Um terror para as famílias, uma benesse para um ministro das Finanças. A inflação é o alfa e o ómega do Orçamento do Estado apresentado esta semana na Assembleia da República, e a ironia é que é simultaneamente o mal que é preciso compensar e a força poderosa que enche de receitas extraordinárias os cofres do Estado.
Fernando Medina, a par de um primeiro-ministro que fez das contas certas um desígnio pessoal para limpar a má imagem do PS como gestor das contas públicas, não desperdiçou a sorte que uma subida da inflação num ano de forte crescimento económico lhe trouxe. E aproveitou para diminuir a pesada dívida pública, que tocou recentemente valores alarmantes (135%), em mais de dez pontos percentuais do PIB, levando-a este ano a níveis de 2011 (115,05%), e em manter controlado o défice (1,9%), apesar das medidas extraordinárias que foi preciso tomar para apoiar a economia durante a pandemia.
Perante isto, num cenário de enorme incerteza acerca do desfecho da guerra e do seu impacto na evolução da inflação e nas taxas de juro, para 2023 o Governo tinha duas hipóteses. A hipótese arrojada seria usar a almofada que ganhou, deixando derrapar ligeiramente o défice e sustendo o recuo na dívida, para compensar já famílias e agentes económicos pelo esforço do aumento dos preços e dos créditos. A hipótese cautelosa seria amealhar e engordar a almofada, prosseguindo na redução acentuada de défice e dívida e resguardando assim as contas públicas para eventuais tempestades e abrandamentos económicos abruptos adiante, e compensando menos as famílias. A terceira via, que advoga que é preciso aumentar despesa e todos os apoios sociais, ao mesmo tempo que se precavê as contas públicas e ainda se fazem reformas estruturais, não conta, é mera demagogia populista.
Entre o arrojo e a cautela, o Governo escolheu a segunda. É uma opção sensata perante o nível de incerteza elevado que temos adiante, justifica-se. Talvez seja, de facto. Mas não vale a pena dourar a pílula: depois da austeridade laranja, temos agora a contenção rosa.
O mais curioso é que esta é uma contenção abençoada pelos parceiros sociais, em sede de concertação. António Costa conseguiu, depois dos acordos da Geringonça, mais uma vez o que muitos achavam impensável: meter patrões e sindicatos a acordar em medidas a quatro anos num momento político e social altamente desafiante. Fintou, mesmo antes da aprovação do OE, a oposição à esquerda e à direita, esvaziando-lhe argumentos. Uma inquestionável vitória política.
Trazia, para isso, na manga o maior saco de dinheiro, mais precisamente 3 000 milhões de euros de apoios para redução das faturas de eletricidade e gás, com que adoçou a boca aos empresários, reduzindo alguns impostos e contribuições.
Já as medidas de apoio às famílias apresentadas num orçamento de complexa filigrana são de pequena expressão – a manta não estica assim tanto se se quer fazer brilharetes nas contas. A atualização de escalões do IRS idêntica à inflação, que assegura que não existe um agravamento pela tributação dos rendimentos, ficou por fazer. Mas compensou-se, apenas em parte, com uma redução de dois pontos percentuais no segundo escalão e mudaram-se as regras do mínimo de existência – ambas abrangem quatro milhões de pessoas, mas representam poucochinho. E depois há medidas que não dão nada e só servem para aumento de tesouraria momentânea, como a do “apoio” às famílias com o crédito à habitação, que apenas podem pedir menos retenção na fonte.
Entre as novidades do OE, consta a tributação dos windfall taxes ou lucros extraordinários, mas apenas das empresas energéticas, sem se ter bem noção de quanto pode ser arrecadado com isso, e ainda a tributação dos criptoativos, promovendo alegadas “segurança e certeza jurídica” num mercado etéreo e altamente especulativo.
Se nada mudar na discussão da especialidade, vamos pois entrar em 2023 aflitos, mas bem almofadados. Que é como quem diz, a penar com as contas do supermercado e das casas, mas com os cofres do Estado compostinhos. O risco é estar, assim, a agravar ainda mais a crise – ou pelo menos a não desagravá-la tanto quanto poderíamos. A parte boa é que, pelo menos, temos margem para novas medidas de apoio adiante, caso o embate com a realidade venha a ser muito mais duro. Oxalá as almofadas sejam de penas de ganso e não façam alergia.