Se não tivesse sido trágico, seria hilariante. Na praia, podemos proteger-nos do sol – mas nem um protetor com fator 100 nos livra de levar com uma avioneta na cabeça. A silly season entra, assim, com literal estrondo, no calendário oficial. Pelo meio, as notícias de um restaurante da Baixa lisboeta que cobra balúrdios a turistas, por pouco mais do que um pires de tremoços. E parece que não é caso único. Isto só acontece porque a ASAE estará de férias, claro. Afinal, estamos em agosto. É por isso que, no meu turno de escrever uma crónica, não me apetece falar de Pedrogão, nem de Tancos, nem do Orçamento, nem da dívida pública (expliquem-me por que razão, depois de tantos pagamentos antecipados ao FMI, ela continua a aumentar… Se calhar, como diria o outro, o melhor é não pagar… – estou a ser irónico.) Hoje vim para o trabalho de bicicleta, atravessei a marginal no sentido Lisboa-Cascais e, a partir de Algés, o metro quadrado de areal disputa-se quase a murro. E isto apesar da proximidade do aérodromo de Tires. Em resumo: não há condições. A silly season impõe um texto completamente fora da caixa. “Está tranquilo, está favorável”, como diz o meu filho, citando o músico de funk brasileiro MC Bin Laden. O verão é um bom lugar para cruzar palavras, mesmo que fora dos quadradinhos das páginas de passatempo. Vamos cruzá-las. Hoje falaremos de linguagem.
Passo a explicar: gosto pouco de eufemismos. É uma embirração. Por exemplo – e já uma vez o escrevi: quando me falam de reformas estruturais, saco da pistola. Traduzida, a expressão quer dizer que alguém nos vai lixar. “Reforma estrutural” significa cortes de direitos, regalias ou rendimentos. Um tio meu costumava proclamar, e bem, que “nós não precisamos de Governo. Do que precisamos é de nos sabermos governar”. Devia ser na mesma linha de raciocínio. Os governos não deviam pensar em fazer reformas. Se mexem, estragam. Se inventam, destroem. A sociedade civil é que faz as reformas. Os governos deviam saber governar. Gerir bem o que existe – por exemplo, só a despoluição do estuário do Tejo permitiu que eu tivesse visto hoje tantas pessoas nas praias de Algés e Caxias. Não foi preciso uma reforma estrutural, só foi preciso que o Estado funcionasse. E deviam, assim, contribuir para a felicidade da população. O Butão dá-nos um bom exemplo, quando substitui o índice de crescimento económico pelo índice de felicidade dos seus cidadãos. E a Dinamarca, o país mais feliz do Mundo (segundo um estudo recente de opinião), dá-nos dez a zero, nós que estamos em 89.º lugar. Com este sol, este mar e esta comida, temos de ter governos muito maus para que isto aconteça.
Utopias à parte, vejamos o que detesto. Gosto pouco, por exemplo, da invasão de expressões inglesas que tomou conta do economês (e não só). Também costumo brincar com o futebolês: eu sei que “não há jogos fáceis” e que “dentro das quatro linhas” é que tudo se decide. Sei que “vamos continuar a trabalhar” e que vamos “dar o nosso melhor”. E, se alguma coisa correr mal, “há que levantar a cabeça”. “Acima de tudo”, “pensar no próximo jogo”.
Gosto ainda menos da invasão de palavras portuguesas que está a empobrecer… a Língua Portuguesa. Lembrei-me disso quando, num letreiro, em vez de ler “sapateiro” li “técnico de calçado”. Os “técnicos de limpesa”, no meu tempo, chamavam-se varredores. Ou melhor ainda, “almeidas”. Há quanto tempo não oiço a expressão? Ao contrário dos “amola-tesouras”, que, na verdade, percorrendo as ruas das cidades, ao som de uma característica flauta, serviam, sobretudo, para reparar guarda-chuvas, os almeidas não desapareceram do nosso cenário urbano! E, já que falo no “meu tempo”, no meu tempo não se dizia “alerta vermelho”. A expressão usada era “inverno”.
