ser retintos racistas, mesmo depois de produzirem extensas proles mestiças – ou que, de certo modo, até refinaram o seu racismo depois disso. Mas os contextos são completamene diferentes: estamos a falar de homens cafrializados, que se moviam num ambiente de escassez de mulheres brancas – como certos presidiários heterossexuais com relações homossexuais se movem num contexto de escassez de mulheres… – e se relacionavam com negras de uma forma puramente instrumental. Ora, isso nada tem a ver com o casamento de Passos Coelho nem com a piadola de João Quadros que, desta vez, descredibilizando-se desgraçadamente, apenas pretendeu exercer uma espécie de intolerável bullying humorístico.
