Quando, no fim de junho, o Chega desceu a Avenida da Liberdade na primeira grande manifestação de rua do partido, senti o apelo de estar presente. Fui sozinha e discreta, no meio das centenas de apoiantes, bem longe da equipa de reportagem da VISÃO que seguiu na frente do pelotão. Não me interessava André Ventura, Diogo Pacheco Amorim nem os outros dirigentes que captaram a atenção mediática. Importava-me perceber as pessoas. Muitos dos meus mais próximos não compreenderam, na altura, porque uma diretora ia a uma manifestação deste tipo, numa tarde de domingo de sol, com tanta coisa melhor e mais importante para fazer. Expliquei-lhes que não posso escrever sobre um partido político sem compreender o fenómeno, o que o mobiliza e o alimenta. Fui para ver as pessoas e ouvir o que elas gritavam longe das câmaras, para tentar, por breves instantes, decifrar que vidas carregavam consigo.
Foi deveras revelador. Várias vezes desde então revisitei as notas que tomei nesse percurso até ao rio. Este domingo, depois de ficar claro que André Ventura tinha recolhido quase meio milhão de votos nestas eleições presidenciais, voltei a fazê-lo. Recordei o tipo de pessoas muito diferentes que ali se juntaram, da família compostinha que parecia vir da Estrela aos agrobetos com as suas boinas de xadrez, aos tipos musculados dos ginásios e das forças de segurança, aos nacionalistas com a cruz de Cristo tatuada no braço, aos homens de meia-idade com ar pobre, triste e derrotado.
Nunca mais me saiu da cabeça a senhora da camisola às flores cor de rosa, na casa dos 60, que seguiu boa parte do percurso à minha frente. Chamei-lhe a Maria da Avenida. Imagino-a uma vendedora de um mercado em Mem Martins, simpática com as freguesas, uma boa avó para os seus netos. Ali, toda ela expansiva, ouvia-a gritar contra os “políticos elitistas” e os “media que são todos a mesma merda”. De vez em quando, a voz sumia-se pela comoção: “Grandes porcos, nojentos fanáticos! Acham que as pessoas andam todas a dormir? O Ventura é pelas pessoas que trabalham e que lutam! Os outros é roubar à força toda, esses ladrões. É tachos para os sobrinhos, afilhados, raios o partam!”. Esta mulher deixou de acreditar no sistema, perdeu a fé. “O Marcelo desiludiu-me muito. Eu votei nele, mas desiludiu-me muito. Agora vem o André, vai ser ele a meter ordem nisto!”. Não a imagino a fazer mal a uma mosca. Não a imagino a alinhar nas alas ultrarradicais das suásticas que também se agregam à volta de André Ventura. Imagino-a só na sua vida, sofrida, a suar as estopinhas e a chegar ao fim do mês a contar os tostões, a andar em transportes públicos cheios de gente, a ter de ajudar o filho que não encontra emprego, a esperar mais de um ano por uma cirurgia no SNS.
Tenho também muitos amigos e conhecidos que votam no Chega. Pessoas que conheço há décadas, de classe média e alta, que tinham grandes sonhos, mas, na sua maioria, a quem a vida não correu pelo melhor. Muitas carregam consigo frustrações contidas. A maior parte são ex-eleitores do PSD e do CDS, todos com uma coisa em comum: um certo desalento e uma sensação de desilusão com os políticos e as elites em que nunca conseguiram realmente entrar. Encontraram nas redes terreno fértil para dar largas ao seu descontentamento, perderam a vergonha de dizer o que antes era impronunciável.
Foram mulheres e homens como eles e esta Maria da Avenida que deram, neste fim de semana, 496 651 votos a André Ventura. Não serão todos raivosos fascistas nem gente odiosa. São pessoas desarvoradas que, do Alentejo a Cascais, encontraram nele uma voz. A minha esperança é que, em breve, percebam que não vão encontrar nele nem uma só solução.