Que a humanidade vibra e salta com filmes, séries e livros acerca de relações românticas não será novidade para ninguém.
Há romances de todos os gostos e para todas as idades: desde os amores puríssimos à primeira vista das fábulas infantis aos intensos romances possessivos do cinema dos anos 40 às telenovelas que passam à noite na televisão: toda a gente (ou quase toda a gente) adora um bom romance.
Existe toda uma indústria a movimentar e a lucrar milhões através da produção de intensas histórias românticas, mesmo que nem nos lembremos disso enquanto choramos e rimos no cinema (ou no sofá) com a mais recente comédia romântica.
A luta LGBTQIA + conseguiu, de forma relativamente bem sucedida, nos últimos anos, questionar este espaço de venda multimilionária de ideias idealizadas. Se para algumas pessoas o romance está em declínio, para nós, ativistas e pessoas queer, os romances televisivos, literários e cinematográficos nunca passaram daquilo que realmente são: contos de fadas com pessoas brancas, magras, ricas e claro, heterossexuais.
Com a pressão crescente do movimento queer nas últimas décadas, a indústria cultural percebeu os primeiros indícios do “declínio do romance” na ficção e foi criando (para o bem e para o mal) um forte reforço da representação de pessoas menos normativas (mas ainda assim bastante normativas) nas personagens que vivem as suas narrativas.
Para os movimentos identitários neoliberais, para os quais o recorte de classe é uma atividade ideológica, colocar um personagem gay cisgénero e branco (com a relevância de um figurante) em cada série estado-unidense é um ato progressista que deve ser celebrado e aplaudido amplamente.
De facto, esta recente representação de identidades queer trouxe, em parte, uma certa abertura à discussão de temas que eram tabus fora da bolha ativista e política, bem como a desconstrução de alguns estigmas sociais. No entanto, seja pela frequente superficialidade destas representações, muitas vezes estereotipadas, seja pela falta de um real recorte de classe (como é comum na cultura comercial), estas narrativas não só não são perfeitas como não provocaram propriamente um abalo real no sistema vigente. Para nós, ativistas de esquerda, o preconceito, o desrespeito e a repressão LGBTQfóbica não são, isoladamente, o problema; são sintomas de um sistema problemático. Identificamos no cisheteropatriarcado que é, numa relação simbiótica, suporte e suportado pelo capitalismo, a estrutura que tem de ser abalada.
Os grupos conservadores descrevem a presença de pessoas queer na ficção como um enorme ataque aos seus preciosos valores tradicionais. Não sejamos ingénuos acerca desta performance: são os valores que a cultura de massas continua a reproduzir e reforçar, mesmo quando o tenta esconder. Não é a cultura comercial, produzida por empresas multinacionais que frequentemente financiam grupos de extrema-direita, que provoca o desapego aos valores conservadores. São as contradições dos próprios valores tradicionais e a hipocrisia daqueles que os pregam que se tornam cada vez mais óbvias. Enquanto pudermos estar nas ruas a acusar estas incongruências (que é aquilo que a extrema-direita nos quer impedir de fazer) e a apresentar um projeto de um mundo melhor, esses valores vão-se tornando cada vez mais obsoletos.
Mas não, não estamos sequer perto de um ponto em que possamos celebrar a obsolescência desses valores. Muito menos na cultura de massas.
As crises de ciúmes da esposa possessiva que fica em casa a orquestrar os próximos planos mirabolantes de vingança à secretária (e amante) do seu esposo rico, as birras de famílias burguesas sobre heranças, o velho estereótipo da mulher elegante, sensual que, da forma mais interesseira e calculista possível, tenta seduzir um homem com grandes posses: nenhum destes estereótipos ficou no passado – basta ligarmos a nossa TV nos canais generalistas em horário nobre que iremos encontrar estas histórias, vividas por inúmeras personagens que mudam de nome e de intérprete mas vestem sempre a mesma camada de misoginia conservadora. O mesmo é válido para os inúmeros cabeleireiros gay que usam uma irritante écharpe (que o ator pode reposicionar repetidamente para reforçar estereótipos de expressão de género) que servem de aias confidentes do século XXI para as personagens femininas principais (e regra geral, ricas).
Algumas pessoas dirão que continuamos a contar estas histórias porque elas refletem o funcionamento da sociedade atual. Mas quantas mulheres ricas e possessivas conhecem? Conheço bastantes trabalhadoras que odeiam os seus patrões… já trabalhadoras que andam com os seus patrões são, regra geral, protagonistas de rumores cuja base costuma ser o descrédito misógino na capacidade das mulheres de ocuparem competentemente os seus postos de trabalho. Amores à primeira vista? Nunca ouvi falar de nenhum.