Eu só acho que as coisas deviam ser tratadas pelos seus nomes: trabalhadores e não “colaboradores”, utentes ou, noutra perspetiva, fregueses, e não “clientes”, negócio – ou disco, ou espetáculo, ou ideia, ou iniciativa – e não “projeto”, loja e não “espaço”, cozinheiro e não “chef”, canção e não “tema”, despedimentos e não “reestruturação”. Detesto eufemismos. Já vos tinha dito?
Pegando no termo “colaboradores”: Há um fator psicológico e uma intenção escondida nesta nova terminologia. Suponho que se estuda nos livros dos novos gurus da gestão. Por exemplo: “trabalhador” é um termo que remete para reivindicação, contestação, exploração ou revolução.”Funcionário” evoca burocracia, contrato, funcionalismo, ineficácia. Ambos apontam para um vínculo demasiado pesado entre quem emprega e quem é empregado. “Colaborador” vem de “colaboração”, portanto, voluntariedade, gratuitidade, generosidade, tarefa facultativa, ocasional ou intermitente. Tem uma ressonância muito menos vinculativa, mais light e menos conotada com os conflitos nas empresas. Um trabalhador trabalha, um funcionário funciona, um colaborador só coopera, é uma peça avulsa, o funcionamento da máquina não depende dele diretamente. É muito mais descartável. Estive a ver, no dicionário de Língua Portuguesa online da Priberam, a diferença entre trabalhar e colaborar. É super-curioso… Trabalhar é, entre outras coisas, “exercer uma atividade profissional”. Já um colaborador é uma “pessoa que trabalha com outra em iguais circunstâncias de iniciativa”. Eu não sou um esquerdalho: sou um adepto do bom uso do Português. Nada mais.
Já a palavra “reestruturação” (ou, no caso, “sinergia”) surge aqui como uma designação moderna, de gestão, que implica uma atitude proativa e positiva, reformista. O despedimento seria desagradável, remete para crise, dá má imagem, revela uma fraqueza. Eu concordo que se diga reestruturação em vez de despedimentos, por uma questão de comunicação. Mas desde que eu saiba do que estamos a falar, para não ser comido por parvo. Só isso.
Coloquei o problema lá em casa. Vivo com uma empresária, – ou “empreendedora”, outra palavra substituta com que embirro – e queria ouvir uma segunda opinião. Explicou-me que, da perspetiva do empresário, reestruturação é muito mais do que isso. Ele tem de reestruturar a empresa, na qual estão incluídos despedimentos, mas não só: é preciso renegociar contratos com fornecedores, renegociar condições bancárias, etc.. E remata (não sei se gostei de ouvir): “Os colaboradores são apenas uma das peças do motor de uma empresa. As designações que usamos pouco importam.” Pronto, dou de barato. Mas ninguém me tira da cabeça que nada disto é coisa boa.
E é por isso que prefiro uma expressão substituta de “trabalho” que ouvia em miúdo e que ilustra eloquentemente, essa sim, a versatilidade inesgotável da nossa Língua: “Vergar a mola”. Essa linguagem entendo eu bem! “Vergar a mola” é a expressão que eu utilizaria se fosse gestor. Assim: “Os meus vergadores de mola são muito profissionais”, poderia dizer. Ou, para tornar os despedimentos agradáveis: “Meu amigo, chamei-o aqui para lhe dizer que não precisa de vergar mais a mola!” Ah, como as coisas podiam ser tão mais simples se não viessem estes yuppies de Harvard tornar tudo tão complicado…
Por isso caro leitor, se estiver na praia, como é o mais certo, pense nisto: em breve vai ter de voltar a vergar a mola, porque as férias não duram sempre. Enquanto não regressa, eu, que já fiz as minhas, trato disso.