O Ministério das Finanças deu ordens aos departamentos da Administração Pública para que elaborem os seus orçamentos, para 2017, tendo em conta os salários pagos em dezembro de 2016. Isto é, aumentos zero. A UGT e a CGTP, no seu papel, insurgem-se contra a medida. “Inaceitável”, diz a CGTP. “Encontraremos alternativas”, antecipa a UGT. Ora, esta decisão do Governo é interessante sob diversos pontos de vista. Vamos enumerá-los.
1 – Os sindicatos afirmam que não podem ser sempre os funcionários públicos a fazerem sacrifícios para a contenção do défice. Defendem a sua dama, mas omitem vários factos. Em primeiro lugar, o défice corresponde a despesas que o Estado tem de fazer e que vão para além das suas receitas. E a maior despesa é a da massa salarial… dos funcionários públicos! Em segundo lugar, os sacrifícios tocaram tanto à função pública como ao privado. Os salários do privado não foram apenas congelados, nos últimos seis anos: eles diminuiram, globalmente. E os impostos pagos por toda a gente afetaram por igual os trabalhadores do Estado, os do privado e as empresas.
2 – Se os salários do setor privado se encontram congelados há muito tempo – ou, como vimos, diminuiram – não parece justo que os da administração pública subam. Mais, várias empresas do setor empresarial do Estado, também afetadas pela medida, teriam falido há muito, se fossem privadas. Falamos das deficitárias crónicas. E os seus trabalhadores não só não teriam sido aumentados, como teriam ficado sem emprego. É verdade que o nivelamento por baixo não devia ser critério e que os aumentos na função pública costumam puxar pelos salários do setor privado, que tende a acompanhar esses aumentos. Mas será que os trabalhadores do setor público continuam mesmo a perder poder de compra em 2017? Ver ponto 3.
3 – A bitola do salário de dezembro, definida por Mário Centeno, não surge por acaso. É que, em dezembro, a reposição dos salários para valores anteriores aos sucessivos cortes do Governo de Passos Coelho representa um aumento real do poder de compra, relativamente aos últimos cinco anos. Os seja, em 2017, os funcionários públicos ganharão mais do que em 2012, 2013, 2014, 2015 e 2016. Não há um aumento, mas há uma reposição. Por isso é que as Finanças, quando se fala de austeridade, substituiram, no léxico, o termo “corte” pela palavra “aperto”…
4 – Isto pode provocar uma crise no seio da “geringonça” em que se apoia o Governo? Isto é: Bloco de Esquerda e, sobretudo, PCP (mais comprometido com o movimento sindical) poderão colocar em causa o seu apoio ao Governo do PS? Do ponto de vista formal, não. Como se apressou a referir o Governo, esta decisão respeita escrupulosamente as “posições conjuntas” assinadas antes da constituição do Governo com BE, PCP e Verdes. Acordos que previam a reposição dos salários e pensões, em 2016, mas que nada dizem a respeito de eventuais aumentos nos anos seguintes. Quer isto dizer que o PCP – ou, queremos dizer, os sindicatos controlados pela CGTP – têm de aceitar a decisão do Governo? Não. É que, se os acordos não obrigam o Governo a subir salários, também não impedem os seus parceiros de protestar, promover lutas laborais, ou sujeitar tais medidas à sua reprovação no Parlamento.
5 – Isto permite uma conclusão politicamente muito relevante: é que, em dezembro de 2016, tudo o que foi acordado nas posições conjuntas, assinadas no âmbito da geringonça, fica cumprido. A partir de 2017, o Governo está muito mais livre para tomar decisões, a começar no Orçamento. Isso obrigará a recapitular os termos dos acordos com BE, PCP e PEV? Não necessariamente. António Costa pode manter-se confortável apenas pela verdade implícita de que quem romper a coligação pode ficar com o ónus do risco do regresso da direita ao Poder. Ou, se cair, apostar tudo numa maioria absoluta ou numa coligação apenas com o Bloco – a quem não deixará de tentar dar o abraço de urso…
6 – A segunda conclusão é que o Governo de Costa está mais sólido do que nunca. É isso que lhe permite começar a tomar decisões deste género e anunciá-las sem complexos – nem, aparentemente, negociações prévias. A ausência de sanções de Bruxelas e a execução orçamental do segundo trimestre também ajudaram à festa. E foi com base nisto tudo que o Presidente Marcelo concluiu que o espetro de crise política se “evaporou”. Bem vindos à silly season!