E não, a televisão e o cinema não têm de ser representações reais da vida e o propósito do entretenimento não tem de ser provocar longas reflexões sobre a sociedade. Só acho que não podemos ser inocentes e pensar que a cultura comercial não serve um propósito, além do puro entretenimento.
Honestamente, numa sociedade em que, estatisticamente, a maior parte dos casamentos acaba em divórcio e em que a violência machista, racista e LGBTQfóbica é uma banalidade estrutural, não será esta cultura, que procura retratar o romance, o amor e o casamento como uma coisa pura, necessária, universal e natural uma das peças importantes da dita estrutura? Especialmente quando ainda não largamos o descrédito automático nas vítimas de violência doméstica, no namoro e sexual e enquanto não conseguimos dar uma plataforma a estas vítimas que não as ridicularize, exponha e humilhe em prol do sensacionalismo?
Será que realmente é suposto que sejamos capazes de engolir um “Heartstopper” ou um “Young Royals” sem pensar que é absurdamente irrealista? É mais comum o atleta que toda a escola deseja ser homofóbico do que secretamente bissexual. E não me irrita o positivismo que estas histórias oferecem à minha e à próxima geração, muito pelo contrário, mas numa sociedade que não leva o bullying LGBTQfóbico como um problema real, seria necessário que existisse algo além de romances queer adolescentes na nossa televisão. E isto vem de uma pessoa que consome este tipo de cultura e que considera que ela é necessária, tem um espaço e serve um propósito. Eu desejo que jovens queer possam ler Heartstopper e ter acesso a histórias que não os representem como um estereótipo raso ou como um personagem de um melodrama com um final trágico. Eu quero que existam romances, mesmo que fantasiosos, com personagens queer nas prateleiras das bibliotecas. Mas não pode ser só isso.
Se vão vender as nossas vidas e as nossas histórias, é justo exigirmos que possamos viver as nossas vidas sem agressões. E isso significa acesso a cuidados de saúde, a uma educação sexual inclusiva, a uma educação que preze a cidadania, a inclusão, o respeito e o espírito de comunidade como valores fundamentais da nossa sociedade. Isto é o mínimo para uma sociedade ampla e funcional.
O romance vende, questionar e lutar contra estruturas de poder não.
Ainda sobre o romance, recentemente, a comunicação social achou por bem divulgar, de forma bastante sensacionalista, uma suposta moda de “encontros românticos” difundida no TikTok. Em relação a esta moda, que consistia em passear num supermercado com o carrinho de compras com algum item (legumes frescos para algo sério, ananases virados ao contrário para swing) durante um horário específico, alguns jornalistas e cronistas foram mais longe e descreveram-na como tentativa de criar uma alternativa às dating apps numa época e para uma geração que as consideram obsoletas.
E é totalmente verdade que é medonho e distópico que a realidade das nossas relações seja muito frequentemente dependente de aplicações de encontro ou redes sociais. É assustador admitir que somos, em grande escala, dependentes de um sistema informático privado que exige o pagamento de certas quantias para obter certos privilégios (como a verificação de perfis, por exemplo) dentro de um jogo que torna claro de forma macabra o controlo do mercado e do capitalismo sobre mais um aspeto das nossas vidas. Até o romance se tornou uma mercadoria.
Mas também é verdade que a nossa realidade (e não falo só das pessoas jovens) está mais próxima disso do que clichés hollywoodianos em que alguém me apanha os livros que deixei cair acidentalmente num espontâneo ato de bondade que acaba por estranhamente implicar o toque acidental das minhas mãos com as da outra pessoa, uma troca de olhares e um amor recíproco à primeira vista.
As condições dos lugares onde vivemos também não nos dão grandes alternativas. Nas grandes cidades, os espaços públicos são cada vez mais restritos e gentrificados de forma a que neles apenas caibam turistas; os bares e as discotecas praticam os preços das capitais dos países europeus mais ricos, barrando quem não os consegue pagar. Na periferia, estamos completamente dependentes das grandes cidades, já que o centralismo faz da periferia um dormitório. Os espaços mais locais, queer e culturais foram sendo fechados e empurrados para fora das cidades até serem forçados a fechar portas. No interior, a falta de transportes públicos e o envelhecimento da população contribuem para o isolamento das pessoas jovens.
No caso das pessoas queer e racializadas, estes fenómenos acentuam-se ainda mais, dado que muitas vezes sofrem também a rejeição da família, dos colegas e até do acesso ao trabalho.
O isolamento é parte deste sistema individualista e classista. As dating apps não são a cura, mas sim um sintoma desse isolamento.
A mercantilização dos nossos corpos, das nossas vidas e até da forma como nos relacionamos cria este espaço cinza, deprimente e soturno em que se tornou o mundo no capitalismo tardio.
OUTRO ARTIGO DESTE AUTOR
Os textos nesta secção refletem a opinião pessoal dos autores. Não representam a VISÃO nem espelham o seu posicionamento editorial.