Querida avó,
Nasceste no dia em que inicia a primavera e se celebra o Dia Internacional da Felicidade. Nem podias ter escolhido outro dia para nascer!
Contigo entramos na Terra da Alegria! Um lugar que é bem melhor do que o da outra Alice, a do País das Maravilhas.
Tens um riso transbordante, que nos envolve a todos, e uma energia vital que encontra forças, mesmo nos momentos de aperto.
És uma força da natureza que irradia alegria. A tua amizade é quente e aconchegante.
Detestas adjetivos.
As coisas boas contigo tornam-se em coisas maravilhosas.
É bom, aliás, muito bom estar contigo.
É bom ouvir-te a falar de tudo. Todos os dias aprendo contigo e agradeço à vida ter-te colocado no meu caminho. Através das nossas conversas levas-me a fazer viagens à Lisboa e às pessoas de outras épocas.
Detestas adjetivos, mas acho-te fascinante.
A tua gargalhada, tal como o teu abraço, são genuínos.
Pertences a mim e a todas as gerações que se deliciaram, e deliciam, com os teus livros, com os teus pensamentos passados à escrita.
Detestas adjetivos, mas acho-te maravilhosa.
Recentemente li uma mensagem que te enviaram, em que diziam: “Tive a minha bebé faz amanhã um mês. Tem o nome Rosa devido ao seu primeiro livro. Ainda ponderamos chamar-lhe Alice. Choro sempre no final e já o li dezenas de vezes. Eu e a minha irmã dizemos que é a nossa avó literária.”
Começaste a ser escritora para calares os teus filhos, que queriam uma história escrita por ti. Passados 40 anos da 1ª edição do livro Rosa Minha Irmã Rosa, receberes mensagens destas é indiscritível.
Detestas adjetivos, mas acho-te formidável.
Leio outra mensagem que te enviaram. Desta vez, com referência a muitos títulos de livros por ti escritos:
“Os frágeis olhos de Ana Marta
me disseram para onde ir,
porque a Lua não está à venda
e as águas de Verão já começam a cair.
E se perguntarem por mim, digam que voei
para lá do lote 12, 2ºfrente.
Fui ouvir a vida nas palavras de Inês Tavares
e pela voz de tanta outra gente.
Já sozinha, partilhei um chocolate à chuva
com os olhos num fio de dumo nos confins do mar…
Oh, Rosa, minha irmã Rosa, lembras-te?
São os sons de uma vida inteira para te contar.
Contar-te as pessoas, as histórias e o tempo,
as tristezas e as alegrias desde a minha partida.
Naquela noite em que saí com nada mais na alma
além de meia hora para mudar a minha vida.”
Adoro!
Detestas adjetivos, mas acho-te incrível.
Cresceste sozinha, sem os abraços, o carinho, o afeto… que cada criança merece (e necessita)! Sem a rede a que todas as crianças têm direito. Cresceste desamparada, sem pais que te amparassem e te mostrassem um caminho.
Tinhas tudo para falhar. Mas ousaste caminhar contra o destino!
Costumas dizer: “As coisas só me tocam até uma determinada altura, até eu deixar, e não me tocam mais. Eu esforço-me muito por ser alegre, sou assim!”
Detestas adjetivos, mas acho-te magnificente.
Quando entraste pela primeira vez na redação de um jornal pensaste: “Esta é a vida que eu quero e aquele é o homem que eu quero!”
E assim começou uma longa carreira de jornalista e conheceste o Mário Castrim, com quem virias a casar e a ter dois filhos.
Deram-te poucos meses de vida, e para bem de todos nós, já passaram várias décadas.
Detestas adjetivos, mas és resiliente.
“Tive os empregos e a profissão que eu quis. Tive os homens que eu quis. Tive os filhos que eu quis.”
Detestas adjetivos, mas acho-te extraordinária.
“Acho mesmo que sou privilegiada! A infância foi complicada? Foi! Mas até isso me proporcionou muita coisa que, se calhar, de outra maneira não teria tido!”
Perdoa-me por ter falado pelos dois. Mas foste tu que me ensinaste a não me calar.
Obrigado por existires.
Feliz aniversário.
