Não sei se era o papel do jornal que andava mais rijo, ou se eram as minhas mãos a darem um ar sofrido por conta das aventuras em que andávamos metidos, mas acordara com uma estranha sensação táctil. Naquelas manhãs, eu sentava-me defronte do rio, num banco de pedra lioz em boa altura idealizado por um arquiteto provavelmente famoso, e ficava a ler as novidades do entusiasmante mundo da economia. É mentira: o jornal era sempre o mesmo e eu ficava, sobretudo, a observar o rio, no qual minutos depois iria mergulhar-me, à espera da chegada das pessoas que diariamente nele se banhavam. Naquele ano, a cidade inteira acorria àquelas águas mansas, para nelas se expurgar da tensão, do bulício e de outras pragas que lhe são próprias. Não seria exatamente a cidade inteira, mas por ali se via toda a sorte de gente, não se pense que aquele era um hábito da indigência. A mais sofisticada burguesia e os mais finos elementos de uma nobreza à qual já é bizarria chamar-se tal coisa, mas que ainda ocupa as melhores e mais apalaçadas casas da capital, também procuravam as águas maduras do rio, para nelas se banharem. Não será inteiramente verdade, mas durante repetidas semanas vi um indivíduo gordíssimo – barrigudo e barbudo, como o Pai Natal – atirar-se para dentro do brando curso de água vestindo um daqueles fatos de banho que se veem somente nas fotografias a preto e branco, apesar de os sabermos coloridos, nas suas ridículas riscas verticais azuis ou vermelhas, condizentes apenas com as barracas de praia que escondem outros barrigudos dormindo sestas, ao lado de tachos mornos de feijoadas e cozidos. Nada disto podia ver-se ali, ao lado do rio, é certo, mas alguém me terá garantido – não sei já bem quem, mas pouco interessa – que era conde (ou talvez barão, ou até mesmo marquês – não sei exatamente), o que atesta inequivocamente a validade daquilo que antes sem certezas adiantei.
Quero, no entanto, que não restem dúvidas do quão belo era o espetáculo de ver os gaiatos atirarem-se às centenas (talvez não fossem tantos, mas que importa?) para dentro de água. Manifestamente com pouca vontade de se dar ao mar, recebia-os a todos o rio. Creio não ser de modo algum abusivo dizer que se sentia alegre por isso. Crianças riam, velhos pançudos e suas senhoras peitudas boiavam como no mar morto, ou então eles próprios aparentando baleias e cachalotes mortos no mar, jovens viçosos davam braçadas de atleta, indivíduos de meia-idade conversavam sobre o tempo, a bola, a política e a sua prima economia, ou mesmo sobre uma prima ou vizinha, que sendo a mesma podia ser irresistível ou galdéria, magérrima ou gorda e feia, um amor ou uma víbora, casalitos jovens namoriscavam, gente amantizada olhava-se com desejo, bebés choravam com a candura própria de quem não quer ser enfiado na água, mas logo sossegavam, ao senti-la tépida, antes de para isso contribuírem, alegres, com mais um xixizinho, algumas tainhas (eram decididamente centenas) nadavam junto ao atracadouro pelo qual as gentes desciam às águas, que timidamente ensaiavam o marulhar contra as pedras. Talvez não seja rigoroso dizê-lo, mas penso que terá sido essa melancolia líquida a conduzir-me a meses de observação e estudo dos hábitos e comportamentos das pessoas que nadam no rio sem que aparentemente o mundo – a comunicação social nunca o noticiou! – saiba que é hábito enraizado em tão grande cidade. É já, sem qualquer dúvida, um dos principais traços identitários de uma movida cultural que tem tanto de cosmopolita como de tradicional as pessoas dirigirem-se todos os dias ao rio, logo pela manhã, à hora de almoço, ao fim da tarde, ou mesmo em horário de expediente, no caso dos reformados, para esquecerem os problemas, conviverem alegremente e também para exercitarem braços e pernas tão presos às cadeiras dos escritórios. Até à noite – pelo menos, é a ideia que tenho – havia gente a enfiar o pezinho naquela infusão tão apreciada. Encostados às colunas do cais, sob a leve luminosidade cumplicemente oferecida pela lua, braços e bocas desafiavam conjugalidades empoeiradas, adolescentes fumavam cigarros e ervas que inebriavam os amantes do lado, bêbedos tristes cuspiam murmúrios para as águas e beijavam também eles as suas amantes engarrafadas, larápios aproveitavam para deitar a mão a carteiras e sapatos de bom ar. A polícia passava e nada queria ver – é provável até que, no final do turno, também os agentes pretendessem despir a farda e, em cuecas, aproveitar o mirífico lugar e as benesses múltiplas que de par em par oferecia ao mundo – e o que mais surpreende é que durante anos a própria cidade não tenha visto o rio à frente dela, como se para ele estivesse de costas voltadas. Até um cão de aspeto sabujo gostava de se mergulhar e de se banhar durante horas (talvez não fossem horas) e, rezam os nadadores mais assíduos, quando uivava, era porque se aproximavam os golfinhos que – aos milhares, tenho impressão – se nos juntavam, no mínimo, duas ou três vezes por semana.
Talvez nada disto fosse bem assim, mas era-me impossível não desejar assistir e participar em algo semelhante, motivo pelo qual, todas as manhãs, brilhasse o sol ou caísse chuva, eu descia a rua de calções e chinelos, com o jornal debaixo do braço e os velhos a rirem-se de mim, desejoso de me sentar encarando o rio, pedindo-lhe que me contasse as suas histórias.