Há pessoas que não praticam desporto porque dizem que lhes falta tempo, por culpa dos afazeres profissionais. Há outras que dizem que não têm tempo para estudar porque passam os dias a treinar. Depois, ainda há aquelas que dizem ter deixado de estudar e de praticar desporto porque precisavam de cuidar dos filhos. Felizmente, no meio disto tudo e para quebrar esses preconceitos, ideias feitas e desculpas de última hora, há o exemplo de Beatriz Gomes, a portuguesa que demonstra que se pode ter tempo para tudo, desde que haja motivação e determinação. O seu currículo é suficientemente eloquente: ela é, em simultâneo, uma das melhores atletas do mundo de canoagem (sexto lugar, por duas vezes, nos últimos Jogos Olímpicos), é mãe, e, desde dia 1 de fevereiro, além de professora universitária também é doutorada em Ciências do Desporto.
Aos 36 anos, Beatriz Gomes parece ter vivido já mais tempo do que a maioria dos mortais. Nasceu com o desporto nos genes – a mãe era professora de Educação Física e o pai chegou a ser presidente da Federação de Canoagem, além de praticante de várias modalidades -, mas sempre soube conciliar a atividade física com os estudos. Ainda criança, foi atleta federada em natação e basquetebol, mas devido à influência paterna acabou por se dedicar por inteiro à canoagem. Com um percurso exemplar: aos 14 anos, já pertencia à seleção nacional e, aos 28, conseguiu apurar-se, pela primeira vez, para os Jogos Olímpicos, onde chegou às meias-finais, no K2 500 metros, em Pequim 2008.
Durante esse tempo, soube sempre manter a concentração na escola. Assim, depois de concluído o ensino secundário, optou por prosseguir os estudos a nível superior, na Universidade de Coimbra, onde se licenciou na Faculdade de Ciências do Desporto e Educação Física.
Com o curso concluído, um emprego como professora de Educação Física garantido e uma carreira desportiva de grande nível na canoagem nacional, Beatriz Gomes soube aproveitar, em 2005, aos 25 anos, um conjunto de situações favoráveis e deu um novo impulso à sua vida. Primeiro, estabilizou a carreira profissional: deixou de estar colocada em Loulé, a dar aulas, e voltou para Coimbra, após ganhar o concurso para professora auxiliar na faculdade onde se tinha licenciado. Depois, em termos desportivos, percebeu rapidamente a mudança que estava a ser operada na canoagem nacional, com a nova orientação da federação presidida por Mário Santos e a chegada do experiente treinador polaco Rizschard Hoppe, para selecionador nacional, e a instalação do Centro de Alto Rendimento da modalidade, em Montemor-o-Velho, a poucos quilómetros de Coimbra.
O que fez? Arranjou casa em Montemor-o-Velho, onde passou a residir. Os benefícios foram imediatos: tanto passou a poder treinar duas vezes por dia com os outros elementos da seleção nacional, como estava suficientemente perto de Coimbra para lá se deslocar todos os dias para dar aulas e prosseguir os seus estudos académicos. Isto, com o conforto suplementar, face aos outros, de poder dormir todas as noites em casa, e não nas instalações do Centro de Alto Rendimento – além de ter instalado um ginásio na garagem da sua residência para se manter sempre em forma, e que também “emprestava” a outros atletas quando era preciso.
A aposta foi ganha a todos os níveis, como se comprovou logo em 2008. Duas datas desse ano dão a ideia exata da forma como soube conciliar a atividade académica com a desportiva: em julho, concluiu o mestrado em Biocinética e, em agosto, representou Portugal nos Jogos Olímpicos de Pequim. No ano seguinte, sagrou-se campeã do mundo de maratona, em canoagem, e iniciou o seu doutoramento em Ciências do Desporto. Em 2012, conquistou dois diplomas olímpicos nos Jogos de Londres, com os sextos lugares obtidos no K2 500 metros (com Joana Vasconcelos) e no K4 500 metros (com Helena Rodrigues, Joana Vasconcelos e Teresa Portela) e, no ano seguinte, fez uma paragem na alta competição para se dedicar a outro projeto de vida: ser mãe.
No último ano, depois do nascimento da filha, Beatriz Gomes voltou às provas de canoagem, mas as coisas não correram bem para Portugal nos Mundiais, em agosto, com o K4 a falhar o apuramento para os Jogos Olímpicos, por escassos 20 centésimos de segundo. Dentro de alguns meses, em junho, no entanto, ela ainda terá uma derradeira oportunidade de participar pela terceira vez nuns Jogos Olímpicos, caso seja escolhida pela federação para as provas de qualificação continental, que apuram as últimas vagas para o Rio de Janeiro. Se o conseguir vai ser, de certeza, uma das atletas com maiores qualificações académicas em prova, concluído que foi o seu doutoramento, com uma tese sobre a biomecânica da canoagem, que apresentou publicamente na Faculdade de Desporto da Universidade do Porto, perante um júri que incluiu o americano David Pendergast, catedrático da Universidade de Buffalo.
Perante isto tudo, era bom que a sua carreira fosse vista como um exemplo, tanto ao nível desportivo como académico. Quem a acompanhou de perto desportivamente, sabe que Beatriz Gomes não era propriamente um super talento da canoagem. Nada disso. Tudo o que ela conquistou – duas participações olímpicas, mais de 40 títulos nacionais e duas dezenas de medalhas internacionais – ficou sempre a dever-se a muitas horas de treino, a muito esforço, e a uma dedicação que todos consideram exemplar. A mesma “receita” que, no fundo, aplicou também na sua carreira académica, e que lhe deu força para superar todas as etapas de um doutoramento exigente.
Num país em que o desporto escolar quase desapareceu e com uma cultura desportiva cada vez mais contaminada pelas tricas do futebol, a história de Beatriz Gomes corre o risco de passar despercebida. Segundo o atual “estado de prioridades”, é muito mais “importante” discutir o erro de um árbitro do que analisar o percurso de uma atleta que conseguiu triunfar no desporto e na universidade. E, pelos vistos, também ninguém parece muito interessado em perceber como na base desse êxito esteve também o trabalho desenvolvido pela Federação de Canoagem e o seu Centro de Alto Rendimento, que transformaram uma modalidade quase obscura numa das mais bem sucedidas em Portugal. Mas mesmo que esse debate não se faça, para mal do desporto português, temos sempre a história de Beatriz Gomes para nos inspirar. E a servir de exemplo para o futuro.