Comecemos pelo indiscutível. O que Rui Pinto já ajudou a revelar é de enorme interesse público. Os potenciais crimes e ilegalidades em causa nos casos do Football Leaks e do Luanda Leaks são de gravidade extrema e têm de merecer toda a atenção das polícias de investigação e das autoridades supervisoras, que devem atuar o mais depressa possível, abrindo inquéritos próprios e urgentes. E os responsáveis, todos eles, devem ser levados à Justiça. O trabalho de investigação jornalística que faça uma boa triagem destes e de outros documentos, trazendo notícias relevantes à luz do dia como fizeram a SIC e o Expresso, é absolutamente meritório. E, embora seja de recear a continuação de atividade criminosa que é incontrolável, é lamentável ver este rapaz ficar um ano em prisão preventiva, quando estão à solta tantos outros arguidos acusados de crimes violentos ou de causar sérios danos.
Coisa diferente é esquecer-se, como alguns parecem defender, num debate minado por simpatias clubísticas e interesses difusos, a forma criminosa como estas informações de interesse público foram obtidas (além da alegada tentativa de extorsão). A Constituição Portuguesa defende a inviolabilidade das comunicações e correspondências privadas, um dos princípios jurídicos basilares do Estado de direito democrático. Ao furar os sistemas informáticos do Benfica e de dois escritórios de advogados, o que Rui Pinto fez foi um crime, previsto e punido no nosso sistema legal, fazendo desses documentos provas obtidas de forma ilícita. É isso que, segundo os especialistas, distingue Rui Pinto de outros denunciantes, cujo estatuto está previsto e protegido pela diretiva europeia de 2015, e que são pessoas que estão dentro de uma organização ou obtêm informações de alguém de dentro que está na posse dessa informação. As provas ilícitas são, e bem, proibidas de serem usadas tout court em sede de processo penal em Portugal.
Permitir incriminar-se e, pior, dar como provados crimes com base em provas obtidas de forma ilegal é abrir o mais perigoso dos precedentes. É dizer-se que há situações em que a Constituição não importa muito, e que a lei pode ser “excecionalmente” furada. Começamos com uma exceção aqui, logo a seguir vem outra e depois outra. E se a seguir à violação da correspondência vier a da integridade física? E se para se obter provas importantíssimas noutras situações, também elas “excecionais”, se tiver de passar ao sequestro e à tortura? E se afinal não existir nada de relevante para revelar? E se fosse consigo, com a sua correspondência e, já agora, com a sua integridade física? Em matéria jurídica, há conflitos de interesses que têm de ser acautelados e princípios invioláveis. O que nos distingue de um regime totalitário é a forma como zelamos por esses princípios. Estamos perigosamente próximos de cenários distópicos tal como George Orwell os imaginou no Big Brother. Não podemos ceder no fundamental.