A política no tempo do alcance sem mediação, das partilhas, dos gostos, da gratificação imediata, da instantaneidade, do acesso rápido, do marketing e da solução digital para tudo traz novos desafios (e muitos perigos) para o modelo da velha democracia representativa em que construímos as modernas sociedades ocidentais demoliberais.
Ultimamente, tenho vindo a refletir sobre este tema e, em particular, sobre o impacto do inevitável progresso tecnológico e digital na política, no sistema de representação, no tempo da decisão e na (in)satisfação do eleitorado com a política. Num mundo ideal, sem corrupção, higienizado da natureza humana, sem problemas de fundo, reais e substantivos, que afetam a vida das pessoas, seria mais uma etapa do desenvolvimento e da história da humanidade.
Como a nossa vida – individual e coletiva – é mais acidentada, salteada de contradições, erros, injustiças, com recursos limitados e que não chegam a todos, com a necessidade humana imperiosa de vivermos em comunidade, aqueles que querem destruir os nossos sistemas representativos e demoliberais têm hoje um aliado poderoso: a digitalização das nossas vidas.
É o populismo que, de mãos dadas com o algoritmo que apenas prioriza o tempo de retenção nas plataformas, tem hoje acesso direto a milhões de indivíduos que apenas querem ver a sua opinião e crítica validadas.
É altura de fazer um parêntesis: não sou contra a digitalização, reconheço os seus méritos e tal como biliões de pessoas no mundo, uso os seus serviços todos os dias, que nos facilitam a vida, poupam tempo e recursos. Mas também não gosto de ser uma amiba acrítica.
A política digital aproxima pessoas, faz-se sem mediação, acabou com o gatekeeping mediático, dispensa jornalistas, afeta o agenda-setting dos meios de comunicação social e trouxe novos protagonistas, que antes dificilmente conseguiriam alcançar mais do que o seu prédio ou a sua rua porque veriam a sua entrada vedada ao circuito dos artigos de opinião e do comentário televisivo.
A política digital permite recolher contributos, fazer targeting com mensagens específicas para grupos-alvo, mobilizar rapidamente petições, testar posições, mudar e moldar programas de acordo com o sentimento das redes e das populações, avançar ou fazer cair com propostas em detrimento desse sentimento das audiências, criar políticos-algoritmos e “partidos-algoritmos”, como cunhou Guiliano da Empoli, a propósito do bizarro e emblemático caso do Movimento 5 Estrelas, que na sua fase de ascensão na política italiana, levou ao extremo o uso da Internet e do sistema digital no dia-a-dia do partido.
Através da plataforma Rousseau, criada pela Casaleggio Associati, o M5S implementou uma gestão centralizada das atividades de cidadãos, membros e eleitos do partido, com o objetivo de criar a verdadeira democracia direta. Davide Casaleggio, presidente da Associação responsável pela Rousseau, referiu-se a este mecanismo e ao partido que o usava da seguinte forma: “Nós garantimos um melhor serviço e somos mais eficazes para levar as exigências dos cidadãos às instituições. A velha partidocracia é como um Blockbuster, ao passo que nós somos como a Netlfix”.
A ligação que a política tem hoje à física quântica, à matemática e aos algoritmos, faz com que seja possível um contacto diferente entre políticos e cidadãos, em que o mundo que vemos, através dos feeds dos nossos ecrãs, não seja o mesmo que vê a nossa namorada, o nosso pai, o vizinho do lado ou o colega de escritório. Resultado: estamos a ficar mais distantes de entendimentos, porque experienciamos uma bolha individual, que nos alimenta com os nossos gostos e bombardeia com recorrentes opiniões e visões do mundo às quais já temos adesão prévia. Por isso, é cada vez mais difícil colocar as pessoas em acordo relativamente aos factos. Todos conhecemos esta realidade nas redes sociais quando falamos de um prato, de um país ou de um eletrodoméstico e, nos dias seguintes, são-nos sugeridas as mesmas coisas ou similares. Acontece semelhante fenómeno com a política e as nossas opiniões políticas. Tudo isto no tempo da hipervalorização da forma e da política-dança de 15 segundos e dos debates de 13 minutos para cada político que vai disputar uma eleição nacional. Traz também promessas de novos mundos, mesmo que procure implementá-los através do velhinho ódio e do ressentimento que sempre existe nas comunidades.
Não tenho espaço num artigo de opinião para abordar todas as causas e consequências desta política-algoritmo do novo mundo digital, mas não tenhamos dúvidas que ela está a causar impacto nas nossas democracias representativas, lentas, hierárquicas, assentes em administrações públicas burocráticas e cinzentas, com ordenamentos legais complexos e que demoram a responder às exigências e aos pedidos dos cidadãos. Já para não falar do velho fenómeno da mentira e da desinformação, que é mais facilmente disseminado na era do WhatsApp e do TikTok, num tempo em que a verdade factual, complexa, aborrecida e despida de emoções reúne cada vez menos admiradores. Não faltam exemplos cá dentro e lá fora desta realidade.
Quem defende instituições representativas demoliberais e quem não morre de amores pela visão plebiscitária ou referendária da política – grupo onde me insiro – tem um gigantesco desafio pela frente nos próximos anos e décadas com o avanço do canto libertador da democracia digital e direta que libertará as sociedades.
Teremos de nos adaptar, de nos recriar, reinventar a nós próprios e aos nossos partidos, usar os mesmos algoritmos, mas para conseguir defender os valores da democracia liberal e representativa.
Neste novo mundo onde a tolerância para a diferença e moderação é cada vez menor, não há respostas fáceis, mas o desafio é gigantesco.
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