Detestas adjetivos, mas acho-te única!
Querido neto
Há dias falávamos já não sei de quê e percebi que havia muita coisa da minha vida que desconhecias.
Não pode ser!
Claro que não é preciso que saibas a minha vidinha desde a hora em que eu nasci – mas há coisas importantes que me aconteceram e que fizeram de mim a pessoa que sou hoje.
Acho que só te vou contar coisas boas. Não é que não tenha tido coisas más na minha vida, mas acho que não vale a pena trazê-las à nossa conversa . Mas é claro que não as esqueci.
(Em Paris, no Vert Galant, há uma inscrição junto do monumento à Resistência Francesa, que diz : “Pardonne, mais n’oublie pas” [“Perdoa, mas não esqueças.])
Acho que já me ouviste dizer – eu digo isso muitas vezes – que sempre fiz o que quis: tive as vidas que quis, nas terras que quis, os trabalhos que quis, os homens que quis e os filhos que quis.
Não tive uma infância e adolescência fáceis, como já sabes, mas até isso teve alguma coisa boa. Lembro-me que, quando as tias velhas me chamavam – nunca era para coisa boa… –, eu fechava as mãos com muita força e dizia para mim, ”elas matar não me matam, portanto, vamos lá!” E lá ia, e aguentava (ainda hoje digo isso, quando me chamam para coisas difíceis…).
Entrei para o Diário de Lisboa com 18 anos (nesse tempo quase não havia mulheres no jornalismo, o que deu lugar a muitas discussões lá em casa, que aquilo não era profissão para uma menina honesta, que eu tinha que ir para professora, etc, mas eu berrei mais do que elas e lá fui.)
Mas ela faziam-me a vida negra, sabiam a que horas eu saía do jornal e estavam sempre à porta à minha espera, para ver se eu saía com algum homem.
Não aguentei e, aos 20 anos, fugi de casa e fui para Paris.
Sem saber o que ia fazer, onde ia ficar, nada.
Mas da minha extraordinária vida em Paris (que é e há de ser sempre a cidade do meu coração) falaremos depois.
E nos anos a seguir andei por Macau, Bielefeld (Alemanha), Leicester (Inglaterra), Chicago (EUA), Santa Barbara (EUA), El Chaco (Argentina), Timor, Bordéus (França). No ano passado, tive convites para regressar a Macau e a Timor – mas a pandemia cancelou tudo.
Foram todas experiências extraordinárias, quer a fazer pesquisas para uns livros sobre a China que ia escrever ( Macau), quer a ajudar a tratar dos meus netos pequenos (Leicester e Chicago), quer em jornalismo, (Bielefeld e Santa Barbara), quer a ensinar português (Timor e Bordeus), quer a integrar um projeto com avós e netos – parecido com o que estamos a fazer agora – em El Chaco.
Mas se tivesse podido, eu tinha ficado em Timor. Não me perguntem porquê, mas tenho uma enorme paixão por Timor. A independência ainda tinha sido há pouco tempo, e aquela gente era extraordinária. Não tinham nada – mas nunca vi ninguém a pedir, a não ser lápis e borrachas. As escolas eram barracões ou ao ar livre. Um dia uma escola recebeu um quadro preto e paus de giz. A alegria deles foi imensa: antes de terem um quadro, agarravam em paus e escreviam na terra. Queriam era aprender. Voltei a Portugal prometendo que voltava logo – mas as coisas de repente voltaram a ficar mal e a Fundação Oriente não me deixou ir. Mas ainda hoje miúdas de lá – já mulheres – me mandam mensagens. E há uns cinco anos a minha neta Adriana foi para lá fazer voluntariado e adorou… (Tenho lá muitos amigos e um dia perguntei a um “sabes se a minha neta está bem aí?” E ele só me respondeu: “não sei, mas anda sempre de sorriso nos lábios…”)
Depois acalmei, comecei a ter mais coisas a fazer por cá, claro que fui sempre a muitas escolas no estrangeiro (a última foi na Sérvia) – mas só me podia demorar três ou quatro dias.
Mas isto fica para te contar depois. Isto já está muito grande e eu tenho de ir ver o Joker.
Fica bem.
Bjs
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