Uma das cenas que mais me impressionou no abrigo dos índios Warao em Pacaraima, fronteira entre o Brasil e a Venezuela, foram os pés em chaga dum homem novo, com cerca de trinta anos, que atravessara a floresta durante cinco dias com a avó às costas.
Não foi a primeira vez que assisti a este respeito pelos mais velhos, a esta ajuda intergeracional.
Quem tem alguma experiência em fluxos de mobilidade, apercebe-se que, entre alguns povos ou etnias, sobretudo em situações de perigo eminente, é impensável deixar para trás os mais fracos e os mais idosos.
Os ciganos têm pelos seus velhos um respeito quase reverencial e as crianças ficam ao cuidado das suas histórias.
Os japoneses cumprimentam-nos na rua, sem os conhecer de lado nenhum, com uma vénia. Assisti, estupefacta, numa artéria movimentadíssima, em Hong Kong, à travagem dos carros perante um idoso que atravessava sem passadeira, fazendo apenas um gesto de abrandamento com a mão.
As tribos africanas jamais pensariam em votar ao abandono os que já não podem contribuir económica ou demograficamente para o bem comum. Antes lhes pedem conselhos, os ouvem, cuidam e ensinam pelo exemplo, que a idade é a soma de toda a sabedoria de uma vida.
Resumindo: parece que o abandono, a entrega dos mais velhos a armazéns de coisas sem serventia, é um ato das sociedades ocidentais, desenvolvidas e economicamente mais ou menos sólidas.
Sejamos sérios e deixemo-nos de hipocrisias, fazendo, aliás, eco de algumas afirmações de políticos de renome como a senhora Lagarde: a Covid-19 veio, em alguns casos, resolver o problema da “excessiva” longevidade da população destes países.
Sejamos sérios e deixemo-nos de hipocrisias, fazendo, aliás, eco de algumas afirmações de políticos de renome como a senhora Lagarde: a Covid-19 veio, em alguns casos, resolver o problema da “excessiva” longevidade da população destes países
A mortalidade causada pelo vírus, entre pessoas acima dos 60 anos, é exponencialmente superior a qualquer outra faixa etária. Com a agravante de que, nestes nossos países ditos desenvolvidos, os nossos velhos são “varridos“ para fora das suas casas e amontoados em “lares” que, como se veio a verificar, são, na sua maioria, antecâmaras da morte.
Há pois questões para as quais ainda ninguém deu uma resposta satisfatória: como é possivel a existência de lares “ilegais”? Mas, afinal, para se ter um lar não é preciso o cumprimento de determinadas normas? E essas normas não são verificadas de tempos a tempos pela Segurança Social, que, presumo, seja a entidade que deveria supervisionar essas situações? Pois… Parece que não.
O que o vírus mostrou, para além do mais, foi a desumanidade que temos para com os nossos idosos. Não só os amontoamos num qualquer lugar, como agora estão votados a uma solidão ainda mais hedionda. Poderão não morrer de Covid, mas muitos deles estou certa que desistem de viver por não terem razão para continuar.
Sou do tempo das familias alargadas. Os meus avós morreram em casa, ao cuidado dos filhos e rodeados dos que os amavam. Dir-me-ão “outros tempos”. Não apenas isso, mas sim menos egoísmo da nossa parte.
Naturalmente que esta tarefa de cuidar dos mais velhos, tal como dos mais novos, já agora, sempre recaiu muito mais sobre as mulheres.
Lutar legitimamente por uma carreira sem um plano estruturado do Estado para o contínuo emprego de dona de casa, mãe e cuidadora é, sem dúvida, um dos grandes desafios que temos pela frente.
Estou em crer que muitas pessoas abdicariam de parte do seu salário se lhes fosse concedido o estatuto de cuidador informal para situações que abrangessem também o tomar conta dos mais idosos.
Há ainda uma outra reflexão que não tenho visto ser feita. A idade da reforma não pára de aumentar, situando-se neste momento nos 66 anos. Isto tem como resultado imediato um aumento do desemprego jovem e um mercado laboral envelhecido, pouco aberto a inovações e sem perspetiva de renovação.
Os pais destes pré reformados, se situarmos uma hipotética pré-reforma nos 55 anos, caso sejam vivos, terão entre 70 a 80 anos, o que lhes concede uma média de vida de mais cerca de dez anos. Os tais dez que faltam aos hipotéticos pré-reformados para a reforma.
Estou convencida que muitos optariam de bom grado por um corte no seu salário até à idade da reforma, substituindo-o pelo subsídio de cuidador informal dos seus idosos.
Com isto, não apenas renovávamos o tecido laboral como nos tornávamos mais humanos.
É que a violência não é apenas doméstica como a encaramos e a mais dura é aquela que não se vê nem conta para as estatísticas.